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Entrevista: ‘É do interesse da China apoiar os planos ambientais do Brasil’

Brasil pode ampliar a cooperação com a China para impulsionar sustentabilidade na diplomacia global, afirma Maiara Folly, da Plataforma CIPÓ
<p>Presidente da China, Xi Jinping, e do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, em cerimônia na qual foram assinados 37 novos acordos de colaboração entre os dois países, em Brasília, em 20 de novembro (Imagem: <a href="https://www.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/54152505337/in/album-72177720322077844">Ricardo Stuckert</a> / <a href="https://www.flickr.com/people/palaciodoplanalto/">Palácio do Planalto</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nd/2.0/">CC BY ND</a>)</p>

Presidente da China, Xi Jinping, e do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, em cerimônia na qual foram assinados 37 novos acordos de colaboração entre os dois países, em Brasília, em 20 de novembro (Imagem: Ricardo Stuckert / Palácio do Planalto, CC BY ND)

A recente visita do líder chinês Xi Jinping ao Brasil, para a cúpula do G20, fortaleceu os laços entre os dois países, resultando na assinatura de 37 novos acordos e no compromisso de intensificar a colaboração bilateral.

A China, maior parceira comercial do Brasil desde 2009, consolidou-se como uma importante investidora na expansão de energia renovável, infraestrutura e produção de veículos elétricos no país sul-americano, entre outros setores estratégicos.

Apesar da intensa especulação antes da reunião bilateral, o presidente Luís Inácio Lula da Silva não aderiu à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), principal programa de investimento chinês em infraestrutura mundial. Ainda assim, ambos os países concordaram em “buscar sinergias” entre a BRI e as estratégias de desenvolvimento do Brasil, além de reforçar o diálogo entre a China e o Mercosul.

Em entrevista ao Dialogue Earth durante a COP29 no Azerbaijão, Maiara Folly, cofundadora e diretora-executiva da Plataforma CIPÓ — instituto de pesquisa sobre clima e governança —, destacou o potencial de cooperação entre Brasil e China para impulsionar a sustentabilidade.

Folly também analisou o papel do Brasil na diplomacia climática e energética global, com sua atuação em fóruns como o G20 e Brics, além das estratégias de transição verde de parceiros como os Estados Unidos e a União Europeia.

Maiara Folly
Maiara Folly, cofundadora e diretora-executiva da Plataforma CIPÓ, na COP29, no Azerbaijão (Imagem: Fermín Koop)

Dialogue Earth: O Brasil há muito tempo tem reafirmado seu compromisso com a autonomia e o não alinhamento em sua política externa. Com as mudanças políticas em curso, especialmente após as recentes eleições nos Estados Unidos, você enxerga desafios ou possíveis mudanças nesse posicionamento, particularmente nas áreas de clima e meio ambiente?

Maiara Folly: O Brasil busca adotar uma abordagem pragmática em sua política externa, mantendo boas relações tanto com a China quanto com os Estados Unidos. Em grande parte, isso tem funcionado bem, com algumas exceções no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Contudo, a eleição de Donald Trump pode complicar esse equilíbrio. Não é segredo que Lula e Trump têm visões bastante diferentes sobre geopolítica, a agenda climática e direitos humanos.

Lula, com sua ampla experiência em política externa, buscará manter um relacionamento pragmático com os EUA. A tendência é que atores subnacionais, como parlamentares e governadores, tenham um papel mais ativo no relacionamento bilateral. Mas isso pode gerar desafios em espaços multilaterais, especialmente diante da possibilidade de uma saída dos EUA do Acordo de Paris. Com o Brasil sediando a COP30, será importante garantir o engajamento dos EUA nas discussões climáticas para fortalecer os esforços globais e o protagonismo brasileiro no tema.

Há um alinhamento crescente entre as visões de desenvolvimento, meio ambiente e

cooperação Sul-Sul

entre China e Brasil. Como você descreveria a parceria entre os dois países e as perspectivas para o futuro dessa relação?

A relação bilateral entre Brasil e China ganhou relevância com a China consolidada como a maior parceira comercial do Brasil. Grupos ambientalistas, no entanto, expressam preocupações sobre os impactos dessa relação comercial e defendem que a sustentabilidade seja um pilar central na parceria. Apesar disso, há um interesse de ambas as partes em integrar práticas sustentáveis à relação bilateral.

A China, como principal importador de produtos que pressionam a Amazônia, adota uma posição de não interferência na legislação e nas políticas de outros países. Essa postura gera confiança no Brasil, especialmente em contraste com as medidas comerciais da União Europeia [como a regulamentação contra o desmatamento, amplamente criticada no país]. O fato de a China ter uma abordagem diferente cria uma oportunidade para um relacionamento positivo.

