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Equador discute mercados de carbono, mas esbarra na Constituição

Enquanto empresas e autoridades equatorianas veem com otimismo os mercados de carbono, povos indígenas alertam para a falta de informações e consultas adequadas
<p>Músico quéchua da comunidade de San Carlos, província de Orellana, Equador. Muitos povos indígenas da Amazônia equatoriana têm uma relação ancestral com a floresta e não querem empacotar os serviços ecossistêmicos na forma de ativos financeiros (Imagem: Flor Ruiz / Dialogue Earth)</p>

Músico quéchua da comunidade de San Carlos, província de Orellana, Equador. Muitos povos indígenas da Amazônia equatoriana têm uma relação ancestral com a floresta e não querem empacotar os serviços ecossistêmicos na forma de ativos financeiros (Imagem: Flor Ruiz / Dialogue Earth)

No Equador, a natureza é considerada um sujeito de direitos conforme a Constituição de 2008. O artigo 74 da Carta Magna também reforça que “os serviços ambientais não podem ser apropriados” e sua “produção, prestação, uso e exploração serão regulados pelo Estado”.

Desde junho de 2023, quando o Ministério de Meio Ambiente publicou as diretrizes para a criação de um mercado voluntário de carbono, o país começou a discutir como esse sistema poderia se enquadrar no texto constitucional.

O artigo 74, criado para proteger os ecossistemas, levanta questões que o Equador busca esclarecer: quem está autorizado a vender créditos de carbono e de que maneira isso pode ser feito?

Em 17 de setembro, a Assembleia Nacional aprovou uma reforma no Código Orgânico do Meio Ambiente garantindo acesso aos mercados de carbono e à compensação econômica por serviços ambientais. O texto agora aguarda a sanção presidencial.

Enquanto isso, o impasse constitucional continua sem solução e deve ser analisado pela Corte Constitucional do Equador.

Venda de créditos de carbono

Os mercados de carbono operam por meio da compra e venda de certificados, gerados por atividades que diminuem ou evitam as emissões de gases de efeito estufa, como a proteção das florestas. Um crédito representa uma tonelada de dióxido de carbono equivalente (CO₂e), e seus principais compradores são empresas obrigadas a reduzir suas emissões.

Há dois tipos de mercados de carbono: os obrigatórios, geralmente regulamentados por órgãos nacionais ou internacionais e focados em setores com altos níveis de emissões; e os voluntários, procurados por empresas para reduzir ou compensar suas pegadas de carbono. Segundo estimativas do Ecosystem Marketplace, organização dedicada a estipular valores para os serviços ecossistêmicos, as negociações nos mercados voluntários atingiram mais de US$ 2 bilhões em 2021, praticamente quadruplicando os US$ 520 milhões de 2020 — embora esse valor tenha caído para US$ 723 milhões em 2023.

Agentes públicos e privados no Equador demonstram interesse em regulamentar esses mercados, acreditando que a falta de um marco legal resultou em perda significativa de receitas para o país que tem metade de seu território coberto por florestas.

“A má regulamentação pode fazer com que o país perca uma oportunidade única de se tornar líder regional no setor e atrair investimentos para lutar contra as mudanças climáticas”, escreveu Karina Barrera, ex-subsecretária de Mudanças Climáticas do Equador, em um artigo para o site ambiental Youtopia.

Os dispositivos constitucionais, aliados à falta de informações entre as partes interessadas, podem deslocar esse debate para outra esfera, colocando os planos do setor privado em oposição às necessidades dos povos indígenas.

Falta de informação ou consulta prévia

As 14 nacionalidades indígenas da Amazônia equatoriana têm uma relação ancestral com a floresta, e muitas são contrárias à ideia de empacotar os serviços ecossistêmicos na forma de ativos financeiros. 

“Essa desconfiança está baseada na ignorância, no histórico negativo de atividades de exploração ou em experiências fracassadas de programas governamentais que não atenderam plenamente às necessidades das comunidades”, disse ao Dialogue Earth Patricia Gualinga, ativista Quéchua e líder da comunidade Sarayaku, na província de Pastaza. 

