Visitar a Antártida como se vai ao parque nacional estadunidense Yellowstone ou ao El Cairo, no Egito, era quase impensável vinte anos atrás. O continente branco é cercado por gigantescas barreiras de gelo e pelas congelantes águas do oceano glacial antártico. É um dos lugares mais isolados e perigosos do mundo.
Para piorar, chegar à Antártida não é nada fácil. Já visitei o continente quatro vezes como parte da expedição científica colombiana e, a cada verão, quando atravesso a temida passagem de Drake, tenho certeza de que nosso navio vai naufragar em alguma tempestade entre as enormes ondas de 12 metros de altura e entre os ventos de 90 km por hora.
Hoje em dia, contudo, um turista disposto a gastar mais de 10.000 dólares pode embarcar num pequeno avião ou num confortável cruzeiro com destino à ilha Rey Jorge, também conhecida como ilha 25 de maio ou ilha Waterloo, e começar uma travessia única que até pouco tempo atrás era restrita a cientistas.
As viagens, que duram entre 10 e 15 dias, percorrem diversos pontos da península. Os turistas podem optar pela “exploração ‘a pé’ ou pela observação a distância”, explica Alan Fox, presidente da AntarcticaCruise. Diferentes dos barcos adaptados à pesquisa científica, os navios turísticos são luxuosos e contam com cabines confortáveis, elegantes salões de reunião, restaurantes chiques e até serviço de spa e academia.
Os turistas chineses não ficaram para trás.
Desde 2008, os estadunidenses eram os que mais visitavam a Antártida em viagens turísticas, seguidos pelos europeus e australianos. Em 2010, a China figurou no ranking pela primeira vez, ocupando o sétimo lugar com apenas 3% do total de turistas. No entanto, nos anos seguintes, o país asiático ganhou proeminência e, de 2016 a 2018, ficou em segundo lugar em número de visitantes, com 12 e 15.8% do total, segundo a Associação Internacional de Operadores de Tours Antárticos (IAATO).
“O aumento do volume de turistas chineses nos cruzeiros de luxo é evidente. Hoje em dia, na biblioteca a bordo dos navios, cerca de 30% ou 40% dos livros disponíveis são em mandarim”, explica Ángela Posada-Swafford, jornalista colombiana e guia científica da Quark Expeditions.
Muitos jovens agora têm acesso a essas viagens caras, que são vistas como uma questão status
“Além disso, há cerca de três anos o bufê dos navios começou a ser adaptado para o gosto dos chineses. É comum hoje em dia encontrar sopa de peixe no café da manhã”, acrescenta Posada-Swafford.
Segundo o Hurun Report, que elabora o equivalente chinês à lista de milionários da Forbes, em 2017 as regiões polares foram o segundo lugar mais escolhido pelos turistas chineses mais abastados na hora de selecionar um destino de viagem. As regiões polares também ocuparam a sétima posição entre os destinos preferidos.
Turismo de elites
À medida que a economia da China se expande, os chineses também ampliam sua capacidade de consumo. Viajar tornou-se um passatempo popular entre eles, especialmente entre os executivos jovens e de meia idade. Para os chamados super-ricos, os salários não apenas permitem pagar por esse tipo de viagem, mas também os incorpora à lista de “consumidores de luxo”, segundo o Hurun Research Institute.
“Muitos jovens agora têm acesso a essas viagens caras, que são vistas como uma questão status e vão além de uma escolha pessoal”, explica Posada-Swafford.
“Por exemplo, há cada vez mais jovens chineses que vão à Antártida para celebrar seus casamentos. Vestem as roupas de seda e smokings debaixo dos trajes térmicos, que tiram ao chegar ao lugar escolhido para a celebração. Depois da cerimônia, montam e fotografam um letreiro em chinês que anuncia o casamento realizado na Antártida”, acrescenta.
A Antártida se tornou um destino de viagem tão desejado por esse setor mais abastado da sociedade chinesa devido ao imaginário de exclusividade e aventura associado ao continente, que tomou o lugar da ideia de uma viagem perigosa.
Por exemplo, a empresa europeia Hurtigruten, que oferece viagens à península antártica, anuncia em sua publicidade: “Graças a seu isolamento, o ambiente antártico é provavelmente o lugar natural mais intocado do planeta”.
Impacto ambiental
Nos últimos 26 anos, o turismo antártico aumentou em cerca de 770%. Durante o último verão austral, o número de turistas que visitou o continente cresceu em 17%, alcançando uma cifra que ultrapassa 51.000 pessoas, segundo a IAATO.
Os impactos ambientais desse fenômeno sobre um ecossistema tão frágil tem preocupado cientistas e ambientalistas. Se a quantidade de turistas continuar aumentando de maneira exponencial, haverá enormes desafios para a conservação do ecossistema polar.
Por essa razão, todos os anos a Secretaria do Tratado da Antártica discute medidas de contingência para alcançar um equilíbrio que permita um turismo mais sustentável.
Antes e durante as viagens, cada operador de turismo informa aos visitantes por meio de conferências educativas e documentos as regras de comportamento e restrições. Entre elas, há regras sobre como aproximar-se da fauna, a delimitação das trilhas para caminhadas e a limpeza adequada dos trajes de neve, para prevenir a introdução de espécies não autóctones.
25,000
Milhas de gelo foram perdidas desde 1950
Com esse intuito, também criou-se o aplicativo gratuito “IAATO Polar Guide: Antarctica” para iOS e Android, que funciona sem conexão à internet. A ideia é colaborar com a biossegurança da fauna, entre outras funções.
Muitas das atividades a bordo servem para educar os turistas sobre a importância do continente branco e sobre responsabilidade ambiental. Por isso, a bordo dos navios vão também cientistas guias, que fazem parte da equipe de cada empresa. Seu trabalho é dar palestras aos passageiros sobre a história, a fauna e a flora do continente, bem como explicar a importância do Tratado Antártico — uma série de acordos internacionais que definem o status político de um continente sem países.
Entretanto, o impacto ambiental é inevitável, e tem sido notório nos últimos anos: as barreiras de gelo que cercam o continente estão começando a derreter devido ao aumento da temperatura do mar; o krill, alimento essencial das baleias, está diminuindo em volume, e os efeitos sobre a cadeia trófica antártica estão se tornando evidentes. Segundo o site de pesquisa Discovering Antarctica, desde 1950 já se perderam 25.000 km2 barreiras de gelo.
A Antártida é a última fronteira onde ainda não chegou a exploração de recursos naturais a nível industrial: é a reserva de água doce mais importante do planeta e o regulador do clima mundial. Por isso, uma grande quantidade de processos biológicos vitais dependem de sua estabilidade e conservação. Líderes mundiais se reúnem todos os anos desenvolver estratégias de proteção contra as atividades humanas nas zonas marinhas.
É provável que os turistas que visitem o continente nos próximos anos sejam testemunhas das mudanças ambientais que definirão o estado do planeta para as gerações futuras.