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Chinesa Sinohydro: uma década de operação conflituosa na Bolívia

Construtora opera seis projetos no país em meio a denúncias de danos ambientais, violações trabalhistas e má qualidade das obras
<p>Obra da hidrelétrica de Ivirizu, em Cochabamba, um dos seis projetos operados na Bolívia pela construtora chinesa Sinohydro. O projeto tem enfrentado críticas de organizações sociais por seus impactos ambientais (Imagem: Agencia Boliviana de Información)</p>

Obra da hidrelétrica de Ivirizu, em Cochabamba, um dos seis projetos operados na Bolívia pela construtora chinesa Sinohydro. O projeto tem enfrentado críticas de organizações sociais por seus impactos ambientais (Imagem: Agencia Boliviana de Información)

Na madrugada de 6 de maio, uma onça-pintada foi atropelada por um veículo próximo às obras de ampliação da rodovia Cochabamba-Santa Cruz, no centro-leste da Bolívia. O acidente teria passado despercebido não fosse pelo que aconteceu na sequência.

Após denúncias, agentes da polícia florestal encontraram a cabeça do animal decepada e três membros parcialmente enterrados. Já a pele da onça estava estendida em uma tábua nas instalações da construtora chinesa Sinohydro, responsável pelas obras.

Autoridades suspeitam que o corpo da onça tenha sido desmembrado para a venda. Três funcionários da Sinohydro foram implicados, mas não presos. O motorista que atropelou o animal não foi identificado. Conforme o jornal La Región, outros funcionários da empresa ajudaram a recuperar o corpo do animal.

O Ministério Público abriu uma investigação sobre o caso, que ganhou destaque nacional. Sandra Montaño, assessora jurídica do departamento de Cochabamba, confirmou que o governo regional também integra o processo. 

Pelo menos cinco leis bolivianas punem o biocídio e o tráfico de animais silvestres com até oito anos de prisão. A onça-pintada, classificada como “quase ameaçada” pela União Internacional para a Conservação da Natureza, é protegida na Bolívia.

O episódio é um dos casos polêmicos que envolve a Sinohydro desde que chegou à Bolívia, em 2013. Subsidiária da estatal PowerChina, a construtora opera em seis projetos de transporte e energia no país. Na última década, ela foi alvo de denúncias de organizações ambientais e autoridades por desmatamento, violações trabalhistas e má qualidade das obras concluídas.

Mapa com projetos da Sinohydro na Bolívia
(Fontes de dados: Administração Boliviana de Rodovias, Ende; Mapa: Dialogue Earth)

Conflitos socioambientais

A Sinohydro foi mencionada pela primeira vez na imprensa boliviana em 2017, relacionada a uma série de denúncias ambientais. O então deputado Tomás Monasterio — opositor ao presidente Evo Morales (2006-2019) — processou a Sinohydro pelo desmatamento de 6,8 hectares nas margens do rio Surutú, no departamento de Santa Cruz, o que aumentaria o risco de enchentes e ameaçaria comunidades locais. 

Quase um mês depois, ele entrou com um segundo processo contra a empresa por mais 1,8 hectares desmatados, dessa vez às margens do rio Piraí. No país, o corte de vegetação é proibido a menos de cem metros dos rios. Os dois casos, segundo o ex-deputado, teriam ocorrido em locais próximos às obras da rodovia Montero-Yapacaní, em Santa Cruz.

“Foi um desmatamento selvagem”, disse o ex-parlamentar ao Dialogue Earth. Ele disse que a equipe da Autoridade Florestal e Fundiária (ABT) também encontrou “resíduos tóxicos enterrados” durante a fiscalização em Surutú. 

Na época, a ABT multou a empresa em mais de 14 mil pesos (cerca de R$ 10 mil em valores atuais) para o primeiro caso e o dobro para o segundo. Ela também foi obrigada a reflorestar a área afetada. 

Em ambos os casos, a ABT confirmou que não havia autorização para desmatar o local. Porém, Humberto Nazra, fiscal de obras da Administração Boliviana de Rodovias, disse não acreditar que a Sinohydro tivesse agido de má-fé, destacando que a empresa reconheceu seus erros e estava cumprindo as ordens das autoridades.

