Todos os anos, uma frota de cerca de 300 navios de bandeira chinesa pesca ao longo da costa da América do Sul. Os barcos seguem um percurso do Atlântico Sul pela costa da Argentina ao Pacífico pela costa do Chile e Peru, até as proximidades das Ilhas Galápagos, em território equatoriano. Nesse trajeto, algumas embacações foram denunciadas por pescar ilegalmente grandes volumes de pescado e por praticar violações aos direitos humanos. O porto de Montevidéu, no Uruguai, é o principal da região para a frota chinesa.
Segundo a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, o Uruguai está entre os 25 principais países do mundo que mais se esforçam para combater a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (IUU). O Uruguai é um dos signatários do Acordo sobre Medidas do Estado do Porto (PSMA, na sigla em inglês), que obriga Montevidéu a dar acesso somente às embarcações que tenham registro e comprovem a origem legal de suas cargas.
Detectamos violações trabalhistas em navios que chegam a Montevidéu, como horas de trabalho excessivas e abuso físico e verbal
Mas especialistas duvidam da eficácia do PSMA em Montevidéu. É o único porto livre da região – ou seja, com regulamentação tributária e aduaneira flexível. Também é um dos portos mais visitados por navios de transbordo no mundo – o que, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), incentiva a pesca IUU. Grandes navios frigoríficos recebem a carga de embarcações menores em alto-mar, permitindo que estas continuem pescando por longos períodos de tempo, sem precisar voltar à terra firme. A transferência de uma embarcação para outra é uma das estratégias mais comuns utilizadas para a pesca ilegal, diz a FAO, já que os frigoríficos misturam cargas de várias embarcações menores, tornando as capturas individuais quase indetectáveis.
Novas informações obtidas por nossa reportagem no porto de Montevidéu confirmaram que embarcações e navios frigoríficos com histórico de pesca ilegal atracaram ali. O porto também recebeu frotas denunciadas por abusos trabalhistas e tráfico humano.
“Detectamos violações trabalhistas em navios que chegam ao porto de Montevidéu, como horas de trabalho excessivas sem períodos de descanso, disparidades salariais, informalidade contratual e abuso físico e verbal”, diz Jessica Sparks, pesquisadora da Universidade de Nottingham, especializada em abusos trabalhistas em portos.
O papel das agências de navegação
Embora o governo uruguaio determine quem pode utilizar os serviços do porto, as agências de navegação desempenham um papel importante: representam os navios de pesca estrangeiros no país.
As agências operam no mundo todo, desempenhando funções ligadas à entrada, permanência, abastecimento e partida de um navio no porto, desde a compra de alimentos até a gestão da tripulação. “As agências fazem todo o trabalho administrativo necessário para operar os navios no porto. Elas trazem tradutores, compram combustíveis e coordenam a logística”, explica Milko Schvartzman, especialista em conservação marinha da Argentina.
O agente marítimo é o representante legal do operador do navio (também chamado de “armador”) no país de desembarque, sendo legalmente responsável por qualquer denúncia relacionada à atividade do navio no porto e no território marítimo daquele país. Assim, “se o armador cometeu uma infração, como a pesca IUU, o agente marítimo deve estar ciente disso como representante, o que lhe dá um certo grau de cumplicidade”, diz Eduardo Pucci, diretor da Pucci and Associates, escritório de advocacia especializado em direito marítimo na Argentina.
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É o número de tripulantes mortos desembarcados no porto de Montevidéu entre 2013 e 2021
Se a embarcação tiver sido sancionada, mas pagou a multa, ou se o processo foi encerrado, a agência não está impedida de prestar serviços. No entanto, a pesca IUU e as violações contra os direitos humanos da tripulação nem sempre são formalmente punidas pelos governos, o que permite à agência auxiliar embarcações suspeitas de atividades ilegais, diz Schvartzman.
Além disso, as agências têm informações de navios pelo menos uma semana antes de sua chegada a Montevidéu, para decidir se querem ou não fornecer seu serviço, acrescenta o ambientalista argentino.
Schvartzman, que passou grande parte da carreira investigando as operações da frota chinesa na América Latina, diz que as agências “às vezes também pressionam o governo para flexibilizar as licenças que devem ser apresentadas no porto”. Da mesma forma, as agências fazem lobby para reduzir os custos dos navios e para que, por exemplo, “os tripulantes falecidos sejam cremados, assim não precisam repatriá-los”. Grupos defensores dos direitos humanos acusam o porto de receber navios conhecidos por cometerem abusos no mar. Membros da tripulação foram encontrados com sinais de espancamento, presos em navios, submetidos a regimes de fome e forçados a trabalhar por dias sem dormir. De acordo com dados da Marinha do Uruguai, 59 tripulantes falecidos foram desembarcados no porto entre 2013 e 2021.
Entre 2012 e 2021, ao menos 68 agências marítimas prestaram serviços a embarcações estrangeiras de pesca em Montevidéu. Entre elas, a Verny se destaca como a mais utilizada por embarcações chinesas – várias delas ligadas à pesca IUU e a violações trabalhistas.
Os navios da Verny
Com sede em Montevidéu, a Verny é presidida pelo chinês Lu Zhao e tem como secretário o uruguaio Marcos Henares Madera, que descreve a empresa em seu Linkedin como uma agência marítima “representante de navios pesqueiros, frigoríficos e de transporte de combustível com operação na República do Uruguai”.
