Oceanos

Como as ondas de calor afetam a biodiversidade do oceano

Com a chegada de El Niño, episódios de elevação da temperatura do oceano devem se tornar mais frequentes e intensos. Agora, cientistas buscam formas de aumentar a resiliência de ecossistemas a mares mais quentes
<p><span style="font-weight: 400;">Grama marinha em uma praia de Mallorca, na Espanha. O aumento repentino na temperatura do oceano pode acabar com ecossistemas sensíveis — como as pradarias marinhas, vitais para combater o colapso climático (Imagem: Clara Margais / Alamy)</span></p>

Grama marinha em uma praia de Mallorca, na Espanha. O aumento repentino na temperatura do oceano pode acabar com ecossistemas sensíveis — como as pradarias marinhas, vitais para combater o colapso climático (Imagem: Clara Margais / Alamy)

Em 4 de julho de 2023, a Organização Meteorológica Mundial declarou o início de uma nova temporada de El Niño, fenômeno climático que eleva a temperatura do Oceano Pacífico e gera ondas de calor em diversas partes do mundo.

O histórico desse fenômeno mostra como as temperaturas extremas podem afetar a vida no oceano. Em dezembro de 2010, uma onda de calor varreu os exuberantes e biodiversos campos de ervas marinhas da Shark Bay, na Austrália. Um terço do habitat foi destruído em poucos dias e, nos três anos seguintes, cerca de 2 a 9 bilhões de toneladas de CO₂ foram liberadas na atmosfera. “As perdas foram surpreendentes”, diz Kathryn Smith, pesquisadora da Associação de Biologia Marinha do Reino Unido.

Cientistas chamam o evento de “onda de calor marinha” — ou seja, um período de temperatura excepcionalmente alta no oceano que começa repentinamente e continua por dias ou meses, diferentemente dos padrões de aquecimento de longo prazo. Assim como as ondas de calor que ameaçam ecossistemas terrestres, esses eventos representam “uma ameaça clara e latente aos sistemas marinhos dos quais dependemos”, diz Sarah Cooley, diretora de ciência climática da Ocean Conservancy.

A tendência é que esses episódios só aumentem daqui para frente. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU projeta que, até o fim do século, as ondas de calor marinhas sejam até 50 vezes mais frequentes e 10 vezes mais intensas em comparação com os tempos pré-industriais. Os cientistas agora desenvolvem maneiras de prever esses eventos. Suas pesquisas podem oferecer soluções para mitigar os impactos em habitats e espécies vulneráveis, além das comunidades costeiras que dependem delas.

Quais são os impactos das ondas de calor?

O oceano absorve 90% do calor excedente provocado pelas emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. As mudanças climáticas, portanto, favorecem as condições meteorológicas que injetam calor no maior ecossistema do planeta.

Um dos mecanismos pelos quais isso ocorre são os sistemas de alta pressão: enquanto os sistemas de baixa pressão (frios e úmidos) retiram calor do oceano, atraindo águas mais frias e ricas em nutrientes para a superfície, os sistemas de alta pressão interrompem esse processo. Eles criam condições mais quentes, sem vento e sem nuvens, nas quais o sol aquece a água diretamente. Com isso, menos nutrientes sobem à superfície para alimentar a base da cadeia marinha — como krill e fitoplâncton.

Em 2014, esses fatores se combinaram para criar uma sauna gigantesca no Pacífico Norte. Com centenas de quilômetros de extensão e 6 °C mais quente do que a média, o evento ficou conhecido como “a bolha”. A escassez repentina de nutrientes foi um desastre para peixes, aves marinhas e cetáceos. Muitos animais migraram a outros lugares para encontrar comida, mas nem todos sobreviveram: estima-se que um milhão de aves marinhas tenham morrido, além de inúmeros crustáceos, peixes e focas. Várias baleias ficaram presas em redes de pesca ao procurar comida perto da costa.

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Mergulhadores tentam resgatar baleia-jubarte presa em uma rede de pesca nos mares da Espanha, em maio de 2023 (Imagem: Alamy)
Scuba diver holding an underwater camera next to a bleached coral
Grande Barreira de Corais da Austrália sofre branqueamento devido ao aquecimento das águas (Imagem: The Ocean Agency / The Ocean Image Bank)

As ondas de calor também podem tornar mais hostis as condições de vida em locais de grande biodiversidade, como pradarias marinhas, recifes de coral e bancos de algas. Em comparação com o aquecimento geral do oceano, as ondas de calor provocam um branqueamento mais rápido e letal de corais. Em 2010, a onda de calor que destruiu as pradarias em Shark Bay também arrasou as florestas de algas ao longo 100 quilômetros na costa oeste da Austrália. “Isso foi há mais de 12 anos e as algas ainda não voltaram”, diz Smith, que pesquisa as ondas de calor marinhas.

Ao mesmo tempo, as temperaturas mais elevadas da água também podem provocar um efeito contrário: a proliferação massiva de algas na superfície, sufocando outras espécies e causando a morte da vida marinha em larga escala.

O que causa as ondas de calor marinhas?

Os cientistas ainda tentam desvendar os gatilhos meteorológicos por trás desses fenômenos, mas já sabem que estão ligados às mudanças climáticas aceleradas pela ação humana. Uma hipótese é que, à medida que o Ártico aquece — três vezes mais rápido do que a média global —, a diferença de temperatura em relação aos trópicos seja reduzida. A oceanógrafa Svenja Ryan, do Instituto Oceanográfico Woods Hole, explica que essa redução pode enfraquecer a corrente que normalmente empurra as chuvas e ventos em direção às zonas centrais do planeta. A corrente de ar torna-se, então, mais vulnerável aos sistemas de alta pressão, que bloqueiam os ciclos atmosféricos normais e formam ilhas de ar quente na terra e no mar.

