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Qual será o futuro do Global Gateway na América Latina?

Com bilhões de euros prometidos, o programa enfrenta desafios após as eleições no Parlamento Europeu e com a crescente presença chinesa na região
<p>Lançamento de serviço de internet em Domingodó, noroeste da Colômbia, em julho. A União Europeia anunciou planos para apoiar as metas do governo colombiano de expandir a conectividade digital para 85% da população até 2026 (Imagem: <a href="https://flickr.com/photos/197399771@N06/53836051340/in/album-72177720318482356">Joel González</a> / <a href="https://flickr.com/photos/197399771@N06/albums/72177720318482356/with/53836067405/">Presidência da Colômbia</a>, <a href="https://creativecommons.org/publicdomain/mark/1.0/">Domínio Público</a>)</p>

Lançamento de serviço de internet em Domingodó, noroeste da Colômbia, em julho. A União Europeia anunciou planos para apoiar as metas do governo colombiano de expandir a conectividade digital para 85% da população até 2026 (Imagem: Joel González / Presidência da Colômbia, Domínio Público)

No ano passado, a União Europeia (UE) anunciou investimentos de 45 bilhões de euros para a América Latina, em um movimento que analistas interpretaram como uma tentativa de recuperar influência frente ao avanço da China na região.

Sob a bandeira do programa Global Gateway, o bloco europeu lançou mais de 130 projetos focados em setores estratégicos como lítio, energias renováveis, hidrogênio verde, transporte e saúde ao longo de quatro anos para a América Latina. 

No entanto, as eleições parlamentares na UE em junho levantam dúvidas sobre o futuro da iniciativa. Embora políticos pró-europeus tenham conseguido manter a maioria no Parlamento, partidos de extrema direita — menos preocupados com a integração regional e o meio ambiente — ganharam novos assentos. 

“O avanço da extrema direita complica o cenário político europeu, porque aumenta a tendência de fragmentação, reduzindo o papel de liderança e a presença internacional [do bloco]”, disse Gabriel Merino, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (Conicet).

Especialistas estão divididos quanto ao impacto que essas mudanças na dinâmica política terão sobre os projetos do Global Gateway.

Cenário político conturbado

Os cinco anos desde as últimas eleições da UE em 2019 foram marcados por turbulências. O bloco enfrentou um delicado contexto socioeconômico no pós-pandemia, incertezas sobre o fornecimento de alimentos e energia devido à guerra na Ucrânia, disputas geopolíticas com a China e novos desafios na agenda climática a partir do Acordo Verde Europeu.

Embora o avanço da extrema direita na Europa tenha sido menor do que o esperado, esse movimento pode enfraquecer o debate ambiental e fortalecer tendências nacionalistas e políticas anti-imigração, segundo Juan Carlos Pérsico, coordenador do departamento de Europa do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de La Plata, na Argentina.

A reeleição de Ursula von der Leyen para presidir a Comissão Europeia foi um sinal de continuidade. No entanto, houve mudanças nas bancadas de países europeus de peso, como a França, onde a extrema direita liderada por Marine Le Pen obteve uma vitória esmagadora. Na Alemanha, os extremistas da Alternativa para a Alemanha ficaram em segundo lugar. Na Itália, o partido governista Irmãos da Itália, liderado pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, venceu a disputa.

Ursula von der Leyen, com paletó rosa e calça preta, caminha ao lado de dois homens na Cúpula Celac-EU
Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na Cúpula Celac-EU, em julho de 2023. O evento reuniu líderes europeus e presidentes da América Latina e do Caribe, com o lançamento do programa Global Gateway na região (Imagem: Ministério de Relações Exteriores da Letônia / Flickr / C BY-NC-ND 2.0)

Os quase 25% dos votos obtidos pela extrema direita representam um crescimento expressivo em comparação aos 10% há duas décadas e aos 4% há 40 anos. No entanto, os partidos da direita radical na UE divergem em diversos pontos, o que limita sua coesão e enfraquece seu poder político.

O Parlamento Europeu define o orçamento do bloco e as diretrizes que regem a Comissão Europeia, o órgão executivo da UE. No entanto, apesar da nova configuração política, o financiamento do Global Gateway não será afetado no curto prazo, segundo Ilse Cougé, diretora da divisão de cooperação da UE na Argentina.

“Os fundos alocados para a América Latina foram acordados até 2027 e não serão alterados. Depois de 2027, continuaremos com nossa estratégia de longo prazo do Global Gateway, mas teremos que considerar o novo contexto político”, disse Cougé. “Enquanto houver interesse mútuo entre a UE e a América Latina, espero que sigamos desenvolvendo essa estratégia”.

Relação entre América Latina e UE

O comércio de serviços e produtos entre a UE e a América Latina e o Caribe atingiu US$ 369 bilhões entre 2021 e 2022, aumento de 39% em relação a 2013. Já os investimentos da UE na região chegaram a US$ 693 bilhões em 2021, aumento de 45% em relação a 2013.

O comércio entre a UE e o Mercosul — que reúne Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e, desde julho, Bolívia — atingiu US$ 110 bilhões em 2023. Embora o bloco europeu seja o segundo maior parceiro do Mercosul, houve uma queda no volume do comércio bilateral se comparado a outros mercados.

Enquanto isso, a China emergiu como o maior parceiro comercial do Mercosul na última década, absorvendo 29% das exportações do bloco e fornecendo 25% de suas importações.

