Depois de um longo dia removendo o que pareciam ser toneladas de petróleo bruto de uma das praias mais lindas do Brasil em Pernambuco, Vandécio Sebastião Santana sentia-se cansado e frustrado.
“O óleo está vindo do alto-mar, bem longe daqui”, gritou ele. “Você acha que o nosso trabalho aqui na areia está suficiente? Não está não”.
Santana é um dos milhares de voluntários que estão empenhados na limpeza das praias brasileiras desde que as misteriosas manchas de óleo começaram a aparecer, no final de agosto. Eles estão lutando para proteger o ecossistema que fornece os peixes que eles comem e vendem, bem como o deslumbrante cenário natural que atrai os turistas. Suas mãos e pernas carregam as marcas do óleo e já foram mostradas no país inteiro.
Em um primeiro momento, o vazamento parecia ser pequeno, mas logo se mostrou um dos desastres ambientais mais sérios do Brasil. Centenas de praias foram poluídas em 11 estados, atingindo mais da metade da costa do país. Pelo menos 106 animais morreram, a maioria tartarugas marinhas.
Investigadores acreditam trata-se de óleo venezuelano que vazou de uma embarcação navegando em águas internacionais a centenas de quilômetros da costa do Brasil. O culpado permanece uma incógnita.[oilspill_2019 lang=”pt”]
Lacunas na governança
O desastre evidenciou os desafios de impor e fiscalizar as regras na indústria global de transporte marítimo devido à imensidão do oceano. Os vazamentos causados por embarcações são responsáveis por diversas catástrofes no mar.
Em 2002, o navio petroleiro Prestige afundou na costa da Espanha, provocando o maior desastre ambiental que já aconteceu na região. Em 2010, a plataforma de perfuração Deepwater Horizon explodiu no Golfo do México e causou o maior vazamento já visto em águas americanas. No ano passado, um petroleiro iraniano que transportava um milhão de barris de petróleo se chocou contra um cargueiro no Mar da China Oriental, gerando preocupação com a vida marinha.
Embora muitos especialistas concordem que as leis que governam a indústria global de transporte marítimo sejam adequadas e abrangentes, a fiscalização delas é altamente fragmentada. A inspeção e a vistoria dos navios são geralmente de responsabilidade de três países diferentes: do país de origem da embarcação, onde a mesma é registrada e cuja bandeira ela ostenta; do país em cujo porto o navio atraca; e do país em cujas águas ele navega.
É comum que os proprietários de navio adotem bandeiras de outros países, conhecidas como bandeiras de conveniência, ou seja, registram a sua embarcação em um país com regulamentação mais fraca. Muitos desses países, no entanto, melhoraram bastante as suas ações de inspeção nos últimos anos; outros, como o Panamá e a Grécia, tem uma fila enorme de navios para inspecionar, o que acaba sobrecarregando as autoridades.
“A estrutura dos regulamentos é boa”, afirma James Kraska, professor de Direito marítimo internacional no Colégio de Guerra Naval em Newport, EUA. “O que deixa a desejar é o cumprimento. Alguns países prejudicam o sistema. E existem também as redes ilegais, as redes criminosas”.
Essas redes geralmente se envolvem com a pesca ilegal e a sua presença é preocupante nos países que sofrem sanções comerciais, pois eles têm uma razão a mais para fazer vista grossa a traficantes.
Essas redes geralmente usam navios “fantasmas”, também conhecidos como “dark ships” – eles desligam o transponder e se tornam invisíveis para os sistemas de monitoramento. Essas embarcações já foram detidas tentando burlar sanções americanas ao transportar petróleo venezuelano, o que levou as autoridades brasileiras a suspeitarem do seu envolvimento com o desastre recente.
Porém, tudo ainda é especulação. A origem do vazamento continua misteriosa. Leandra Gonçalves, pesquisadora do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo, disse que o sistema de governança é muito fragmentado e isso causa alguns problemas, como as falhas de notificação dos vazamentos. Consertar isso é essencial para fortalecer a rede de segurança internacional.
“Existe uma lacuna na governança internacional dos oceanos”, disse ela. “E essa lacuna precisa ser fechada”.
Detendo a maré negra
Santana nasceu e foi criado em Cabo do Santo Agostinho, uma pequena cidade praiana do nordeste brasileiro. Aos 36 anos, trabalhava como instrutor de stand up paddle e atendia milhares de turistas todos os anos.
“Nem todo mundo estudou [ou] tem emprego aqui”, disse ele. “A gente depende do turismo”.
Quando a equipe da China Dialogue Ocean conheceu Santana, ele tinha acabado de passar 17 dias limpando a praia. Em cima da prancha, ele removia o óleo usando quatro pares de luvas em cada mão para evitar contaminação.
Os milhares de brasileiros que, como Santana, resolveram se unir para limpar as praias acabaram tendo que improvisar. Sem equipamentos ou orientação adequada, eles penaram para limpar os rastros viscosos de petróleo cru da areia, mangues e pedras.
