Em Madre de Dios, capital da biodiversidade da Amazônia peruana e antro do tráfico ilegal de animais silvestres, Magali Salinas reabilitou e libertou centenas de animais nos últimos 17 anos – incluindo macacos bugios e capuchinhos, além de macacos-da-noite, falcões, tartarugas e gambás.
“Libertei mais de 50 bugios e vê-los correndo rumo à liberdade não tem preço”, diz Salinas, fundadora do centro de resgate Amazon Shelter. Toda semana, o abrigo recebe vários animais feridos, com patas queimadas ou asas quebradas, apreendidos pelas autoridades das mãos de traficantes.
Nas últimas duas décadas, mais de cem mil animais selvagens foram resgatados com vida no Peru, incluindo quase 44 mil anfíbios e pouco menos de 46 mil pássaros, segundo relatórios do Serviço Nacional de Florestas e Fauna Silvestre do Peru. Suspeita-se que esses animais tivessem como destino colecionadores particulares, zoológicos, lojas de animais de estimação, indústrias de couro, peles e têxteis, entre outras.
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Número de animais selvagens resgatados com vida no Peru nas últimas duas décadas
Nem mesmo as rigorosas restrições impostas pela pandemia da Covid-19 conseguiram conter a criminalidade contra a vida selvagem no Peru. “Recebemos mais animais do que nunca e ainda continuamos a recebê-los”, diz Salinas, que teve que exceder a lotação de 60 animais no centro de resgate para acomodar até cem bichos de cada vez.
Segundo as autoridades peruanas, o tráfico ilegal via internet também se intensificou durante a pandemia. O comércio ocorre não apenas na deep web, mas também nas redes sociais e em outras plataformas online com mais visibilidade. É possível encontrar répteis vivos e partes do corpo de espécies protegidas e até ameaçadas de extinção. De acordo com pesquisas da Aliança pela Fauna Silvestre e pelas Florestas, as tartarugas vivas e seus ovos – particularmente a tartaruga-matamatá (Chelus fimbriata) – geralmente são os animais com mais anúncios de venda online.
Apesar dos números assustadores, o Peru tem adotado uma posição firme em relação ao tráfico de animais selvagens nos últimos anos. O país introduziu uma estratégia nacional voltada para o tema e apresentou leis e iniciativas vanguardistas para combater o comércio ilegal na região. Mas especialistas apontam que ainda há muitas lacunas na aplicação e implementação desses planos, uma vez que autoridades enfrentam operações consideráveis e redes internacionais do crime organizado.
Reforços contra traficantes da fauna
Em entrevista ao Diálogo Chino, a advogada Patricia Torres, da Sociedade Peruana de Direito Ambiental (SPDA), diz que o Peru “tomou uma posição” nos últimos anos contra o tráfico de animais silvestres e promoveu processos para combatê-lo regionalmente. Entretanto, Torres acredita que “a instabilidade [política] impede uma estratégia sólida contra o tráfico de animais silvestres”.
Em 2017, o Peru publicou sua estratégia nacional para reduzir o tráfico ilegal de animais selvagens até 2027. Na sequência, em 2019, veio a Declaração de Lima sobre o comércio ilegal da vida silvestre, um documento aceito por 20 países e promovida pelo Peru para combater atividades ilegais em toda a região. As 21 medidas propostas foram consideradas “bastante ambiciosas”, segundo a bióloga Rosa Vento, especialista em tráfico da organização Wildlife Conservation Society (WCS).
Porém, as medidas não devem surtir efeitos imediatos, segundo Vento, “por ser basicamente um compromisso político, e não um compromisso normativo vinculante”. Assim, ela acrescenta, isso “depende muito da vontade dos países para implementá-lo”.
Já existe um acordo internacional de caráter vinculante para preservar a vida silvestre: a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Flora e Fauna Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites). Porém, o foco da Cites é o comércio internacional. Cada país signatário deve combater o comércio e o tráfico ilegal de animais silvestres dentro de suas fronteiras. Nas negociações e reuniões da Cites, explica Torres, o Peru pediu que o acordo incluísse algumas espécies ameaçadas pelo comércio internacional.
Em 1975, o Peru foi um dos primeiros países a assinar o acordo, que atualmente cobre quase seis mil espécies animais e 32,8 mil vegetais ao redor do mundo, regulando ou proibindo o comércio internacional, segundo o grau de proteção considerado necessário.
Na recente cúpula da Cites sobre o comércio global de animais selvagens, concluída em novembro no Panamá, o Peru trouxe duas propostas de acréscimos ao Apêndice II do acordo, a lista destinada às espécies que podem se tornar ameaçadas. Uma delas foi para as pererecas-de-vidro (da família Centrolenidae) e a outra para as tartarugas-matamatá, vendidas como animais de estimação exóticos no exterior. Os principais destinos dessas últimas são a China e os Estados Unidos, que juntos representam 85% de suas exportações desde 2010, conforme a proposta apresentada pelo Peru, em colaboração com o Brasil, a Colômbia e a Costa Rica.