Monasterio apresentou uma terceira denúncia. De acordo com ele, ao visitar o local desmatado às margens do rio Surutú, foi ameaçado por funcionários da Sinohydro, aliados da empresa e políticos favoráveis aos projetos: “Tive que fugir de Surutú”. 

O ex-deputado ficou surpreso ao ser informado, quando terminou seu mandato em 2021, de que suas três denúncias foram rejeitadas sob a alegação de falta de provas. Segundo ele, os crimes ambientais haviam sido demonstrados e já estavam sujeitos a multas.

Caso de Ivirizu

Em 2023, a Sinohydro enfrentou novas críticas na Bolívia ao ser mencionada em um relatório do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (Cescr, na sigla em inglês) sobre a hidrelétrica de Ivirizu. O pesquisador Franco Albarracín, do Centro Boliviano de Documentação e Informação (Cedib), apresentou um documento ao comitê sobre as atividades da China na América Latina e destacou que a obra afetou ao menos 280 hectares do Parque Nacional Carrasco, onde a usina está localizada. 

Albarracín disse que a obra “claramente tem um impacto negativo e provavelmente irreversível sobre a flora e a fauna” da região e que ela “afetou 18 comunidades nos municípios de Totora e Mizque”.

Construção da hidrelétrica de Ivirizu
Construção da hidrelétrica de Ivirizu. Pesquisador diz que obras destruíram 280 hectares do Parque Nacional Carrasco, onde o projeto está localizado (Imagem: Ministério de Hidrocarbonetos e Energia da Bolívia)

Marco Gandarillas, pesquisador de investimentos chineses da organização equatoriana Latinoamérica Sustentable, destacou a natureza “complexa” do projeto Ivirizu, que envolve “desde o desmatamento e o tratamento dos resíduos até a própria operação da usina”. 

Além disso, ele mencionou relatos de que as áreas protegidas tenham sofrido incursões de “colonos” — termo usado na Bolívia para se referir a pessoas da região andina que buscam terras na zona tropical. Segundo Gandarillas, esse movimento foi possível graças à construção de estradas para o transporte de trabalhadores e materiais da usina. 

Um relatório da Cedib observou que a área protegida foi alterada para beneficiar o projeto, cujo objetivo, segundo a Empresa Nacional de Eletricidade (Ende), seria gerar eletricidade para a exportação. O governo boliviano classificou a obra como “de interesse e prioridade nacional” um mês antes da mudança. Em maio de 2023, o Ministério de Hidrocarbonetos e Energia anunciou que o projeto estava com “mais de 86%” concluído.

Em 2020, mais de 50 organizações ambientais bolivianas enviaram uma carta à Sinohydro, reivindicando que a empresa publicasse seus estudos de impacto ambiental. O texto dizia que a obra “teria impactos irreversíveis” ao parque nacional, segundo Gandarillas. “Mas tanto a empresa quanto as autoridades bolivianas se recusaram a apresentar os estudos”, acrescentou.

No site da PowerChina em 2023, a Sinohydro destacou ter feito uma avaliação de impacto ambiental e obtido licenças de desmatamento em 2018, enfatizando seus esforços para aderir à legislação ambiental boliviana. A construtora também alegou ter “seguido rigorosamente” as medidas de proteção ambiental, “garantindo que a ecologia local não fosse danificada”.

Em seu site, a Ende defende que Ivirizu é uma “solução sustentável” aos desafios energéticos da Bolívia, garantindo que foram realizados estudos de impacto ambiental e “implementadas medidas de prevenção e mitigação para proteger a biodiversidade e os ecossistemas locais”. Além disso, a empresa afirma que Ivirizu é o primeiro projeto na Bolívia a implementar um plano de resgate para a flora e a fauna em sua licença ambiental.

Violações trabalhistas e baixa qualidade das obras

Em 2021, a Sinohydro também foi vinculada a denúncias de violações trabalhistas em Ivirizu, reveladas pela Defensoria Pública, cujo relatório apontou a negligência do Ministério do Trabalho. Essas violações estavam ligadas a empresas terceirizadas e às condições precárias nos alojamentos dos trabalhadores.

