Negócios

Sindicatos enxergam desafios e oportunidades com veículos elétricos

Transição de veículos a combustão para elétricos, sobretudo chineses, traz incertezas para trabalhadores, mas impulsiona mudanças no mercado brasileiro
<p>Linha de montagem da Jeep em Goiana, Pernambuco. Representantes da indústria automotiva tradicional temem redução de empregos com entrada de veículos elétricos no Brasil (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/s3x5qZ">Palácio do Planalto</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/">CC BY-NC-SA</a>)</p>

Linha de montagem da Jeep em Goiana, Pernambuco. Representantes da indústria automotiva tradicional temem redução de empregos com entrada de veículos elétricos no Brasil (Imagem: Palácio do Planalto, CC BY-NC-SA)

A rápida expansão do mercado de veículos eletrificados (VEs) no Brasil, sobretudo chineses, vem transformando a indústria automotiva nacional e pode trazer impactos a trabalhadores e cadeias de produção, afirmam sindicalistas do setor no país.

A participação de veículos elétricos e híbridos entre os novos registros no país já cresceu de 4% entre janeiro e outubro de 2023 para 7% em comparação ao mesmo período de 2024, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).  

Os VEs são importados, mas diversas montadoras têm investido na produção nacional. Além de marcas já consolidadas como Volkswagen e Toyota, as chinesas Build Your Dreams (BYD) e Great Wall Motors (GWM) preparam-se para inaugurar fábricas no Brasil. 

Em 2021, a GWM adquiriu a planta da Mercedes-Benz em Iracemápolis, no estado de São Paulo, e planeja iniciar a fabricação de veículos híbridos em 2025. Já em 2023, a BYD comprou a fábrica que a Ford operou por duas décadas em Camaçari, na Bahia, e também estima o início de sua produção para este ano, embora as recentes controvérsias sobre as condições dos trabalhadores chineses no local tenham levado à interrupção da construção.

Além de depender de importações de componentes, a fabricação de veículos eletrificados usa bem menos peças do que os modelos com motor a combustão e demanda habilidades específicas. Empresas chinesas prometem milhares de novos empregos no setor, mas sindicatos da indústria automotiva tradicional manifestam preocupações. 

Para assegurar uma transição energética justa — com menos carros de motor a combustão, mas sem excluir aqueles que trabalham na indústria —, eles dizem que o Brasil deve se apropriar da cadeia produtiva e investir na requalificação de seus trabalhadores.

107 mil

pessoas estão empregadas no setor automotivo brasileiro, segundo dados da Anfavea

“Exigimos que os processos produtivos garantam empregos e desenvolvimento de tecnologias no Brasil. Se não, vamos destruir nossas fábricas”, afirmou ao Dialogue Earth Aroaldo Silva, presidente da IndustriALL-Brasil, organização que reúne as centrais sindicais CUT e Força Sindical, que representam dez milhões de trabalhadores.

Em contraste, os sindicalistas das cidades que receberão as novas instalações estão otimistas. “As expectativas têm sido as melhores”, afirmou Júlio Bonfim, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Camaçari. 

Segundo Bonfim, a estimativa inicial da BYD era de produzir 50 mil carros por ano, com a geração de três mil empregos. Posteriormente, as projeções foram ampliadas para cinco mil empregos e, mais tarde, para dez mil, acompanhadas de uma produção anual de 300 mil veículos em Camaçari. “Isso é o que produzíamos no pico da Ford entre 2008 e 2009”, disse Bonfim. 

A BYD confirma essa projeção e diz querer transformar Camaçari em um polo para atrair fornecedores de toda a cadeia produtiva de eletrificados. Ela promete inclusive estabelecer na cidade baiana a primeira unidade de produção de baterias de lítio para VEs fora da Ásia, com início da produção anteriormente previsto para 2025.

Enquanto isso, a GWM prevê criar 700 empregos e produzir 50 mil veículos anualmente daqui a três anos. A operação em Iracemápolis produzirá componentes como pneus, vidros, rodas, bancos e chicotes elétricos. A meta é atingir 60% desses itens no país, com o início de suas exportações para a América Latina no mesmo período.

Entrada veloz de VEs importados

A produção de carros, vans, ônibus e caminhões emprega mais de 107 mil pessoas, segundo dados de outubro da Anfavea. Esse é o maior índice em cinco anos, mas ainda abaixo do pico nacional de 135 mil em 2013. Mais de dez fábricas, incluindo da Honda e Toyota, fecharam desde 2015.