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Gado pasta em campo de Gaúcha do Norte, Mato Grosso. China é a principal importadora de produtos que pressionam a Amazônia, como carne bovina e soja (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

Há confiança de ambos os lados para se ter um relacionamento positivo, recompensando quem [empresas e produtores] adota práticas sustentáveis. O Brasil tem uma legislação ambiental forte, com um plano concreto para reduzir o desmatamento. Não é uma tarefa fácil, requer dinheiro e tecnologia. E como a China tem grande interesse em comprar produtos do Brasil, inclusive para sua segurança alimentar, é do interesse da China apoiar o Brasil nesses compromissos.

Quanto à UE, algumas de suas políticas ambientais, como o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM) — seu “imposto de carbono” sobre as importações — enfrentaram

fortes críticas

do Brasil, diretamente e em fóruns como a COP. Com a mudança do cenário político na Europa, como você acredita na evolução da cooperação com o Brasil?

O Brasil mantém um relacionamento sólido com a UE, mas a aprovação do CBAM e da regulamentação europeia sobre desmatamento trouxe tensões a essa parceria. Essas medidas, embora apresentadas como iniciativas para combater as mudanças climáticas, foram duramente criticadas pelo Brasil e por outros países em desenvolvimento, que as veem como ferramentas de caráter protecionista disfarçadas de políticas ambientais.

Esse contexto tensionou a relação bilateral entre o Brasil e a UE e repercutiu também nos espaços multilaterais. A declaração conjunta no G20, por exemplo, expressou preocupações sobre medidas comerciais unilaterais. Além disso, o Brasil, junto com o G77 e a China, tem buscado debater o tema no âmbito da convenção climática das Nações Unidas. No entanto, dado o princípio do consenso que rege as decisões desta convenção, alcançar avanços sobre o tema será um grande desafio.

Se outros aspectos da política climática, como o financiamento, estivessem funcionando e houvesse transferência de tecnologia dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, a agenda comercial não seria tão polêmica. No entanto, os países desenvolvidos não estão cumprindo sua parte, e suas medidas acabam tendo um impacto desproporcional nos países em desenvolvimento.

Para o Brasil, isso pode afetar sua economia e setores específicos que possivelmente não conseguirão atender à legislação. Além disso, trata-se também de uma questão de equidade dentro do sistema multilateral.

Sobre a transferência de tecnologia e outras áreas, você

havia mencionado

a importância de que as parcerias internacionais do Brasil sejam mutuamente benéficas. Como isso pode ser incentivado?

Precisamos construir relações em que todas as partes sejam beneficiadas. Esse objetivo, no entanto, enfrenta desafios significativos, principalmente devido à desconfiança mútua entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, especialmente no que diz respeito às finanças, mas também em aspectos mais amplos.

O Brasil e outras nações em desenvolvimento têm reiterado a necessidade de reformar a arquitetura financeira internacional, mas os avanços têm sido limitados nas últimas décadas. Embora alguns progressos estruturais tenham sido feitos, eles estão longe de atingir a escala e a velocidade exigidas pelas atuais demandas globais.

Em algumas iniciativas, o Brasil avançou. Um exemplo é o fundo Tropical Forest Forever, criado para recompensar países que mantêm suas florestas em pé. Enquanto os mecanismos atuais oferecem compensação apenas para aqueles que reduzem o desmatamento, este fundo busca assegurar investimentos mesmo após alcançar o desmatamento zero, garantindo a preservação contínua das florestas. O Brasil dialoga com parceiros na Europa e nos EUA para obter apoio financeiro e viabilizar o funcionamento desse mecanismo até a COP30 [em 2025]. Essa iniciativa tem o potencial de fortalecer a confiança entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Além disso, o Brasil lançou uma plataforma de investimento como parte de seu plano de transformação ecológica. A proposta é desenvolver uma carteira diversificada de projetos, promovendo uma transição ecológica robusta e integrada.

President Lula da Silva and European Commission President Ursula von der Leyen shake hands in front of a European flag
Presidente Lula cumprimenta a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no G20 no Rio de Janeiro, em novembro de 2024. O Brasil busca parceiros na Europa e nos EUA para apoiar projetos como o fundo Tropical Forest Forever (Imagem: Ricardo Stuckert / Palácio do Planalto, CC BY ND)

No nível macro, as eleições nos Estados Unidos e as alterações em algumas dinâmicas políticas na Europa podem representar obstáculos ao avanço de reformas estruturais em governança, arquitetura financeira e ação climática. No entanto, em projetos específicos, surgem oportunidades, e o Brasil tem trabalhado duro para reconquistar a confiança internacional. Esse trabalho pode trazer benefícios para a economia do país e contribuir para um ambiente favorável nos espaços multilaterais, especialmente na preparação para a COP30.

A

declaração dos líderes do G20

cobrou “transições energéticas justas e inclusivas”. Como o Brasil está incorporando esse conceito e implementando ações concretas no país, especialmente em setores que enfrentarão os maiores desafios nessa transição?