A China Dialogue Ocean visitou dois estados e encontrou dezenas de barracas de peixe e de peixarias vazias. Os proprietários contaram que houve uma queda de 80% nas vendas.
“Os clientes acham que os peixes e frutos do mar estão contaminados”, relatou Demétrio Melo, que trabalha como peixeiro na cidade de Olinda. “Estão com medo”.
A situação é ainda mais delicada porque a maioria dos pescadores vive em situação de pobreza e depende dos peixes que vendem. É o caso de Maria do Socorro, uma senhora de 51 anos que vive com o marido e a filha em uma casinha de madeira de 20 metros quadrados, com chão de terra batida, na cidade praiana de Nova Cruz.
“Os peixes foram contaminados”, disse ela. “Agora ninguém vai comprar”.
A extensão dos danos ambientais ainda é desconhecida, mas sabe-se que mais de 10 reservas nacionais de proteção ambiental foram envenenadas. Valmir Ramos da Silva, secretário de Meio Ambiente na cidade de Barreiros, Pernambuco, saiu do escritório para ajudar os outros moradores na limpeza.
“A nossa principal preocupação é o rio, o estuário”, disse ele. “Esse é um dos estuários menos poluídos do Brasil. Não é só a biodiversidade que vai ser afetada, mas os pescadores. Essa é a fonte de renda deles”.
Entre agosto e o fim de novembro, as manchas chegaram a mais de 800 praias. Os voluntários conseguiram limpar a maior parte do óleo em várias praias, mas o problema reapareceu algumas semanas depois.
Ao trabalhar de graça sob o sol, Santana viu muitos moradores da sua cidade passarem fome porque não podiam pescar. Ele sabia que nada que fizessem seria suficiente para deter a maré negra.
“Esse trabalho que estamos fazendo precisa ser o último”, disse Santana. “Mas não temos barcos para chegar no alto-mar. Não temos estruturas para segurar o óleo que ainda está chegando”.
Frustração com a lentidão do governo
Pescadores, ambientalistas e acadêmicos manifestaram frustração devido à falta de ação do governo.
As autoridades municipais estavam descartando o óleo coletado das praias em aterros e prédios abandonados, ignorando as normas ambientais. Os voluntários não receberam atendimento médico e não havia equipamentos suficientes para limpar as manchas de óleo.
Muitos acusaram o governo do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, de não fazer o suficiente. Bolsonaro mandou investigar a questão apenas no dia 5 de outubro – 41 dias depois do início do desastre.
Em 18 de outubro, o Ministério Público Federal pressionou o governo a agir.
“O governo insiste em dizer que está tudo certo, mas não está”, disse o procurador da República Ramiro Rockenback aos jornalistas. “O que está acontecendo é muito sério”.
Missão impossível: encontrar a origem
Identificar a origem de um vazamento de petróleo dessa magnitude seria, em teoria, fácil. Não é nem um pouco difícil ver um grande petroleiro lutando para conter um vazamento enorme de toneladas de petróleo. As empresas geralmente notificam esses eventos e uma aeronave facilmente visualizaria algo assim.
Mas não foi isso o que aconteceu. Os pesquisadores acreditam que o vazamento tenha acontecido pelo menos um mês antes de atingir a costa brasileira. Nesse caso, mesmo que estivesse em apuros, o navio teria tempo suficiente para fugir.
Os satélites têm uma capacidade limitada para coletar e armazenar dados; as suas imagens não conseguem capturar a superfície da água em alto-mar com detalhes suficientes para revelar a textura de um vazamento de petróleo. Tudo o que acontece em um raio inferior a 500 metros quadrados é praticamente invisível.
Muitas entidades – incluindo o órgão nacional de proteção ambiental do Brasil – afirmaram que era impossível identificar o suspeito usando satélites. Mesmo assim, algumas tentaram.
Leonardo Barros está a frente da Hex, uma empresa especializada em tecnologia geoespacial. Ele e sua equipe se ofereceram como voluntários para ajudar o governo.
“Não há dúvidas de que o maior desafio é a disponibilidade dos dados”, disse Barros. “Isso torna o trabalho mais complexo e até inovador”.
Usando modelos para determinar as correntes e os ventos marinhos, eles identificaram uma área irregular onde o petróleo pode ter vazado: a corrente Sul Equatorial, que vem da África e se divide em duas partes perto da ponta oriental do Brasil, seguindo em direção norte e sul da linha costeira. Outros pesquisadores concordaram.
Eles então coletaram e processaram imagens de satélite da Nasa e da Agência Espacial Europeia. A cerca de 700 km da costa brasileira, eles encontraram indícios de uma mancha de 200 quilômetros de extensão e um navio que não conseguiram identificar.