A crise econômica de 2014-16 e a subsequente estagnação do país são apontadas como a principal causa da retração. Mas os sindicatos também responsabilizam os incentivos fiscais para veículos elétricos importados. Em 2015, o governo Dilma Rousseff (2011-2016) zerou o imposto de importação de carros elétricos e reduziu a alíquota dos híbridos. As isenções criaram uma competição desigual com o mercado brasileiro, afirmam esses grupos. 

“A BYD chegou com uma proposta muito agressiva de elétricos e híbridos a baixo custo”, afirmou Wellington Damasceno, diretor-executivo do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que representa trabalhadores da região metropolitana de São Paulo. A BYD começou as vendas de veículos elétricos em 2022, com o lançamento do modelo Dolphin.

Veículo elétrico (VE) em estação de recarga em Brasília
Veículo elétrico (VE) em estação de recarga em Brasília. Vendas de VEs saltaram no Brasil entre 2022 e 2023, levando o governo federal a anunciar a retomada dos impostos de importação para proteger indústria nacional (Imagem: José Cruz / Agência Brasil)

Segundo a Anfavea, as vendas de carros chineses saltaram de 7.052 em 2022 para 41.288 em 2023, impulsionadas pelos eletrificados. Em maio de 2024, o Brasil se tornou o principal mercado internacional para os VEs chineses, informou a agência de notícias Reuters. 

“Embora o volume não seja tão significativo, em termos percentuais, está crescendo de forma estratosférica”, afirmou Warley Soares, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). 

A participação de vendas de veículos chineses no Brasil saltou de 7% no primeiro semestre de 2023 para 26% no mesmo período em 2024. Entre as cinco maiores montadoras na venda de veículos eletrificados no Brasil no primeiro trimestre de 2024, três são chinesas — e uma delas – a sueca Volvo – é majoritariamente detida por chineses. 

“Se não se consolidar a produção no Brasil, esse volume, que hoje não afeta empregos, começará a afetar”, sugeriu Soares. 

Após apelos para proteger a indústria automotiva nacional em meio a essa forte entrada de veículos chineses no mercado brasileiro, o governo federal anunciou, no final de 2023, uma retomada gradual dos impostos de importação para veículos elétricos e híbridos, com alíquotas que devem voltar a 35% até julho de 2026. 

Em meio a tensões internacionais e ao avanço de políticas protecionistas, o aumento de impostos sobre veículos elétricos importados têm tido destaque na agenda política internacional nos últimos meses. Em outubro, a União Europeia elevou a tarifa de importação para VEs chineses de 10% para 45%, enquanto o Canadá subiu sua taxação para 100%. 

Esse índice é o mesmo aplicado pelos Estados Unidos desde maio. O presidente-eleito americano, Donald Trump, promete endurecer ainda mais as tarifas sobre produtos chineses. Enquanto isso, analistas avaliam que Beijing se prepara para retaliar as políticas de Trump, o que pode gerar impactos significativos nas cadeias globais de produção.

Entre esperanças e temores

Para os sindicatos brasileiros, persistem dúvidas sobre até que ponto as montadoras estrangeiras realmente fabricarão seus veículos elétricos no país.

“Estamos meio céticos se de fato vai ter produção nacional, com todo o processo produtivo em solo brasileiro”, afirmou Silva, da IndustriALL-Brasil. Ele teme que as empresas façam o chamado Complete Knock-Down (CKD), em que produtores externos fornecem itens para a montagem do produto: “É como um Lego; o CKD cria uma competição desleal”.

Também há receios com a redução de itens nos veículos elétricos e o impacto que isso pode ter nos trabalhadores. “Um carro elétrico tem cerca de 60% menos componentes. Eles não têm correia dentada, embreagem, alternador, bomba de combustível”, lista Soares, do Dieese, lembrando que hoje uma ampla cadeia produtiva produz essas peças em diferentes partes do país. “Elas deixarão de ser produzidas, e isso vai gerar desemprego”. 

Para preservar empregos, Silva ressaltou ser fundamental desenvolver novas cadeias produtivas no Brasil: “Não produzimos nada da cadeia de baterias, por exemplo. Além disso, já rifamos a cadeia de eletrônicos nos veículos. Os VEs têm uma eletrônica embarcada mais robusta, e precisamos reorganizar essa cadeia aqui dentro”.