Gualinga afirmou que, até o momento, não houve “nenhuma consulta adequada aos povos indígenas e nem participação efetiva” na elaboração do marco regulatório dos créditos de carbono. Ela contou que sua comunidade, Sarayaku, mapeou os serviços ambientais de seus 146 mil hectares de terra com a ajuda de especialistas. 

O povo Quéchua está preocupado com “os possíveis problemas gerados por agentes externos que querem tirar proveito dos serviços ambientais”, acrescentou Gualinga. Ela citou, por exemplo, a possibilidade de divisões internas nas comunidades, “como ocorreu com as atividades de petróleo e mineração”.

Indígenas equatorianos em caminhonete branca atravessam estrada próxima ao Parque Nacional Yasuní
Indígenas equatorianos atravessam estrada próxima ao Parque Nacional Yasuní, leste do país. Alguns líderes quéchua temem que a comercialização de créditos de carbono dividam suas comunidades, como ocorreu com o petróleo e a mineração (Imagem: Flor Ruiz / Dialogue Earth)

Poucas comunidades indígenas estão dispostas a falar abertamente sobre o assunto, e as informações oficiais são consideradas escassas. Um especialista em sustentabilidade de uma dessas comunidades, que falou ao Dialogue Earth sob condição de anonimato, disse que o silêncio evita “possíveis represálias estatais ou privadas”.

O governo equatoriano está preparando um guia sobre os mercados de carbono voltado para os povos que protegem as florestas. De acordo com uma reportagem do Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP), ele irá detalhar o processo de consulta para a criação de mercados de carbono, além de estabelecer salvaguardas para proteger os direitos das comunidades indígenas e tradicionais. O Ministério do Meio Ambiente do Equador disse ao CLIP ter usado materiais da ONU como referência para garantir o respeito a essas salvaguardas.

Entre esses materiais, há orientações para a compensação econômica de comunidades que promovem reflorestamento, agricultura sustentável e outras iniciativas. Esses projetos são conduzidos em coordenação com as autoridades ambientais dos respectivos países.

Em resposta ao CLIP, representantes do governo rejeitaram a alegação de que não houve consulta sobre a regulamentação do mercado voluntário de carbono antes de seu lançamento em junho de 2023. Segundo eles, houve um processo público aberto envolvendo mais de 1,4 mil pessoas de 202 instituições e 25 workshops. Entre elas, insistiram, havia participantes indígenas, inclusive da Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana, embora representantes da organização tenham afirmado não conhecerem a nova lei.

Líderes indígenas disseram ao CLIP que esse processo envolveu uma reunião via Zoom, seguida de um período de dez dias para comentários sobre o documento. Mas alguns entrevistados disseram ao CLIP que não sabiam da reunião ou do projeto de lei e destacaram as dificuldades de acesso a equipamentos eletrônicos entre as comunidades indígenas para realizar uma consulta efetiva.

Reforma do carbono

Nos últimos dois anos, a Assembleia Nacional do Equador tem trabalhado no marco legal que visa permitir a obtenção de receitas a partir de serviços ambientais — como a captura de carbono. Entre as mudanças legais, está a reforma do Código Orgânico do Meio Ambiente, objeto de discussão na Comissão de Biodiversidade.

Os parlamentares desta comissão enfrentam justamente a trava constitucional que proíbe a comercialização dos serviços ecossistêmicos no país.

Sessão da Comissão de Biodiversidade da Assembleia Nacional do Equador, em 12 de junho
Sessão da Comissão de Biodiversidade da Assembleia Nacional do Equador, em 12 de junho. O órgão tem discutido a criação de mercados de carbono enquanto aguarda uma posição da Corte Constitucional sobre o tema (Imagem: David Vela / Assembleia Nacional do Equador, CC BY-SA)

O deputado Milton Aguas, deputado da província de Galápagos pelo partido de esquerda Revolução Cidadã, disse ao Dialogue Earth que a comissão consultará a Corte Constitucional em busca de um parecer sobre o assunto: “Precisamos de uma avaliação tanto da Constituição quanto dos acordos internacionais assinados pelo país”.

Antes das alterações no Código Orgânico, ele contou que a comissão havia planejado incluir as comunidades na discussão das reformas. Isso, segundo ele, “ajudará o país a estabelecer processos específicos para que as comunidades, entidades privadas e governos locais possam se beneficiar economicamente dos projetos de conservação”.

