Poluição

‘Estão nos matando’: indígenas da Amazônia pedem socorro contra garimpo ilegal

Novo livro de escritor britânico retrata a resistência de aldeias contra a intoxicação de sua população por mercúrio
<p>Agentes do Ibama interditam área de mineração ilegal na Terra Indígena Munduruku, no Pará (Imagem: <a href="https://www.flickr.com/photos/ibamagov/42127291715/in/album-72157682274802094/">Vinícius Mendonça</a> / <a href="https://www.flickr.com/people/ibamagov/">Ibama</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/">CC BY-SA</a>)</p>

Agentes do Ibama interditam área de mineração ilegal na Terra Indígena Munduruku, no Pará (Imagem: Vinícius Mendonça / Ibama, CC BY-SA)

Ao gravar o documentário Amazônia, a Nova Minamata?, sobre os efeitos do garimpo na região, o cineasta brasileiro Jorge Bodanzky conheceu o neurocirurgião e piloto Erik Jennings, do hospital público de Santarém, no Pará. Há anos, Jennings trabalha exaustivamente junto às comunidades indígenas na bacia do rio Tapajós, como parte da equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Nota do editor


Este é um trecho adaptado do livro Coração da Terra: a resistência de comunidades à mineração na América Latina (tradução livre), do escritor britânico Tom Gatehouse. A publicação estará disponível a partir de 24 de março, somente em inglês, no site da editora Practical Action Publishing.

“Jennings e seus colegas estavam preocupados com o aumento significativo dos pedidos por cadeiras de rodas para crianças em idade escolar na região. Eram crianças que sofriam problemas neurológicos e dificuldades de coordenação motora”, diz Bodanzky. “Havia também um mau desempenho escolar, muitos estudantes repetentes e com dificuldade de aprendizagem em um grau muito acima da média regional”.

A hipótese de Jennings? Envenenamento por mercúrio.

O mercúrio — um dos dez produtos químicos que mais gera preocupação para a saúde pública, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) — tem sido usado há séculos como uma forma barata para extrair ouro. Ele é praticamente indestrutível e pode ser transportado pela água ou pelo vento por centenas de quilômetros. Uma vez liberado no meio ambiente, é quase impossível contê-lo.

No garimpo, o mercúrio funciona como um ímã, ligando-se às partículas de ouro e facilitando a sua extração da rocha. A seguir, essa mistura é lavada para separar quaisquer resíduos — geralmente despejados no rio. A Polícia Federal estima que os garimpeiros joguem cerca de sete milhões de toneladas de sedimentos com mercúrio no rio Tapajós ao ano.

garimpo na floresta amazônica
Garimpo na Terra Indígena Munduruku, no Pará. Embora a mineração seja ilegal nas reservas indígenas, a atividade disparou durante o governo de Jair Bolsonaro (Imagem: Vinícius Mendonça / Ibama, CC BY SA)

Para extrair o ouro, os garimpeiros normalmente queimam o mercúrio. Os vapores liberados se condensam parcialmente nas nuvens e caem depois com a água da chuva. Nesse processo, algumas bactérias transformam o mercúrio em metilmercúrio, uma poderosa neurotoxina que afeta animais aquáticos e se espalha por toda a cadeia alimentar.

Além disso, o solo da Amazônia é naturalmente rico em mercúrio inorgânico, o que não costuma oferecer risco à saúde. No entanto, o garimpo e outras intervenções humanas no solo, como a pecuária, destroem a floresta e provocam a erosão do solo, levando o metal a ter contato direto com a água, onde novamente se transforma em metilmercúrio.

O metilmercúrio ataca o sistema nervoso central, causando perda de memória, fadiga e problemas de concentração — sintomas inicialmente leves e que muitas vezes são subdiagnosticados. Em certos casos, pode haver complicações anos depois: tremores, declínio cognitivo, problemas de audição e fala; nas situações mais graves, há paralisia, estado de coma e até morte. O dano é irreversível.