Henares também é presidente da empresa de logística Vecalfa e foi vice-presidente da Verny em anos anteriores. A reportagem tentou conato com a empresa diversas vezes, mas não houve resposta até o momento desta publicação.
De acordo com registros do porto de Montevidéu, a Verny assessorou 507 navios entre 2012 e 2021. Desses, 344 eram de bandeira chinesa e o restante de bandeira espanhola e panamenha. Isso faz dela o principal agente marítimo para navios do país asiático. Embora outras agências também tenham prestado serviços a navios de bandeira chinesa, como Christophersen (160), Tideman (136) e Repremar (25), nenhuma se aproxima dos números da Verny.
Entre os navios assessorados em Montevidéu pela agência, estão as embarcações Hai Feng 658, Hai Feng 688 e Ocean Mariner – penalizadas pelo governo do Panamá por transbordo ilegal. Em 2017, a empresa prestou serviços para o Fu Yuan Yu 7883, depois implicado em um caso de trabalho forçado quando 18 trabalhadores indonésios alegaram não terem sido remunerados entre 2018 e 2020. Verny também auxiliou a Fu Yuan Yu 7614 em 2020, que precisou desembarcar a tripulação em Montevidéu por “razões humanitárias”, de acordo com a C4ADS, organização que analisa questões de segurança transnacional.
A agência também trabalhou com a frota Lu Rong Yuan Yu. Os navios de numeração 679, 688, 977, 895 e 939 desembarcaram tripulantes mortos e outros com problemas de saúde em Montevidéu. Enquanto isso, o 668 foi flagrado pescando ilegalmente na Argentina em 2020. Embora tenha escapado em um primeiro momento, a tripulação do navio decidiu se entregar e o barco foi escoltado pela autoridade portuária.
Em 2013, a Verny esteve envolvida em um caso de tráfico de pessoas no Uruguai. O governo descobriu uma organização criminosa que traficava cidadãos chineses, trazendo para o país seis pessoas entre 22 e 63 anos – e uma delas iria trabalhar em um navio de bandeira chinesa por meio de um contrato de trabalho da Verny. Uma investigação judicial foi conduzida, e 18 pessoas foram investigadas.
Aldo Braida, presidente da câmara de pesca de agentes estrangeiros, que representa a Verny e outras agências marítimas, argumenta não ser sua responsabilidade verificar as informações dos navios. “Nós só transmitimos a documentação solicitada pelo governo antes da chegada, que já é muita”, diz.
O navio deve apresentar uma série de documentos solicitados pelo Uruguai, como autorização de pesca, declarações de que não pesca em zona proibida e de que a embarcação foi registrada no país de origem, entre outros documentos. O navio ainda deve apresentar o motivo da chegada ao porto – se é para a substituição da tripulação ou descarga de mercadorias. Ainda assim, está sujeito a uma inspeção no local. Na prática, essa documentação é problemática. “Muitas vezes não são cumpridos todos os requisitos ou o que é informado não é verdadeiro”, aponta Milko Schvartzman.
Já Braida rejeita qualquer denúncia contra os barcos estrangeiros de pesca que operam em Montevidéu. As agências conhecem os navios com os quais trabalham, argumenta Braida, já que tendem a ser os mesmos todo ano. E quando há um processo legal contra um deles, os barcos não recebem o apoio da câmara, acrescenta.
Porto de Montevidéu e navios estrangeiros
Jaime Coronel, coordenador da Direção de Recursos Aquáticos do Uruguai (Dinara), garante que o controle melhorou drasticamente em Montevidéu desde a assinatura do Acordo sobre Medidas de Estado de Porto em 2013.
“Ao ver que um Estado aumenta o controle, as embarcações de pesca IUU não se expõem e buscam portos alternativos. Isso pode ter acontecido no Uruguai nos últimos anos”, diz Coronel. “Nossos controles melhoraram em até 100% em alguns aspectos. Mas não podemos descartar que haja no porto algum tipo de pesca IUU”.
As organizações de conservação marinha concordam que houve melhorias no porto de Montevidéu desde a assinatura do tratado. No entanto, apontam que o controle e as penalidades ainda são insuficientes. Eles dizem faltar inspetores e cobram maior alocação de recursos pela Dinara para controlar os navios estrangeiros.
Andrés Milessi, biólogo uruguaio e coordenador do projeto One Sea, diz que há muito a ser feito e defende um controle mais forte dos navios. Milko Schvartzman concorda: “Em 2018, um barco espanhol foi detido na Argentina por pesca ilegal. Ele pagou a multa, foi para Montevidéu com a carga e nada aconteceu lá”.
Na opinião de Eduardo Pucci, o governo uruguaio deveria impedir que as agências de navegação representem navios de pesca estrangeiros que tenham penalidades em aberto ou um longo histórico de atividades ilegais.
“As coisas podem definitivamente ser bem diferentes em termos de supervisão das agências e coordenação com as autoridades portuárias uruguaias”, acrescenta.
Esta reportagem foi produzida pela Mongabay Latam com apoio de Fabian Werner, do portal Sudestada, e da Earth Journalism Network.