Equador Carbono Zero

Um dos programas lançados para incentivar a medição e a redução das emissões de carbono é o Equador Carbono Zero, sendo implementado pelo governo equatoriano. De acordo com Ángel Sandoval, subsecretário de Mudanças Climáticas, o projeto busca estabelecer um sistema de compensação para reduzir emissões, que deverá ser regulamentado por uma norma técnica no próximo ano. 

A Equador Carbono Zero visa registrar qualquer empresa privada que deseje obter certificação por seus esforços de redução de emissões. Essa certificação concede acesso a incentivos fiscais e estará alinhada à nova legislação comercial da União Europeia, que entrará em vigor em 2027.

“As empresas que desejam reduzir sua pegada de carbono — seja para alcançar a neutralidade de carbono ou simplesmente para reduzir emissões — devem entrar em contato com essas iniciativas e, entre elas, chegam a um acordo sobre os preços de cada crédito de carbono”, explicou Sandoval. De acordo com ele, ao menos 547 empresas privadas já estão registradas no programa.  

A Aglomerados Cotopaxi é uma delas. Fundada em 1978, a empresa produz placas, moldes decorativos e peças de embalagens industriais. A companhia disse ter uma pegada de carbono negativa — ou seja, com operações que capturam mais CO₂ do que emitem.

Conforme a Aglomerados Cotopaxi, suas emissões anuais chegam a 34,7 mil toneladas de CO₂ equivalente, enquanto as árvores plantadas pela empresa ajudariam a remover 225 mil toneladas de dióxido de carbono da atmosfera. O saldo disso seria uma captura de 190,3 mil toneladas de carbono ao ano.

“Nossas propriedades somam 18,5 mil hectares, sendo 30% dedicadas à conservação, o que representa mais ou menos cinco mil hectares”, explicou María Gallardo, diretora de pesquisa e desenvolvimento florestal da Aglomerados Cotopaxi.

As compensações de carbono por meio de esquemas de plantio de árvores tornaram-se muito populares entre empresas e organizações que buscam reduzir sua pegada ecológica, mas têm sido cada vez mais cercadas de controvérsias, com preocupações sobre sua verificação e eficácia, levantando dúvidas sobre as reduções de emissões por empresas.

Desafio da transparência

Seja qual for o projeto, especialistas dizem que ele deve ter credibilidade. A especialista em financiamento climático Carina Sandoval acredita que o Equador deve aumentar a transparência de suas instituições — grande desafio que, segundo ela, gerará confiança entre os mercados estrangeiros.

“Tivemos um swap de dívida por natureza há um ano, e os relatórios ainda não saíram”, disse Sandoval, alegando que “não há transparência” nos processos de consulta pública relacionados ao projeto. Os swaps de dívida por natureza são acordos nos quais os países credores concordam em reduzir o valor da dívida de outro país, com a condição de que eles invistam em projetos de conservação. Em maio de 2023, o Equador garantiu o maior swap desse tipo registrado até o momento, com US$ 12 milhões por ano que devem ser destinados à conservação das Ilhas Galápagos.

Conforme especialistas, o choque fundamental de visões entre os atores sociais e econômicos dificulta a criação de modelos de compensação que realmente funcionem. Eles defendem que mais transparência e informações ajudariam tanto o setor privado quanto as comunidades indígenas a tomar melhores decisões.

A reforma do Código Orgânico do Meio Ambiente foi aprovada em meio a incertezas devido à atual crise energética do Equador, causada pelo impacto da grave seca em suas hidrelétricas. A votação ocorreu um dia antes do apagão nacional de 18 de setembro e passou quase despercebida pelos setores da sociedade civil, que, em grande medida, não têm conhecimento da reforma, das implicações legais e de quem ela beneficiará.

Em meio a esse cenário, o presidente Daniel Noboa terá 30 dias para vetar ou sancionar a lei aprovada pela Assembleia Nacional. Se houver veto total, o Legislativo não poderá revisar o texto por um ano. Por outro lado, o presidente pode vetar a reforma por motivos constitucionais e, nesse caso, a Corte Constitucional terá de emitir uma decisão. O destino da reforma agora está nas mãos do Executivo.