Em 2018, um funcionário da Sinohydro foi preso por agredir uma funcionária terceirizada que protestava contra atrasos de salários em meio à construção da rodovia Padilla-El Salto, no departamento de Chuquisaca. O caso provocou novas mobilizações, com greves de trabalhadores e protestos de organizações em frente às instalações da Sinohydro.

Inicialmente, a Sinohydro negou as acusações, alegando que o pagamento era de responsabilidade da terceirizada e que seus funcionários haviam sido impedidos de entrar na empresa. Depois, porém, ela pagou os salários atrasados e desligou do projeto o funcionário envolvido na agressão.

Construção de túnel em Cochabamba em trecho da rodovia El Sillar
Construção de túnel em Cochabamba em trecho da rodovia El Sillar, com obras operadas pela Sinohydro. Uma empresa terceirizada para esse projeto foi processada por não cumprir as normas trabalhistas e de segurança industrial (Imagem: Agencia Boliviana de Información)

Nas obras da rodovia El Sillar, que liga Santa Cruz e Cochabamba, a empresa terceirizada Mikenny também foi processada por “não cumprir as normas trabalhistas e de segurança industrial” em 2022. Entre 2015 e 2019, o Centro de Estudos do Trabalho e do Desenvolvimento Agrário registrou 153 denúncias de violações trabalhistas na Bolívia — muitas delas ligadas às 17 empresas chinesas que operam no país — além de projetos envolvendo conflitos ambientais.

A rodovia El Sillar foi concluída em novembro de 2023 pela Sinohydro, mas posteriormente a Administração Boliviana de Rodovias recebeu queixas de que a estrada havia sofrido afundamentos e desmoronamentos em pelo menos dez trechos, o que levou a autoridade a exigir o reparo pela Sinohydro. O conserto desses danos segue em andamento e ocorre em um local próximo àquele onde a onça-pintada foi atingida.

A Sinohydro não respondeu às solicitações do Dialogue Earth para comentar o caso. Um levantamento na imprensa local mostra que a empresa emite comunicados sobre questões sociais, mas raramente concede entrevistas. Em uma das poucas disponíveis, concedida por um diretor do escritório boliviano em 2016, o funcionário defendeu o trabalho da empresa em meio a atrasos em vários de seus projetos. Em dezembro de 2023, outro diretor falou sobre o compromisso da empresa com os reparos no projeto El Sillar.

A Sinohydro tem políticas de desenvolvimento sustentável, mas são pouco conhecidas fora da China
Marco Gandarillas, pesquisador da Latinoamérica Sustentable

Tanto a ambientalista Cecilia Requena, senadora do partido opositor Comunidade Cidadã, quanto o ex-deputado Tomás Monasterio disseram ao Dialogue Earth que haviam pedido informes a vários ministérios sobre as denúncias ambientais contra a empresa chinesa.

Em junho, um mês após a notícia da onça mutilada, Requena solicitou informações ao governo sobre a investigação do caso e as licenças ambientais concedidas à Sinohydro, além de cobrar explicações sobre o impacto das obras na vida silvestre. Até o momento da publicação, ela ainda não teve resposta. 

Marco Gandarillas, da Latinoamérica Sustentable, disse que, embora a China tenha criado mecanismos de controle e políticas sustentáveis para as operações de suas empresas no exterior, elas nem sempre as cumprem. 

“A Sinohydro tem políticas de desenvolvimento sustentável, mas elas são pouco conhecidas fora da China”, observou ele. “Na verdade, a China também tem mecanismos de diálogo eficazes e abertos para facilitar a troca de informações sobre questões de interesse comum, como os temas ambientais”. Em 2020, a Latinoamérica Sustentable compilou essas políticas em um relatório publicado em espanhol. 

Após a revisão do Cescr da ONU em 2023, no qual organizações latino-americanas apresentaram seu parecer sobre os investimentos chineses na região, o governo da China declarou sua intenção de analisar os casos e “cumprir suas obrigações conforme os instrumentos internacionais de direitos humanos”. O país também disse que “continuará engajado em um diálogo construtivo e na cooperação com todas as partes”.