Depois coletaram os dados de localização dos navios usando um sistema de identificação automática que monitora todos os navios com transponder ligado, conforme exigido pela legislação. A Hex conseguiu encontrar quatro navios nessa área no momento suspeito do vazamento. Apenas um estava transportando petróleo venezuelano – a embarcação Bouboulina, de bandeira grega.
A polícia federal baseou as investigações no relatório da Hex e, no início de novembro, a Bouboulina era a principal suspeita. No entanto, a proprietária grega Delta Tankers negou fortemente que o petróleo tenha vazado do seu navio.
Na semana passada, Pedro Binelli, representante do Ibama, disse ao Congresso que a equipe dele acredita que a mancha encontrada pela empresa Hex seja apenas clorofila, um pigmento verde que sinaliza uma concentração de organismos microscópicos chamados de fitoplâncton na água.
Binelli disse que os pesquisadores estavam procurando o suspeito ainda mais longe da costa brasileira, chegando mais próximo à África.
“Quanto mais o tempo passar, mais difícil vai ser localizar a origem das manchas de petróleo”, disse ele ao portal de notícias G1.
Outros pesquisadores trabalharam de forma independente e elaboraram teorias diferentes. Na Universidade Federal de Alagoas, um professor apontou para um navio chamado de Voyager 1. A ONG americana Skytruth desconfiou de um navio chamado The Amigos. Ambos voltaram atrás nas suas suspeitas.
Barros explicou que o relatório da sua empresa era apenas para ajudar nas investigações e disse que um navio “fantasma” pode ter sido o responsável.
“Naquele período e local… havia quatro embarcações”, disse ele. “Isso elimina a possibilidade de haver uma embarcação não identificada por lá? Não”.
Quem paga a conta da poluição?
A investigação parece ter travado, mas em algumas convenções internacionais há mecanismos que protegem os estados signatários contra vazamentos de petróleo, mesmo quando a origem é desconhecida.
Uma delas, que estabelece o Fundo Internacional de Compensação por Danos Causados por Poluição por Petróleo, garante o pagamento de danos aos países afetados por vazamentos nos casos em que a empresa transportadora responsável não tenha condições de pagar – ou se a vítima não conseguir identificar o navio culpado.
O problema é que o Brasil nunca ratificou essa convenção. Caso não encontrar o navio culpado, não será indenizada.
O Brasil carece de um sistema de monitoramento robusto para o oceano. Muitos oficiais da marinha brasileira concordaram que o Brasil poderia ter se protegido melhor, mas isso custaria bilhões aos cofres públicos.
“De quem é a culpa? O que falhou? O Brasil foi vítima de um ataque”, disse um dos oficiais, que pediu para que o seu nome não fosse divulgado. “Isso pode acontecer com qualquer país”.
Além da jurisdição nacional
Enquanto os pescadores e os moradores de centenas de cidades praianas brasileiras ainda sentem os efeitos do vazamento, os ambientalistas estão se esforçando para medir o impacto.
“Não conseguimos estimar o impacto sem saber a origem e a quantidade de petróleo que vazou”, disse Thiago Almeida, líder da campanha de Clima e Energia do Greenpeace no Brasil.
Ele explicou que os ecossistemas costeiros são os mais vulneráveis porque hospedam os berçários da vida marinha. Mas é bem provável que a vida em alto-mar também tenha sido prejudicada.
Lá, ninguém pode pedir indenizações. O alto-mar fica fora do alcance da jurisdição de qualquer país individual, e cobre mais da metade do planeta e abriga 90% da vida marinha.
Os países estão negociando mais proteções para as regiões de alto-mar através de um tratado da ONU, conhecido como BBNJ, que protegeria a biodiversidade marinha em áreas fora do alcance das jurisdições nacionais.
Um tratado assim poderia, entre outras coisas, aumentar o número de santuários ecológicos em alto-mar —atualmente, apenas 1% dessas áreas é protegida. Também poderia criar uma base adequada para as avaliações de impacto ambiental realizadas em águas internacionais.
Embora o mundo pareça estar mais interessado em conversar sobre os oceanos, os danos em alto-mar ainda não fazem parte das discussões sobre o vazamento de petróleo no Brasil. Isso não significa que a tragédia não afetará os seres humanos por um longo tempo ainda.
“O petróleo é extremamente tóxico e carcinogênico”, disse Almeida. “Ele se dissolve lentamente e depois é ingerido por criaturas marinhas, subindo na cadeia alimentar”.
Enquanto isso, Santana continua limpando a sua praia. Ele disse que viu uma nova mancha de óleo se aproximando de Cabo de Santo Agostinho apenas duas semanas depois da visita da China Dialogue Ocean à cidade.
Segundo ele, os moradores já estavam pescando novamente, apesar de os cientistas terem avisado que os peixes poderiam estar contaminados.
“As pessoas estão pescando e comendo os peixes”, disse ele. “Elas não são especialistas. Não querem acreditar”.