A transição justa é uma área marcada por divergências de visões entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e até mesmo dentro desses grupos. As nações desenvolvidas geralmente adotam uma visão mais limitada da transição justa, focando principalmente nos direitos dos trabalhadores e no retreinamento de mão de obra de setores poluentes para setores mais sustentáveis, especialmente no setor energético.

Já para as nações em desenvolvimento, a transição justa vai além, abrangendo adaptação climática, outros setores econômicos, e questões mais amplas, como a redução da desigualdade, o combate à pobreza e à fome, assegurando que essas dimensões sejam integradas aos planos climáticos.

Para a COP30, a incorporação da equidade e da justiça na política climática será um dos focos do Brasil. Internamente, o país já avança com seu plano de transformação ecológica e, no G20, tem incentivado outros países a adotar abordagens semelhantes.

Este ano, o G20 aprovou princípios para transições energéticas justas e inclusivas, com a incorporação de mecanismos de proteção social na política climática, a consideração de direitos humanos e a mitigação dos impactos ambientais relacionados à transição justa. São princípios amplos que agora precisam ser operacionalizados em diferentes contextos.

Enquanto isso, a Colômbia

propôs

, no mês passado, uma iniciativa visando à responsabilidade e à rastreabilidade da cadeia de produção de minerais críticos, instando os países a adotar um acordo sobre o tema na COP30. Paralelamente, a ONU

apresentou este ano um relatório

com princípios para orientar a extração desses minerais. Como um

crescente produtor

de lítio, o Brasil pode assumir a liderança nessas discussões?

Os países do Sul Global não consideram mais aceitável a prática de exportar matérias-primas e importar tecnologias verdes. Para o Brasil, a situação é a mesma, mas o país tem uma vantagem: um nível de industrialização relativamente maior. Isso permite ao país avançar para agregar mais valor à sua cadeia de suprimentos, contribuindo para romper com esse padrão desigual de comércio. Mas é muito difícil ter influência quando se tem uma concentração de tecnologia em apenas poucos estados. É nesse ponto que há potencial para a cooperação Sul-Sul. Países que detêm minerais essenciais podem formar alianças e criar um poder de negociação coletiva para tentar avançar na transferência ou no co-desenvolvimento de tecnologia.

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Usina de processamento de lítio no Vale do Jequitinhonha, no estado de Minas Gerais. Folly diz que os países do Sul Global não consideram mais aceitável exportar matérias-primas e importar tecnologias verdes (Imagem: Gil Leonardi / Imprensa MG)

O Brasil desempenha um papel importante na diplomacia global como presidente do G20 este ano, além de anfitrião da COP30 e presidente dos Brics em 2025. Como o país pode aproveitar essa posição para promover ações positivas nas transições verdes?

Na presidência do G20, o país tinha três prioridades: reforma da governança global; redução da pobreza e da fome; e desenvolvimento sustentável e transições justas. Haverá ênfase semelhante na presidência do Brics. A essência dos Brics tem sido a defesa de um multilateralismo justo e mais inclusivo e da reforma da governança global. A sustentabilidade pode ser um tema que ligue os três processos, mas tem sido muito difícil chegar a consensos, como acabamos de ver com o G20. A declaração dos líderes em relação ao clima ficou aquém do que esperávamos. A linguagem foi enfraquecida em comparação com as declarações anteriores do G20.

O Brasil é o país do G20 com a

maior participação de energias renováveis

em sua matriz elétrica. Mas ainda depende de combustíveis fósseis para a exportação e quer seguir expandindo sua extração. Como ele pode promover uma transição justa em meio a essa realidade?

Precisamos fazer a transição dos combustíveis fósseis, e precisamos fazê-lo rapidamente. A maioria dos países não está no caminho certo, incluindo o Brasil. Estamos em uma posição privilegiada, já que a maior parte da eletricidade do país vem de fontes renováveis, e temos o potencial de expandir, mas com cautela diante dos impactos socioambientais.

Temos um governo que coloca a agenda climática como uma de suas prioridades. Mas os combustíveis fósseis são um tema politicamente sensível, e o setor é muito forte. Temos uma das maiores empresas de petróleo do mundo. É um tema que provoca tensões dentro dos ministérios no governo, portanto, dependerá de quem vencerá a disputa.

Também é importante avançar em nível internacional. O setor gera emprego e renda para muitos países, embora essa distribuição não seja igualitária. Não é realista esperar que o Brasil faça uma transição completa dos combustíveis fósseis sem que suas restrições financeiras sejam atenuadas.

Precisamos de financiamento climático e mudanças profundas na arquitetura financeira para que os países do Sul Global possam tomar empréstimos sem gerar altos níveis de endividamento. Muitos países precisam decidir agora se investem no clima ou pagam suas dívidas. A conta não bate. O único caminho viável é acelerar os avanços no aspecto financeiro e que seja bem mais rápido.