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Expansão de principal hidrovia na Argentina enfrenta resistências

Enquanto ambientalistas temem danos às áreas úmidas próximas, empresas criticam termos da licitação para novo operador da hidrovia Paraguai-Paraná
<p>Navio de carga navega pela hidrovia Paraguai-Paraná, rota crucial para as exportações argentinas que agora volta a enfrentar um polêmico processo de privatização (Imagem: Fundación Humedales)</p>

Navio de carga navega pela hidrovia Paraguai-Paraná, rota crucial para as exportações argentinas que agora volta a enfrentar um polêmico processo de privatização (Imagem: Fundación Humedales)

A hidrovia formada pelos rios Paraguai e Paraná é um dos corredores fluviais mais extensos e com maior biodiversidade do mundo: ela percorre mais de 3,4 mil quilômetros desde sua nascente no sul do Brasil, passa pelo Paraguai e chega até o estuário do Rio da Prata, na Argentina. 

Para a Argentina, essa também é uma rota estratégica pela qual o país escoa a maioria de suas exportações. Seu trecho nessa hidrovia permite que cerca de 80% de suas exportações, principalmente de origem agroindustrial, cheguem ao resto do mundo. 

A hidrovia atualmente está no meio de um polêmico processo de privatização promovido pelo governo de Javier Milei. Entre meados da década de 1990 e 2021, a concessionária Hidrovía SA ficou a cargo das obras de dragagem, sinalização e manutenção desse canal fluvial. Depois, sua gestão foi assumida pelo Estado, que lançou uma licitação em novembro de 2024 para definir o novo operador. 

O processo segue aberto até o fim de fevereiro e já atraiu o interesse de empresas europeias e chinesas. Porém, de acordo com diversas empresas interessadas, o governo está favorecendo uma única concorrente: a belga Jan De Nul, que, como sócia da Hidrovía SA, detinha a concessão até 2021.

Alguns pontos do edital foram criticados por seus riscos ambientais. Isso inclui as obras para ampliar e aprofundar o leito do Paraná, o que poderia impactar as áreas úmidas próximas, que prestam importantes serviços ecossistêmicos — da purificação da água à mitigação de eventos climáticos extremos. Além disso, as obras também poderiam agravar a crise hídrica que tem afetado o rio nos últimos cinco anos.

Mais obras, mais impactos

Desde o fim de 2021, a gestão do trecho mais navegado do Paraná está sem concessionária. Com a nova licitação, o governo busca levar obras e tecnologia que aumentem a capacidade operacional de navegação, fortalecendo a competitividade da economia argentina. 

Para isso, os documentos da licitação exigem que a empresa vencedora “modernize” a hidrovia não apenas dragando o leito do rio, mas também fornecendo radares e sistemas de satélite para rastrear navios. A concessionária deverá utilizar novos equipamentos de sinalização e medidas de controle mais rigorosas para combater o tráfico de drogas — atividade que se expandiu drasticamente na hidrovia na última década.

Há anos, alguns portos e exportadores de grãos vêm insistindo na necessidade de dragar a hidrovia para permitir a passagem de navios maiores, além de melhorar a logística das linhas de navegação que transportam grãos e aumentar o fluxo de exportação de matérias-primas.

Gustavo Idígoras, diretor da Câmara Argentina da Indústria de Óleo Vegetal e do Centro de Exportação de Cereais, observou que essa “é a única hidrovia argentina para se conectar com o mundo”. Segundo ele, essa rota é vital “não apenas para as exportações — já que mais de 85% delas passam por ali — mas também para as importações, considerando que 90% entram pelo Rio da Prata”.

Para Idígoras, a hidrovia está em condições obsoletas: “É como se o mundo tivesse evoluído para canais de cinco ou seis vias, enquanto aqui ficamos com uma via de mão única”. Os navios de carga maiores tem calados com pelo menos 44 pés (13,4 metros), explicou ele, mas o canal de navegação não ultrapassa os 34 ou 36 pés (10 m) em seus pontos mais profundos. Isso “gera muitas ineficiências” e faz com que a Argentina perca alguns negócios de carga para o Brasil, acrescentou.

Em 2020, um grupo do setor privado elaborou um estudo de viabilidade analisando as obras necessárias para expandir a capacidade operacional do canal. O estudo observou que, no trecho que vai da província de Santa Fé até o oceano, a hidrovia tem uma profundidade máxima de 10,3 metros. O documento propôs aumentá-la para 12,8 metros nas partes baixas do Paraná, próximas ao Rio da Prata e aos grandes portos.

Processo acirrado

A licitação envolve grandes obras de infraestrutura e um importante acordo comercial. “Estamos falando da maior obra do tipo no planeta: mais de mil quilômetros desde a confluência do Paraguai e do Paraná até o oceano, com um volume de negócios estimado entre US$ 10 e 12 bilhões em 30 anos”, disse Alfredo Sesé, secretário técnico da comissão de transporte e infraestrutura da Bolsa de Valores de Rosário (BCR).

As condições exigidas nos documentos da licitação provocaram críticas de várias operadoras do setor, que veem um negócio supostamente feito sob medida para a antiga concessionária Jan De Nul. 

Dois gigantes globais da dragagem, a belga Dredging International (Deme) e a dinamarquesa Rohde Nielsen, entraram com um recurso administrativo para que a licitação fosse suspensa, alegando que se trata de um processo “direcionado de forma irregular”. 

“Foi aprovado um edital que concede vantagens competitivas imbatíveis à atual empresa de dragagem, o que poderia desestimular e até mesmo inviabilizar a apresentação de novas propostas por novos operadores”, observou a Deme em sua ação.

