É possível sentir o cheiro da rua onde são comercializados frutos do mar secos, no distrito de Sheung Wan, muito antes de avistá-la. O acentuado aroma de maresia se espalha por entre as duzentas e tantas fachadas de lojas, enquanto ruidosos bondes de madeira circulam em intervalos regulares, como já fazem há mais de um século. É uma cena que captura perfeitamente a essência de Hong Kong, manchada apenas pelo comércio devastador de barbatanas de tubarão, motivo de vergonha para muitos moradores locais.
As nadadeiras expostas formam um cenário que impressiona e angustia, mas se o olhar é desviado, é possível encontrar outra iguaria escondida entre os camarões e os moluscos secos. As delicadas linhas sinuosas de sua carne clara e pálida parecem inocentes, mas estão rapidamente levando a menor e mais rara espécie de cetáceo do mundo para um ponto sem retorno.
Dez anos depois de a espécie de golfinho de água doce que habitava o rio Yangtzé ser declarada funcionalmente extinta, a demanda dos consumidores chineses acabou levando outro cetáceo à beira da destruição. Só que dessa vez o problema não aconteceu nas águas turvas do interior da China, e sim a milhares de quilômetros de lá, nas águas azuis do Mar de Cortez, no México, onde hoje restam apenas 16 membros da espécie conhecida como vaquita.
O pequeno mamífero aquático está gravemente ameaçado de extinção, apesar de não ser o alvo dos pescadores. O que acontece é um dano colateral da caça por bexigas natatórias de outra espécie de peixe: a totoaba. Na medicina tradicional chinesa, acredita-se que sua bexiga tenha infindáveis poderes curativos.
As totoabas são capturadas na cabeceira do Golfo da Califórnia com redes de emalhar, que são usadas de forma ampla e indiscriminada na região. Os pescadores estendem as redes do fundo do mar até a superfície e as vaquitas também acabam se enroscando nelas, morrendo rapidamente de choque, ou sufocando de forma lenta e agonizante.
Na mídia chinesa, as bexigas natatórias das totoabas são exaltadas como “o maior tesouro de todos” e são creditadas com uma grande variedade de propriedades medicinais: estancam hemorragias, solucionam deficiências de yin, restauram o funcionamento do fígado e dos rins e hidratam pulmões secos. Com tantos benefícios, não é de surpreender que os órgãos valem seu próprio peso em ouro.
“O preço da bexiga natatória das totoabas”, diz Crystal Wang, do grupo de defesa ambiental WildAid, “é muito alto – dezenas de milhares de yuan”. Em Hong King, um quilo da bexiga de totoaba chega a ser comercializado por HKD 1 milhão (US$ 128 mil).
Uma investigação feita pelo Greenpeace, em 2015, constatou que mais de uma dezena de lojas na cidade semiautônoma desafiou a lei para vender bexigas natatórias, mas apenas dois comerciantes de frutos do mar foram autuados. Jornalistas locais resolveram se passar por membros da elite da China continental e fazer filmagens secretas na área. Eles acabaram descobrindo que as bexigas continuavam sendo comercializadas, embora de forma mais discreta.
A promessa de riqueza, no entanto, não vem ameaçando apenas a vaquita. A totoaba também está gravemente ameaçada de extinção. Assim como está o bahaba, peixe que costumava ser encontrado nas águas costeiras do sul da China e que foi substituído pela totoaba. As bexigas do bahaba, que chegou a receber a classificação de gravemente ameaçado de extinção e a ser protegido pela legislação chinesa, eram consideradas o padrão-ouro. Porém, a perda mais prejudicial é a da vaquita, devido à sua raridade e à sua pequena área de vida, mas ela é apenas a terceira espécie a ser vitimada pela explosão da demanda por órgãos gasosos.
Espécies à beira da extinção
Neste outono, autoridades mexicanas começarão a capturar e a transferir os cetáceos remanescentes para um santuário temporário, buscando assim garantir a sobrevivência da espécie antes de reintroduzi-la na natureza.
A proibição temporária do uso das redes de emalhar para as atividades de pesca comercial desenvolvidas no habitat das vaquitas tornou-se permanente no verão. Ferramentas alternativas de pesca estão sendo introduzidas na área, segundo relata Damián Martínez Tagüeña, cônsul do México em Hong Kong.
Aqueles que estão envolvidos neste projeto, no entanto, insistem que essa não é a solução – é apenas uma forma de ganhar tempo para a vaquita. A não ser que medidas urgentes e decisivas sejam tomadas nesse ínterim, é bem provável que o mamífero marinho mais ameaçado de extinção do planeta nunca mais possa nadar livremente e em segurança.
Para garantir a proteção das vaquitas quando elas voltarem dos cativeiros offshore, será necessário fazer muito mais do que apenas recolher as redes de emalhar, diz Martínez Tagüeña. Existem comunidades costeiras que vivem há décadas nessas águas e as organizações governamentais e não governamentais (ONGs) já gastaram dezenas de milhões de dólares para assegurar o seu acesso às reparações necessárias e aos meios alternativos de subsistência em pesca sustentável. Atualmente, desafiar a lei para caçar totoabas pode render ao infrator 20 anos de prisão.
Christina Vallianos, diretora de programas da WildAid na Califórnia, afirma que isso tudo é muito positivo, mas que palavras por si só não significam muita coisa.
