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A China vai transferir sua tecnologia verde ao Sul Global?

Soluções limpas da China têm impulsionado descarbonização em vários países, mas ela resiste em compartilhar conhecimento com parceiros
<p>Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (ao centro) em reunião com executivos da chinesa BYD, maior fabricante global de veículos elétricos, em dezembro de 2024. Parceiros como o Brasil buscam não só importar, mas também dominar conhecimento para agregar valor a suas cadeias produtivas (Imagem: <a href="https://api.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/54181548850/">Ricardo Stuckert</a> / <a href="https://api.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/">Palácio do Planalto</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nd/2.0/deed.en">CC BY-ND</a>)</p>

Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (ao centro) em reunião com executivos da chinesa BYD, maior fabricante global de veículos elétricos, em dezembro de 2024. Parceiros como o Brasil buscam não só importar, mas também dominar conhecimento para agregar valor a suas cadeias produtivas (Imagem: Ricardo Stuckert / Palácio do PlanaltoCC BY-ND)

Na última década, a China bateu os próprios recordes de produção de tecnologia limpa. Enquanto isso, o país se tornou um importante parceiro para as nações do Sul Global que buscam expandir sua geração de energias renováveis e promover as economias de baixo carbono.

A produção de tecnologia limpa sustentou a expansão da China em energia solar e eólica, baterias elétricas e veículos elétricos (VEs). Agora, muitas empresas chinesas estão em busca de novos mercados no exterior. Em 2024, o Sul Global concentrou praticamente metade das importações dessas tecnologias chinesas, somando mais de US$ 72 bilhões. A única exceção nesse grupo foram as baterias, com importações dominadas por Estados Unidos e União Europeia.

Para muitos países, esses produtos chineses são cruciais para expandir o acesso à eletricidade e impulsionar as energias renováveis. Porém, as nações do Sul Global querem ir além de uma relação meramente comercial e transformar esses laços em uma verdadeira cooperação tecnológica: é isso que muitos governos têm expressado em reuniões bilaterais e cúpulas internacionais

A esperança do Sul Global é que a China seja não apenas uma fonte de tecnologia limpa, infraestrutura e serviços, mas também uma fornecedora de conhecimento técnico para os setores produtivos e de inovação locais.

No campo diplomático, a China há muito atende a esse tipo de demanda, oferecendo bolsas de estudo, plataformas de cooperação técnica e workshops em países parceiros. Beijing prometeu expandir essas iniciativas na recente reunião da Organização de Cooperação de Xangai em Tianjin. Já a transferência de tecnologia e conhecimento permanece um tema complexo e, muitas vezes, até controverso. 

Durante a rápida industrialização da China desde o início da Reforma e Abertura em 1978, as próprias empresas chinesas se beneficiaram de intercâmbios com parceiros europeus e americanos. O mesmo ocorreu com o recente desenvolvimento dos setores de energia solar, eólica e veículos elétricos da China. 

No entanto, analistas consultados pelo Dialogue Earth têm dúvidas sobre o interesse de gigantes chinesas em compartilhar tecnologias na área de energia limpa. No caso do Sul Global, especialistas destacam iniciativas que revelam o potencial dessas transferências, mas questionam se as nações terão capacidade e influência suficientes para exigir tal colaboração.

Por que a transferência de tecnologia importa?

A transferência de tecnologia e conhecimento é uma reivindicação antiga do Sul Global, que ganhou força com os esforços globais para ampliar a geração de energia renovável. Esses anseios se somam aos apelos de países em desenvolvimento para que o Norte Global — assim como parceiros e investidores chineses, muitas vezes compradores de suas matérias-primas — apoie sua reindustrialização e ascensão nas cadeias de valor.

A transferência de tecnologia da China tem sido um ponto central de encontros coorganizados pelo Dialogue Earth. O tema foi discutido em um painel realizado em Berlim, na Alemanha, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, e em uma conferência internacional de pesquisadores, analistas e representantes da sociedade civil chinesa, organizada pela Universidade de Bath, no Reino Unido.

“Não há dúvida de que a transição para a sustentabilidade dos países do Sul Global precisará do apoio da China em termos de financiamento e cooperação tecnológica”, disse Yixian Sun, pesquisador e organizador da conferência de Bath, ao Dialogue Earth. “Mais do que compartilhar, é necessário desenvolver conjuntamente tecnologias e conhecimento entre a China e seus parceiros do Sul Global”.

A própria China já foi beneficiada por movimentos semelhantes no passado: na década de 2010, a cooperação da alemã BMW com a chinesa CATL permitiu que essa última se tornasse a maior fabricante de baterias elétricas do mundo.

Anders Hove, que pesquisa a China pelo Instituto de Estudos Energéticos de Oxford, explicou que as parcerias estrangeiras na indústria automotiva chinesa “evoluíram para políticas mais sofisticadas que forçaram as montadoras estrangeiras a garantir a produção de tecnologias essenciais, como baterias, motores elétricos e sistemas de controle”.