O mercúrio também pode atravessar a placenta, atingindo o sistema nervoso do feto. Recém-nascidos são particularmente suscetíveis ao metilmercúrio e podem ser afetados mesmo que a mãe não demonstre sinais de envenenamento.

O filme de Bodanzky traça um paralelo com o Desastre de Minamata, no Japão: entre os anos 1930 e 1950, milhares de pessoas foram envenenadas por consumir peixes e mariscos contaminados com mercúrio da Baía de Minamata. A responsável era uma fábrica da Chisso Corporation, empresa japonesa de produtos químicos, que por décadas despejou águas residuais na baía — e seguiu com a prática mesmo depois que a chamada doença de Minamata se tornou conhecida.

“Tudo o que aconteceu em Minamata começou a ocorrer na Amazônia”, diz Bodanzky. “É outra escala, mas dá uma ideia do que pode acontecer se ninguém fizer nada a respeito”.

‘Estão nos matando’

O problema é latente nas comunidades ribeirinhas da Amazônia, como os Munduruku, um dos maiores povos indígenas do Brasil. Nos últimos anos, eles têm enfrentado a pressão de madeireiros ilegais, grileiros de terras, o agronegócio e o impacto de hidrelétricas.

Mas o garimpo — que representa uma ameaça aos Munduruku desde os anos 1970 — explodiu mesmo durante a presidência de Jair Bolsonaro (2019-2022). Pesquisas do Instituto Socioambiental descobriram que a área da Terra Indígena Munduruku degradada pelo garimpo aumentou 363% entre janeiro de 2019 e maio de 2021. O impacto sobre o rio Tapajós — que, para os Munduruku, é fonte de pesca, alimentação de seu gado, higiene e transporte — tem sido particularmente devastador.

Alessandra Korap Munduruku
Alessandra Korap Munduruku é uma líder indígena que luta para proteger seu povo da mineração ilegal: ‘Não podemos parar de comer peixe porque está contaminado com mercúrio’ (Imagem: Marizilda Cruppe / Amazônia Real, CC BY-NC-SA)

“Sabemos que estamos doentes, que temos altos níveis de mercúrio em nossos corpos. Mas é a única fonte de alimento que temos”, diz a líder indígena Alessandra Korap Munduruku. “Não podemos deixar de comer peixe porque ele está contaminado com mercúrio. Todos morreríamos de fome, porque dependemos do rio, dependemos dos peixes para nossa sobrevivência”.

O nível de intoxicação por mercúrio entre os Munduruku superou até mesmo as piores expectativas de Erik Jennings e sua equipe, que têm monitorado a situação de perto nos últimos anos.

“Nossa pesquisa [feita com 109 moradores do Alto Tapajós] mostrou que 99% da população examinada tem níveis de mercúrio no sangue acima do considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde”, disse Jennings à Repórter Brasil. “Algumas têm até 15 vezes acima do recomendado. É muito preocupante”.

“Tem que haver alguma punição, porque eles estão nos matando”, diz Alessandra Munduruku. “Não há dúvidas se o garimpo terá um impacto; ele já teve. Os peixes estão morrendo pela contaminação. As mulheres estão sendo envenenadas. Agora temos provas”.

No fim de 2020, Jennings tentou retornar às aldeias do Alto Tapajós com o produtor e operador de câmera de Bodanzky para mostrar o resultado de seu trabalho aos Munduruku. Porém, quando seu avião parou para reabastecer em Jacareacanga, uma das cidades limítrofes do território indígena, foram atacados por um grupo de indígenas pró-garimpo.

“Pensaram que nossa equipe era do Greenpeace e começou uma enorme discussão. A coisa ficou feia”, explica Bodanzky.

Jennings e a equipe escaparam, subiram no avião e decolaram enquanto eram atacados por pedras. Por sorte, ninguém ficou ferido.