“A proibição precisa ser implementada de forma adequada e o seu cumprimento deve ser fiscalizado”, disse ela. “A remoção e a destruição das redes precisam acontecer de forma mais rápida, os infratores precisam ser detidos e indiciados, e a população precisa contar com canais seguros para denunciar atividades ilegais”.
Desde que foi banida, a pesca ilegal da totoaba acabou sendo adotada pelos carteis de drogas da região de fronteira. Segundo o Greenpeace México, o tráfico de bexigas natatórias é “ainda mais lucrativo do que a cocaína”.
“O México é um país que tem uma mega diversidade e isso implica uma responsabilidade muito grande”, admite Martínez Tagüeña. Mas o fardo não é só deles: outros países que também estavam envolvidos no comércio da totoaba começaram a dividir a responsabilidade pela sua eliminação e por salvar a vaquita.
“A redução do comércio é algo que precisa ser alcançado tanto no lado da oferta como no da procura”, disse Wang em Pequim. “A China está prestando muita atenção nesse comércio. No ano passado, eles organizaram um treinamento de fiscalização para agências em Guangdong, com o intuito de melhorar as habilidades de identificação. Depois disso, eles também organizaram uma campanha de fiscalização que durou um mês inteiro antes do Festival da Primavera – época de maior compra de presentes caros – para controlar o mercado e educar os comerciantes e consumidores”.
A WildAid tem trabalhado com as autoridades para traduzir informações, elaborar sessões de treinamento, criar posteres e viabilizar canais de comunicação entre China, México e EUA. Wang acredita que “os consumidores chineses rejeitarão o produto assim que forem informados da ligação entre as suas escolhas de consumo e o futuro da vaquita”.
Outras campanhas semelhantes contra o comércio de marfim e de barbatanas de tubarão, apoiadas por estrelas como Yao Ming e Jackie Chan, conseguiram ter algum sucesso. Muitas cadeias de restaurante e empresas de transporte marítimo agora se recusam a servir ou a transportar as barbatanas de tubarão, mas isso foi o resultado de muitos anos de esforço. Faltando poucos meses para a sua extinção, o tempo não está do lado das vaquitas.
No entanto, os ativistas dizem que não é produtivo se desesperar. O tigre-de-amur, o rinoceronte branco do sul e o esquilo voador do norte são animais cujas populações foram reduzidas aos dois dígitos antes de serem resgatadas da beira do abismo. Milagres podem acontecer na conservação até o último minuto.
As vaquitas ganharam um apelido que é ao mesmo tempo irônico e auspicioso, graças às manchas escuras em volta dos seus olhos: panda do mar. Quando seu xará peludo foi ameaçado de extinção há algumas décadas, o mundo inteiro se uniu pela sua proteção. Os esforços para a conservação do habitat e para a reprodução dos pandas em cativeiro ajudaram o animal não só a sobreviver, mas a se tornar um ícone. Ele virou um carismático porta-bandeira da China durante a era de reformas do país, bem como um lembrete de que a marcha em direção à extinção pode ser interrompida.
Salvar a vaquita exigirá um nível parecido de comprometimento por parte dos governos do México, de Hong Kong e da China; de ONGs locais e internacionais; dos pescadores do Golfo da Califórnia; assim como dos comerciantes e consumidores dos mercados de frutos do mar da China.
De volta a Hong Kong, Lo Kwok-hing, vendedor de frutos do mar que vem de uma família que trabalha com isso há três gerações, acha difícil imaginar a rua comercial sem os sacos recheados de bexigas que chegavam à altura dos ombros e que ladeavam ambos os lados da sua loja. Acima da sua cabeça, uma faixa branca improvisada traz a seguinte mensagem em tinta preta: “Liquidação total de estoque”. Depois de seis décadas, pode-se afirmar que a loja existe há mais tempo do que o mundo conhece a vaquita, mas não sobreviverá a ela.
As vendas de barbatanas de tubarão, diz ele, caíram de maneira brusca. Para os clientes, essa decisão geralmente é de cunho moral; mas, para as gerações mais novas, é também uma questão de conveniência. Poucos jovens da geração millennial são atraídos pelas lojas especializadas ou mesmo se dão ao trabalho de processar ingredientes secos em casa. Uma tigela de sopa de bexiga leva uma hora para ficar pronta, desde a etapa de colocar de molho até estar servida.
Lo relata que os seus clientes são antigos, em sua maioria. Eles retornam mais por lealdade do que pelos preços competitivos, que no fim são definidos através de um conluio entre os donos de negócio. É difícil descobrir de qual espécie veio uma bexiga natatória só de olhar ou sentir seu cheiro, também é complicado discernir sua qualidade, então a boa reputação dos vendedores tem uma importância muito grande.
Conforme a base de clientes fieis for minguando, também minguarão as próprias lojas de frutos do mar. Mas a importância das bexigas de peixe e de outros frutos do mar para a culinária cantonesa, diz Lo, é algo que provavelmente não mudará conforme o sabor do vento. Se os comerciantes conseguirem construir uma boa reputação através do fornecimento de produtos sustentáveis e de qualidade, nem eles, nem a vaquita, precisarão se tornar uma lembrança do passado.
Esta matéria foi originalmente publicada pelo chinadialogue.net