Megaporto de Chancay, no Peru, construído pela chinesa Cosco
Megaporto de Chancay, no Peru, construído pela chinesa Cosco. O terminal marítimo, inaugurado no fim de 2024, visa impulsionar o comércio no Pacífico, facilitando a entrada de veículos elétricos e outros produtos chineses na América do Sul (Imagem: Presidência do PeruCC BY-NC-SA)

Essas operações têm sido um ponto sensível nas relações comerciais da China com os EUA e a União Europeia, que falam em “transferência forçada de tecnologia” exigida por parceiros chineses – algo que a Lei de Investimento Estrangeiro da China, de 2019, proíbe explicitamente.

Em vez de um movimento de via única, Hove enfatizou que essas relações devem ser vistas como uma evolução conjunta entre os parceiros. Ele citou o exemplo do desenvolvimento da indústria de energia solar da China, que agora responde por mais de 80% da produção global, por meio da colaboração com parceiros estrangeiros: “Isso mostrou como técnicos alemães e americanos trabalharam com fabricantes chinesas, criando um processo de coevolução recíproco”.

Esperanças e dúvidas no Sudeste Asiático

A indústria solar da China emergiu na vanguarda da expansão internacional de seus fabricantes de tecnologia limpa, com um crescimento expressivo nas exportações globais de painéis e outros componentes na última década. Nos últimos anos, os fabricantes chineses também transferiram parte de sua produção para o Sudeste Asiático, ajudando a posicionar Vietnã, Tailândia, Malásia e Indonésia entre os principais produtores e exportadores fora da China. Essas transferências têm sido interpretadas como um meio de evitar as tarifas americanas sobre equipamentos solares fabricados na China — comércio agora ameaçado pelo governo Trump

No entanto, as operações no Sudeste Asiático são focadas essencialmente na montagem final dos equipamentos, gerando críticas sobre a falta de processos de transferência de tecnologia. 

“Todo o know-how permanece na China, todas as peças vêm da China e toda a cadeia de suprimentos ainda está lá. Essencialmente, não há difusão de conhecimento, mesmo que haja fabricação de painéis solares”, explicou Hove.

Essa é a mesma avaliação de Jessica Liao, professora associada da Universidade Estadual da Carolina do Norte, cuja pesquisa se concentra na política externa chinesa e no Sudeste Asiático. Ela descreveu os esforços de capacitação local como “limitados”, embora o tema esteja virando uma “prioridade crescente” entre as nações do Sudeste Asiático. 

Para Liao, a fabricação de veículos elétricos na Tailândia e a indústria de níquel na Indonésia são áreas prioritárias nas quais os países esperam obter apoio chinês. O níquel é um componente crucial nas baterias de veículos elétricos, e a Indonésia já é responsável por quase metade da produção global do metal. O país também espera se estabelecer como um dos principais produtores globais de baterias após a recente construção de uma fábrica de US$ 6 bilhões da CATL na província de Java Ocidental. 

No entanto, Liao questionou o potencial para que ocorram transferências de tecnologia nesses setores: “A maior parte dessa fabricação não é realmente a parte decisiva em termos de conhecimento ou tecnologia da construção de veículos elétricos. Portanto, não vimos nenhum caso claro em que os países estejam se beneficiando do conhecimento mais upstream, o conhecimento central de qualquer uma dessas indústrias de tecnologia limpa”.

Como maior mercado e economia da região, a Indonésia pode estar em melhor posição do que seus vizinhos da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) para se beneficiar desses processos, uma vez que detém, nas palavras de Liao, “mais poder de barganha”. A pesquisadora disse que a Malásia também pode ter algumas vantagens devido à sua capacidade de fabricação, mão de obra qualificada e a grande população de diáspora chinesa acostumada a fazer negócios com a China. Porém, acrescentou ela, “a maioria dos países da Asean tem um mercado de tamanho médio e muitas barreiras regulatórias e institucionais, dificultando a transferência de conhecimento sob a ótica dos investidores chineses”.

Lições do Brasil

Como principal centro industrial da América do Sul e lar de um mercado de energia limpa bem estabelecido, o Brasil tem sido um dos principais destinos para a expansão internacional dos fabricantes chineses de tecnologia limpa — e, sem dúvida, um dos pioneiros em parcerias de transferência de conhecimento e tecnologia. 

A gigante automotiva chinesa BYD, maior fabricante mundial de veículos elétricos, anunciou recentemente seus primeiros veículos produzidos na fábrica em Camaçari, na Bahia. Em agosto, a chinesa Great Wall Motors também inaugurou uma fábrica de veículos elétricos em São Paulo. A Goldwind, uma das maiores fabricantes de turbinas eólicas da China, também lançou uma unidade de montagem no Brasil, quinto maior mercado de energia eólica do mundo.

João Cumarú, especialista em Brasil-China e assessor internacional do Consórcio de Governadores e Governadoras do Nordeste, disse ao Dialogue Earth que a transferência de conhecimento e tecnologia emergiu como “um dos pilares centrais da agenda bilateral”. 

“Durante sua última visita à China, o presidente Lula destacou que os investimentos não devem se limitar à infraestrutura, mas incluir educação, tecnologia e capacitação de pessoas, para que o Brasil possa fortalecer suas próprias cadeias de valor”, acrescentou Cumarú.