As mudanças na força e na direção das correntes oceânicas também podem desencadear ondas de calor marinhas, já que algumas dessas correntes transportam água quente para novas regiões do oceano.

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Anomalias na temperatura da superfície do mar registradas em 19 de junho de 2023. O foco vermelho-alaranjado no canto superior direito mostra a onda de calor marinha recorde que atingiu o Atlântico Norte no fim de junho (Imagem: NOAA Marine Heatwave Watch)

Mares mais quentes, prejuízos bilionários

Comparações com séries históricas mostram que a duração das ondas de calor marinhas aumentou 54% desde 1925 — e oito dos dez dias mais quentes registrados ocorreram nos últimos 13 anos. “Elas são realmente intensas em determinadas regiões e podem afetar as comunidades locais e as economias”, diz Ryan.

Esse custo socioeconômico é cada vez mais visível. “Muitas comunidades costeiras estão perdendo sua renda de uma só vez devido às ondas de calor marinhas”, observa a bióloga marinha Kathryn Smith.

Após “a bolha”, a pesca de bacalhau no Golfo do Alasca, que movimentava US$ 100 milhões por ano, entrou em colapso. Uma onda de calor na costa do Chile provocou uma proliferação de algas tóxicas que destruiu 20% da produção de salmão do país em 2016 e custou US$ 800 milhões ao setor. Enquanto isso, uma pesquisa mostra que, se o aquecimento global dos oceanos continuar e o branqueamento dos corais piorar na Grande Barreira de Corais, a Austrália pode perder cerca de US$ 1 bilhão em turismo.

Os mercados de crédito de carbono, que dependem de pradarias marinhas e florestas de algas, também podem ser prejudicados pelas ondas de calor marinhas, explica Smith. Sua pesquisa mostra que 34 ondas de calor oceânicas nos últimos 25 anos geraram prejuízos na ordem de bilhões de dólares anuais para a pesca, o turismo e a captura de carbono. Já a perda cultural causada pelas ondas de calor e sua contribuição para eventos climáticos extremos, como furacões, é mais difícil de mensurar.

Como se adaptar às ondas de calor?

Para impedir que o calor extremo aqueça totalmente nossos oceanos, é preciso reduzir as emissões de gases de efeito estufa. No entanto, Cooley explica que levará algum tempo para que os efeitos da descarbonização apareçam: “O calor é tanto que já está represado e as ondas quentes ficarão piores e mais extremas”. Ainda assim, diz ela, “sabemos que podemos diminuir outras coisas que estão ao nosso alcance”.

Fortalecer a resiliência dos ecossistemas marinhos aumenta as chances de sobrevivência a mares mais quentes, diz Cooley. Medidas como a redução da poluição e a expansão da proteção de habitats, como florestas de algas e pradarias marinhas, poderiam ajudar a mitigar os riscos das ondas de calor marinhas. “Ter um grande ecossistema saudável ainda é como uma apólice de seguro para nós”, acrescenta.

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Brotos de ervas marinhas amarrados a um pedaço de tecido fibroso, prestes a serem plantados na Indian River Lagoon, na Flórida, em março de 2023. Projetos de restauração de ecossistemas como esse podem ajudar a tornar o oceano mais resiliente a futuras ondas de calor (Imagem: Kim Shiflett / NASA)

Enquanto isso, há um esforço crescente para prever as ondas de calor marinhas, assim como é feito com as ondas de calor terrestres. Ainda são necessárias mais pesquisas científicas que analisem como esses fenômenos influenciam as correntes oceânicas, as reações químicas e a disponibilidade de alimentos, além de descobrir qual é a profundidade que as ondas de calor alcançam no mar. Essas informações serão essenciais para criar prognósticos mais precisos.

Dados científicos sugerem que, sob certas condições meteorológicas, poderíamos prever algumas ondas de calor marinhas com até um ano de antecedência, diz Michael Jacox, oceanógrafo da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA e autor principal do estudo que desenvolveu essa estimativa.

Não podemos salvar tudo, então o que devemos proteger?
Kathryn Smith, pesquisadora da Associação de Biologia Marinha do Reino Unido

“Acho que o ponto crucial [dessa previsão] é como isso se traduz em impactos e na tomada de decisões”, acrescenta Jacox. Informações mais detalhadas sobre quando e onde ocorrerão as ondas de calor marinhas podem ajudar na adaptação. Cientistas poderiam identificar os habitats potencialmente afetados e até sugerir medidas para protegê-los. Já os pescadores poderiam capturar espécies menos ameaçadas ou mover os locais de criação de peixes para longe das zonas de perigo. Quando os meios de subsistência estiverem ameaçados, essas previsões também poderiam servir como evidência para destinar recursos financeiros às comunidades mais afetadas.

As pradarias marinhas de Shark Bay ainda guardam marcas da onda de calor de 2010. Muitos ecossistemas enfrentarão uma ameaça semelhante com um oceano cada vez mais quente, especialmente sob a pressão de eventos extremos como o El Niño. A bióloga marinha Kathryn Smith acredita que é preciso direcionar esforços: “Não podemos salvar tudo, então o que devemos proteger? É preciso entender qual é a mudança e qual deve ser o foco”.