Na agenda latino-americana do Global Gateway, fontes da Comissão Europeia destacaram projetos prioritários como a produção de hidrogênio verde na Argentina e no Chile; a exploração de lítio no Cone Sul; a construção de portos e ferrovias no Brasil; a mobilidade elétrica na Colômbia, na República Dominicana e na Costa Rica; o abastecimento de água e saneamento básico em Barbados e na Guatemala; energias renováveis em Cuba, Honduras e Trinidad e Tobago; a conectividade na Colômbia e em El Salvador; além de um programa para a Amazônia focado na redução de emissões de carbono. 

Em comparação a iniciativas anteriores da UE na América Latina, o Global Gateway dá mais ênfase ao setor privado. “No caso da Argentina, temos trabalhado para colocar as empresas europeias em contato com as autoridades nacionais e provinciais para visitar as operações de lítio”, disse Cougé. “A intenção não é apenas investir no segmento de extração e operação, mas também na construção de cadeias de valor”.

Um ano após o lançamento do Global Gateway, dados oficiais mostram que há 59 projetos ativos na região, embora o grau de progresso de cada um não tenha sido detalhado. Na Argentina, a delegação europeia admitiu que resultados concretos ainda não foram alcançados, mas espera anunciar investimentos e projetos de cooperação nos próximos meses.

Carro elétrico branco com logo da CEPM na República Dominicana
Carro elétrico na República Dominicana, que deve receber recursos europeus para o transporte urbano sustentável. A mobilidade elétrica representa uma parcela muito pequena da frota do país caribenho (Imagem: Governo de Danilo Medina / Flickr, CC BY-NC-ND)

Transição energética

Cornelia Schmidt Liermann, ex-presidente do comitê de relações exteriores no Congresso argentino, acredita que o recente interesse da UE na América Latina tem motivação geopolítica. 

“É uma resposta ao avanço da China e à necessidade de recursos energéticos e alimentares decorrentes da situação de guerra na Ucrânia”, observa ela. “A Europa busca alternativas aos suprimentos da China, de forma semelhante aos Estados Unidos”.

Um dos pilares do Global Gateway é a transição energética, alinhada aos compromissos da UE no Acordo Verde Europeu, sua principal estratégia para reduzir emissões de carbono. Com o transporte respondendo por um quarto das emissões do bloco, os setores de energia e minerais essenciais para a eletrificação de veículos tornaram-se prioridades para as indústrias europeias.

Schmidt Liermann acredita que há poucas chances de a agenda verde perder relevância na UE, mesmo com o avanço do negacionismo da extrema direita. “Tanto o Parlamento Europeu quanto a Comissão Europeia têm a agenda verde como prioridade”, disse Schmidt. “A ‘Grande Coalizão’ formada pelos partidos tradicionais bloqueará qualquer tipo de proposta para desmontar a agenda ambiental”.

Papel da China

O Global Gateway é visto por analistas como a resposta europeia à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), bandeira sob a qual a China tem expandido sua presença mundo afora por meio de projetos de investimento e infraestrutura. Como parte da iniciativa, a China assinou mais de 200 acordos de cooperação, além de 30 parcerias com organizações internacionais. Até meados de 2023, os investimentos do programa ultrapassaram US$ 1 trilhão em uma década.

Gabriel Merino, do Conicet, disse que a UE está “começando a definir a China como uma ameaça sistêmica, em uma linha mais parecida com a dos EUA”. Por meio do Global Gateway, o bloco europeu rejeita a BRI “e, em vez disso, lança sua própria iniciativa para tentar recuperar a proeminência e influência no Sul Global”.

Mas o potencial da iniciativa no Sul Global enfrenta limitações, como a estagnação econômica do bloco europeu e a perda de liderança em setores-chave, como a tecnologia renovável, apontou Merino. Enquanto isto, fabricantes chineses têm dominado o fornecimento global de equipamentos para a energia solar e eólica, provocando uma queda de preços que tem contribuído para a expansão dessas fontes em países como o Brasil.

No início do ano, analistas do Instituto Real Elcano, da Espanha, sugeriram outros desafios para o Global Gateway, mencionando a suposta falta de “procedimentos institucionais claros para propor, formular e implementar projetos”. Isso, segundo eles, gera “confusão sobre os mecanismos de obtenção de recursos financeiros e critérios de priorização de projetos”.

Há também uma grande diferença nas somas envolvidas: enquanto a BRI lançou projetos que somaram US$ 1 trilhão em todo o mundo, o Global Gateway tem como meta investir US$ 300 bilhões até 2027, observaram os analistas. 

Segundo a pesquisadora argentina Juliana González Jáuregui, em entrevista ao Dialogue Earth no início do mês, a Europa simplesmente “não tem a força financeira da China”. Além disso, seu foco na iniciativa privada pode levá-lo a “ficar para atrás” nos projetos renováveis na América Latina.

Outros analistas alertaram sobre os riscos de o Global Gateway tentar competir com os altos investimentos da BRI. Em vez de focar em volume, eles sugerem que a Europa adote uma abordagem mais qualificada e estratégica. 

“A abordagem extrativista da BRI gera pouquíssimos desenvolvimento industrial e empregos qualificados nos países beneficiários. É um dispositivo para aumentar a independência de Beijing ao custo de aumentar a dependência de seus parceiros: isso é exatamente o que a UE deve evitar”, escreveu o analista político José Ignacio Torreblanca para o Conselho Europeu de Relações Exteriores, no ano passado.

Para a América Latina, a cooperação com governos, empresas e organizações europeias pode abrir oportunidades em setores ligados a novas tecnologias, especialmente na transição energética. Também pode ajudar a diversificar as fontes de recursos, num momento em que o perfil do investimento chinês está mudando, com foco em projetos menores, em vez dos grandes planos de infraestrutura financiados por empréstimos estatais que dominaram a última década.