A tragédia que ocorreu em Mariana, na região sudeste do Brasil, em novembro de 2015 após rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, evidenciou o “desequilíbrio das prioridades econômicas”. Ficaram em segundo plano aspectos humanos e ambientais, além de ter deixado claro o fracasso na proteção dos direitos humanos associados a desastres. Estas são as conclusões a que chegaram peritos membros do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos que estudaram o caso. “Vimos na prática o desequilíbrio entre as prioridades econômicas e o enfoque preventivo do ponto de vista social e ambiental. É evidente que houve uma falha preventiva. Um desastre dessa natureza não pode ser atribuído à má sorte”, disse o chefe do grupo de peritos da ONU, Dante Pesce, em entrevista exclusiva ao Diálogo Chino. O Grupo de Trabalho da ONU, que se dedica a monitorar a atuação de empresas no mundo levando em conta a proteção dos direitos humanos, apresentou seu relatório sobre a tragédia de Mariana na 32ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, no dia 16 de junho último. Durante três semanas, este conselho permanece reunido para avaliar e discutir os temas mais urgentes no mundo. São três reuniões anuais de três semanas cada. O grupo de cinco especialistas independentes liderados pelo chileno Dante Pesce, diretor do Centro Vincular de Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Católica de Valparaíso, visitou o Brasil em dezembro de 2015. Esta foi a primeira vez que este Grupo de Trabalho, estabelecido pelo Conselho de Direitos Humanos em junho de 2011, esteve em missão em um país latino-americano. Pesce e seu colega russo Pavel Sulyandziga visitaram o estado de Minas Gerais depois do desastre em Mariana tendo se reunido com autoridades, empresários da Samarco, sociedade civil, grupos de vítimas, além de promotores públicos estaduais e procuradores federais envolvidos nos esforços de compensação para as vítimas. No roteiro, estava previsto que os especialistas visitassem Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Altamira e Belém, mas, em razão da tragédia em Mariana ocorrida um mês antes de sua visita, Pesce conseguiu incluir a cidade histórica no itinerário. “Subestimaram os riscos” “A preparação de nossa visita iniciou oito meses antes da viagem, foi uma coincidência o que aconteceu em Mariana. Conseguimos incorporar no último momento dada a circunstância. A prevenção de riscos foi mal conduzida, subestimaram que os riscos associados (a ruptura da barragem) pudesse gerar uma situação como essa. Os executivos da empresa nos disseram que nunca esperavam algo assim pudesse ocorrer. A capacidade de resposta da empresa, no início, foi extraordinariamente lenta. Aparentemente não havia protocolos para enfrentar uma situação assim, isso não estava nem dentro do mapa de riscos da empresa”, resumiu Pesce. O rompimento da barragem de rejeitos de mineração que afetou Minas Gerais e Espírito Santo resultou no lançamento de quase 60 milhões de metros cúbicos de resíduos de mineração no rio Doce. Este que tornara-se o pior desastre ambiental da história do Brasil causou uma enxurrada de lama que matou 19 pessoas e inundou povoados inteiros, destruindo completamente os vilarejos de Bento Rodrigues e Paracatu. A lama viajou mais de 600 quilômetros ao longo do rio Doce até atingir o Oceano Atlântico. Matou peixes, fauna, flora e causou uma profunda crise social. A tragédia afetou ainda a subsistência e o acesso a água potável de grande número de pessoas, dentre os quais milhares de pescadores que dependiam diretamente do rio para seu sustento. A barragem de rejeitos continha resíduos de minério de ferro e era operada pela mineradora Samarco – controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, cada uma detentora de metade das ações. Os chineses são um dos grandes investidores da Vale, uma das maiores mineradoras do mundo. A China é a principal compradora de minério de ferro da empresa e ainda fornece navios para o transporte do produto. Em dezembro, numa prévia do informe, o Grupo de Trabalho já alertava para a possibilidade de que outros derrames e acidentes trágicos pudessem ocorrer. O estado de Minas Gerais abriga 753 barragens de rejeitos e 40 delas são consideradas inseguras. Segundo Pesce, um acidente tanto por erro humano quanto por mudanças climáticas é não só um risco real como bastante alto. “A nossa pergunta é se algo parecido poderia voltar a ocorrer e nos informaram da existência de centenas de barragens com rejeitos. A da Samarco não estava dentro das consideradas de risco, há mais de 30 na lista das autoridades que seriam altamente perigosas de colapsar. Se isto ocorreu com a Samarco, onde as medidas de prevenção falharam pegando totalmente de surpresa e a reação foi tardia, é possível que isso volte a se repetir”, alertou. “Se a Samarco fracassou, o que se pode esperar de empresas menos sofisticadas de rejeitos mineiros que já estão em categoria de risco?”, questionou Pesce, cientista político e também assessor especial de políticas públicas para a América Latina do Pacto Global da ONU. O grande alerta do relatório apresentado em Genebra se refere ao alto risco de que novos desastres similares aconteçam em um período de tempo não tão longo. Pesce admitiu que o relatório foi recebido de forma crítica e com resistência por parte do governo brasileiro em Genebra. Reforço à prevenção Entre as recomendações do grupo de peritos estão o reforço à prevenção de acidentes e concessão de mais poderes às autoridades para fiscalizar. Em Minas Gerais, há apenas quatro funcionários públicos encarregados de supervisionar as barragens de rejeitos de mineração, um número aquém do necessário. “As autoridades dependem da boa fé das empresas”. Na avaliação de Pesce, a grande mensagem para o governo brasileiro e para as empresas é aprender as lições a partir do desastre da Samarco, garantir o acesso das vítimas à justiça e tomar medidas corretivas para que isso não volte a ocorrer. “Vimos um desequilíbrio de prioridades em que a ênfase de gerar emprego e atrair investimentos concentra a maior parte dos esforços. Enquanto o enfoque preventivo em relação ao meio ambiente e aos direitos humanos está em um nível de importância menor”, advertiu. “No Brasil, o nível de consciência ainda é baixo em relação ao papel das empresas na proteção dos direitos humanos e preocupação ambiental. A crise econômica no Brasil não favorece o equilíbrio entre a necessidade de crescer e as preocupações socioambientais”, alertou o perito da ONU. “Há interesses que se chocam pela urgência de gerar empregos, atrair investimentos e aumentar a arrecadação de impostos”. No dia 17 de junho, o Ministério do Meio Ambiente informou ter multado a Samarco em US$ 42 milhões em razão dos danos causados pela enxurrada de lama que atingiu três unidades de conservação no Espírito Santo. A empresa foi autuada por agentes de fiscalização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por causar impactos à Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas, ao Refúgio de Vida Silvestre (RVS) de Santa Cruz e à zona de amortecimento da Reserva Biológica (Rebio) de Comboios. As três unidades de conservação federais são administradas pelo ICMBio e estão localizadas no Espírito Santo. Carregados ao longo do Rio Doce, os rejeitos chegaram no dia 21 de novembro ao litoral do Espírito Santo, formando uma pluma que atingiu áreas protegidas. “Verificou-se que a concentração de metais como Arsênio, Chumbo, Cádmio e Cobre na zona de amortecimento da Rebio de Comboios, bem como de Arsênio e Chumbo na APA Costa das Algas e no RVS de Santa Cruz, apresentavam-se em níveis maiores do que os valores máximos determinados pela Resolução CONAMA nº 357/2005”, informou em nota a chefe do RVS de Santa Cruz, Lígia Coser.