Porém, não há consenso se a indústria de eletrificados requer de fato menos profissionais. Uma pesquisa da Universidade de Michigan, publicada em setembro, aponta que a montagem de VEs pode demandar até dez vezes mais trabalhadores em comparação aos veículos tradicionais. Outra pesquisa publicada no periódico Energy Policy em março sugere que, além de mais profissionais, a fabricação de eletrificados pode absorver funcionários da indústria de veículos a combustão.  

Bonfim, do sindicato de Camaçari, acredita no potencial de expansão da indústria brasileira na cadeia de veículos elétricos, destacando o investimento da BYD como um fator importante para impulsionar esse crescimento. “A planta da Ford é monstruosa, está sendo inteiramente reformulada, e a empresa [BYD] ainda comprou um terreno de 1,5 milhão de metros quadrados ao lado”, ele comentou. “Ninguém faz um investimento desse porte para produzir apenas CKD ou SKD [Semi-Knock Down]”.

Veículos elétricos em evento da Anfavea em Brasília, em 2023
Veículos elétricos em evento da Anfavea em Brasília, em 2023. Modelos elétricos exigem menos componentes do que os carros a combustão — para alguns, isso ameaça empregos, embora outros enxerguem oportunidade de capacitação (Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

Ele acrescenta que, até o momento, as negociações do sindicato com a BYD têm sido positivas. No entanto, uma reportagem da Agência Pública, veículo de mídia investigativo, revelou que operários chineses de empresas terceirizadas vinham enfrentando jornadas de até 12 horas diárias nas obras de Camaçari, sem folgas semanais ou equipamentos de proteção. Há ainda relatos de agressões físicas, falta de água potável e alojamentos degradantes. 

Após as denúncias, a BYD afirmou que cancelou os contratos e exigiu providências dos responsáveis. O Ministério Público do Trabalho investiga o caso. Bonfim não quis comentar, porque, segundo ele, isso cabe ao sindicato da construção civil e não ao dos metalúrgicos. 

Sobre a presença de funcionários chineses na construção da fábrica, Bonfim lembrou que isso costuma acontecer no início do processo. “Quando a Ford começou [a operar] em 2001, estava cheio de americanos [em Camaçari]”, disse ele. “Ninguém sabe startar uma fábrica de carros híbridos e elétricos, alguns chineses vão ter que iniciar isso”.

Urgência de políticas públicas

Damasceno, do Sindicato do ABC, defende que a principal estratégia para uma transição justa na indústria automotiva brasileira é diversificar as tecnologias veiculares usadas no país. Ele lembra que o Brasil já tem um setor pujante de biocombustíveis, incluindo etanol a combustão, biodiesel, biogás e biomassa, além da possibilidade de incorporar o hidrogênio verde — área em que o Brasil já tem cooperação com a China.

“O país tem várias opções e pode aproveitar seus potenciais”, disse Damasceno. “Teríamos uma transição mais gradual e maior chance de converter as capacidades atuais para uma nova indústria”.

Precisamos tornar o Brasil um grande player de exportação para a América Latina. Estamos perdendo espaço para a China
Warley Soares, economista do Dieese

Embora a transição de veículos de combustão a eletrificados possa resultar em um modelo com menos empregos e maior especialização, setores de baixo carbono podem gerar novos postos de trabalho, destacou Amanda Ohara, pesquisadora do Instituto Clima e Sociedade. 

“A transição leva à geração de novos setores que hoje não conseguimos ver de forma clara”, disse Ohara. “Há a indústria solar e eólica, os próprios biocombustíveis, o hidrogênio verde, a siderurgia verde. Se o investimento for bem feito, esses setores podem abrigar parte dos trabalhadores”.

Todos os entrevistados pelo Dialogue Earth ressaltam a urgência de políticas públicas mais arrojadas que as atuais para proteger e criar novos empregos no Brasil diante das mudanças no setor. Segundo Damasceno, o programa Mover, de incentivo à descarbonização da frota brasileira, deveria incorporar melhores práticas, como a requalificação e o estímulo a empresas para fortalecer as cadeias produtivas domésticas. 

Warley Soares, por sua vez, avalia os R$ 28 bilhões anuais destinados ao programa como insuficientes. “Isso é muito pouco para a demanda exigida. Precisamos de políticas que tenham a ambição de tornar o Brasil um grande player de exportação para a América Latina”, afirmou. “Estamos perdendo espaço para a China, mas do ponto de vista logístico é muito mais complicado trazer um ônibus de lá do que produzi-lo aqui”.