Sem recursos, a cooperação corre o risco de ficar apenas no papel
João Cumarú, especialista em Brasil-China e assessor internacional do Consórcio Nordeste

Além dos investimentos atuais para a fabricação de veículos elétricos e turbinas eólicas, Cumarú disse que há “muito interesse na expertise chinesa com minerais críticos, especialmente em refino e processamento”, o que poderia ajudar o Brasil a aproveitar suas próprias reservas

Várias iniciativas para promover diretamente a transferência de conhecimento e tecnologia em setores de desenvolvimento sustentável foram criadas pelos dois países. Tanto Cumarú quanto Yixian Sun, da Universidade de Bath, destacaram o Centro Brasil-China de Mudanças Climáticas e Tecnologias Inovadoras como um desses exemplos. Criado em 2009 por meio de uma parceria entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Tsinghua, em Beijing, o centro promove intercâmbios acadêmicos e desenvolvimento conjunto em bioenergia, energia solar e eólica e transmissão de eletricidade. 

Cumarú também mencionou os projetos de cooperação nos setores agrícola e de combustível de aviação sustentável, bem como o CBERS, o programa de satélites China-Brasil, que existe há décadas.

Na opinião de Cumarú, intercâmbios eficazes nessas áreas dependem de um forte apoio governamental: “São necessárias políticas estáveis, regras claras sobre propriedade intelectual e incentivos para joint ventures. Mecanismos como o Comitê de Coordenação de Alto Nível China-Brasil podem ajudar a definir a agenda e garantir que as coisas realmente avancem”. 

Além disso, segundo ele, as finanças também “são outra peça do quebra-cabeça”, e o apoio de agências e instituições federais, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, é fundamental. “Sem recursos, a cooperação corre o risco de ficar apenas no papel”, disse.

Sinais políticos

Sobre as perspectivas de transferência de conhecimento e tecnologia entre a China e os países do Sul Global, especialistas consultados pelo Dialogue Earth citaram as barreiras nos países potencialmente contemplados, mas também a necessidade de incentivos para que empresas e autoridades chinesas se engajem nesse processo.

Anders Hove falou de “sinais preocupantes” no controle de exportações da China que podem limitar os intercâmbios de tecnologias como baterias — que, segundo ele, foram classificadas como “tecnologia sensível”. “Os países do Sul Global devem desenvolver sua própria capacidade de absorção de tecnologia e conhecimento, mas as políticas governamentais da China sobre os controles de exportação são igualmente cruciais”, afirmou.

Jessica Liao, por sua vez, destacou que as motivações das empresas chinesas são outras: “O incentivo delas não é ajudar a economia local ou as indústrias locais. A principal preocupação delas é resolver o problema de excesso de capacidade de produção interna da China”.

Medidas como controles de exportação sinalizam às empresas de tecnologia limpa que suas inovações devem “ficar em casa”, acrescentou Liao. Essas empresas “andam na corda bamba” para equilibrar o apoio do governo enquanto buscam sua expansão no exterior, disse ela, “cientes de que essa expansão deve ocorrer apenas na parte mais básica da produção”.

Não é possível colocar habilidades e conhecimentos em um contêiner. Isso não resolveria o desafio fundamental de recursos humanos que os países em desenvolvimento enfrentam
Anders Hove, pesquisador do Instituto de Estudos Energéticos de Oxford

Yixian Sun trouxe uma perspectiva diferente: “Não acho que os atores chineses estejam relutantes em transferir ou compartilhar suas tecnologias com seus parceiros do Sul Global. Em muitos casos, eles não o fizeram porque não há mecanismos viáveis para isso, sendo esse processo muito caro e desafiador devido às diferenças culturais”. 

Sun, como os demais entrevistados, destacou a falta de capacidade operacional e estratégias robustas nos países parceiros: “Os desafios em muitos países estão, na verdade, na falta de políticas bem elaboradas para promover isso, bem como na falta de recursos humanos para absorver o know-how tecnológico”.

Hove descreveu de forma semelhante os recursos humanos como um fator importante na transferência de tecnologia e conhecimento: “Não se pode colocar habilidades e conhecimentos em um contêiner. Mesmo que houvesse algum livro didático ou arquivo da Wikipedia que pudesse ser transferido, isso não resolveria o desafio fundamental de recursos humanos que os países em desenvolvimento enfrentam”.

O potencial de superar tais restrições e criar o ambiente para essas trocas pode ser visto nas experiências do Brasil – embora tanto Sun quanto Cumarú tenham afirmado que é difícil acompanhar iniciativas concretas e medir seus impactos, que tendem a ocorrer no longo prazo.

Ecoando o conceito de “coevolução” de Hove, Sun disse que isso “não deve ser um processo unidirecional, em que as empresas chinesas passam sua expertise para parceiros do Sul Global. Em vez disso, deve ser um processo de aprendizagem mútua, em que os atores chineses se envolvem com seus parceiros para desenvolver ou melhorar tecnologias limpas”.

Qiwen Cui contribuiu para a reportagem.

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