O governo evitou se manifestar publicamente sobre a polêmica em torno da licitação, embora a Agência Nacional de Portos e Navegação tenha considerado os termos da concessão “muito exigentes”. “Nenhum dos candidatos qualificados para participar será deixado de fora”, disse a agência ao site Infobae. A Jan de Nul não comentou as acusações.

Certos pontos do edital também despertaram interesse e dúvidas entre analistas. O governo argentino afirmou que as empresas “controladas, direta ou indiretamente, por Estados soberanos ou órgãos estatais” não podem se candidatar — o que excluiria a Shanghai Dredging Company, da China, que havia manifestado interesse.

A exclusão ocorre em um cenário de tensão do governo Milei com a China. De acordo com Agustina Marchetti, pesquisadora de relações internacionais da Universidade de Rosário, o caso demonstra uma política externa “oscilante” na Argentina, que varia entre “princípios ideológicos de ataque ao comunismo e o pragmatismo para fazer negócios”.

“Milei repetiu muitas vezes que não iria se alinhar com os comunistas, embora possa mais tarde ceder ao pragmatismo e à necessidade de negociar com a China”, acrescentou Marchetti. 

Embora essa cláusula “afete indiretamente as relações bilaterais”, ela não ofusca a necessidade de continuar negociando com a China e de fortalecer o relacionamento comercial, argumentou Marchetti: “A China é um ator relevante, mas os laços são marcados por essa constante dualidade”.

Para Idígoras, a presença dessa cláusula deve ser vista como uma posição de soberania da Argentina, e não seria direcionada a um país em específico, pois “deixa de fora o Exército dos EUA, empresas chinesas e certamente empresas europeias”. Segundo ele, “esse termo é o mesmo que se vê nos contratos na Europa ou nos Estados Unidos, e não deixa de ser uma decisão soberana”.

Idígoras diz que o mais importante é conseguir “um contrato sólido e bom”.

The current bidding process has a high degree of precariousness and lack of foresight
Juan Venesia, coordenador do programa de infraestrutura da Universidade de Rosário

Juan Venesia, diretor do Instituto de Desenvolvimento Regional e coordenador do programa de infraestrutura da Universidade de Rosário, descreveu o atual processo de licitação como algo realizado às pressas e sem o planejamento adequado, criando um “alto grau de precariedade e falta de visão”.

“Muitas questões reivindicadas por anos não apareceram, como a criação de um órgão de controle e espaços para a participação das províncias. Isso foi feito em poucas semanas para algo que levará muito tempo”, disse ele, alegando que isso “tira a seriedade da licitação”.

Impactos socioambientais

Em meio às tensões políticas, organizações ambientais têm alertado sobre os efeitos da dragagem e do aumento do tráfego fluvial. A organização Fundación Humedales solicitou a realização de estudos de impacto ambiental, bem como uma avaliação dos custos desse megaprojeto nos últimos 30 anos. “É urgente projetar os impactos de uma nova concessão que aumentará a profundidade de dragagem do canal”, disse Nadia Boscarol, coordenadora nacional do Programa Corredor Azul na organização

Ela observou que todo o sistema fluvial está passando por uma crise hídrica “sem precedentes” associada aos seus usos produtivos. A seca do rio não teve precedentes em mais de um século, com um baixo fluxo do rio devido à escassez de chuvas e às mudanças no uso do solo.

Conforme a Associação Argentina de Advogados Ambientais, ainda há pouca informação sobre os impactos socioambientais de obras dessa magnitude. Porém, “estudos mostram como a dragagem e os equipamentos de sinalização impactam o ecossistema, bem como a circulação de navios”, disse Rafael Colombo, um dos fundadores do grupo. “Isso gera muita incerteza quando se trata de tomar decisões de políticas públicas”.

Gado circula em área úmida do Delta do Paraná
Gado circula em área úmida do Delta do Paraná. Especialistas afirmam que o rio Paraná está passando por uma “crise sem precedentes” e que a expansão da dragagem poderia afetar o ecossistema de áreas úmidas próximo ao rio (Imagem: Fundación Humedales)

Para Colombo, o rio Paraná “está passando por uma crise sem precedentes” e não está recebendo a devida atenção. “Parece que a única solução que eles conseguem encontrar para garantir a navegabilidade 365 dias por ano é ampliar a dragagem”, acrescentou.

Luis Espínola, especialista em ecologia de peixes de água doce do Instituto Nacional de Limnologia, disse que ainda faltam informações sobre os impactos da hidrovia. “É difícil calcular o efeito sobre o ecossistema, porque não há estudos anteriores que nos permitam fazer comparações. Há alguns estudos, mas eles são mais revisões de literatura do que qualquer outra coisa”, observou. 

Espínola é um dos autores de um relatório de 2021 que alerta sobre os possíveis impactos das obras no curso d’água. O relatório afirma que os efeitos sobre a biodiversidade incluem a erosão das margens dos rios, alterações na composição da água e aumento da mortalidade de ovos e larvas de peixes devido às turbinas e aos efeitos das ondas. Ele também alerta para os resíduos gerados pelos navios, bem como possíveis vazamentos e outras poluições geradas pelos portos e grandes embarcações.

Para a bióloga Nadia Boscarol, da Fundación Humedales, é “muito complexo” determinar os impactos das obras. “O rio é muito dinâmico e é difícil discernir quais mudanças são naturais e quais são efeito da dragagem. Mas em uma época de eventos climáticos extremos, a água tenderá a fluir mais rapidamente com uma profundidade maior, gerando mais erosão. Esse é o principal perigo”, acrescentou.

O governo argentino deve tornar públicas as ofertas recebidas para a licitação em 12 de fevereiro. Apesar das acusações de favorecimento irregular, das ações legais lançadas contra a licitação e das iniciativas para reestruturar a agência estatal que controla a hidrovia, o governo ainda pretende confirmar a nova concessionária até abril.