Ambas as propostas foram adotadas em consenso. Isso significa que, a partir de 90 dias após a conclusão da reunião, serão necessárias autorizações especiais para que essas espécies possam ser comercializadas internacionalmente. As exportações de espécies listadas no Apêndice II da Cites requerem licenças que comprovem que os animais ou plantas foram obtidos legalmente e de maneira sustentável, para garantir que o comércio não ameace a sobrevivência dessas espécies.
Máfias da vida silvestre na mira
Embora a maioria dos animais selvagens capturados pelo tráfico seja vendida para o comércio local, autoridades peruanas estimam que 20% dos animais resgatados tenham como destino o mercado internacional. Segundo investigações como a do think tank InSight Crime, a China é de longe o maior mercado consumidor de plantas e animais contrabandeados para fora do Peru, seguida pelos Estados Unidos.
A onça-pintada (Panthera onca) é um caso emblemático. Quando esse felino ícone das Américas cai nas redes dos traficantes, suas partes – presas, pele e ossos – às vezes são vendidas como joias ou amuletos na China. Uma pesquisa publicada na revista Conservation Biology alerta que o comércio ilegal das partes de animais está em ascensão e provavelmente ligado a investimentos chineses nas Américas Central e do Sul.
Por trás do tráfico de partes da onça-pintada, há organizações criminosas que vendem suas presas por até US$ 3 mil na Ásia. Em 2021, a Bolívia prendeu cinco traficantes de onça-pintada que, segundo autoridades, faziam parte de uma rede criminosa internacional que operava no Peru, Brasil e Vietnã.
Como resultado desse comércio em ascensão, diversas organizações peruanas fizeram campanha nos últimos três anos para que o tráfico ilegal de animais selvagens seja incluído na categoria de crime organizado, pedido aprovado pelo Congresso do Peru em novembro.
Esta lei coloca [o Peru] na vanguarda da luta contra o tráfico ilegal na América Latina
A nova lei agora permite investigar as organizações criminosas por trás do tráfico de animais terrestres e aquáticos. E ainda mais importante: os condenados terão penas entre 11 e 20 anos de prisão, em vez do limite anterior de sete anos.
“Esta lei coloca [o Peru] na vanguarda da luta contra o tráfico ilegal na América Latina, pelo menos em termos legais”, diz Carmen Heck, diretora de políticas da organização Oceana. “Quase nenhum país da região tem leis que nos permitam processar estes crimes como o crime organizado que eles são”.
Rosa Vento, da WCS, acredita que a emenda “dará mais ferramentas para a investigação [destes crimes], especialmente aos operadores de justiça nas fases de investigação, acusação e punição”. Desta forma, será possível retirar o sigilo dos dados bancários, utilizar técnicas especiais de investigação – como agentes infiltrados – e ter mais tempo para investigações preliminares e detenções pré-julgamento.
“O Peru está se posicionando como um país cujas regulamentações criminais são as mais rigorosas”, diz Vento. Ela acrescenta que, na Bolívia, o Senado aprovou recentemente um projeto de lei semelhante, para considerar crime o tráfico de animais selvagens, o que ela descreve como mais um “passo à frente”.
Debate sobre espécies aquáticas
A nova emenda legal contra o crime organizado no Peru também inclui o tráfico de espécies aquáticas, como tubarões e cavalos-marinhos, alguns dos mais afetados pelo contrabando. O Peru está entre os 15 países que mais exportam nadadeiras de tubarão para a China, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Porém, há dois projetos sobre o tema que tramitam no Legislativo: um para modificar a lei que regula esse comércio e outro para revogá-la, e eles contam com o apoio do Ministério de Produção do Peru e de alguns representantes da pesca artesanal. Parte dos pescadores tem receio de que uma mudança legal possa criminalizá-los por captura acidental, enquanto outros a apoiam.
“Esta lei não se destina a criminalizar os pescadores artesanais, e sim o crime organizado pelo tráfico transnacional”, garante Percy Grandez, assessor jurídico da SPDA, em uma recente sessão da Comissão de Justiça do Congresso peruano, que recebeu uma carta assinada por mais de 47 mil cidadãos pedindo que a lei fosse respeitada.
“Propomos que fique muito claro na lei que fique dispensada a aplicação de agravante para capturas acidentais ou fora dos tamanhos regulamentados”, acrescenta.
A questão sempre desperta controvérsias quando envolve esforços para proteger as espécies aquáticas. Segundo a lei peruana, elas são consideradas recursos hidrobiológicos – o que, segundo Heck, significa que elas são vistas como um recurso a ser explorado, “e não como espécies selvagens que devem ser conservadas e protegidas”.
“Embora as espécies terrestres tenham uma série de proteções, como a Lista Vermelha de espécies ameaçadas, não há nada semelhante para as aquáticas. Há um grave problema de tráfico ilegal de partes de tubarão que coloca em risco a sustentabilidade do recurso e também afeta os pescadores”, aponta Heck, da Oceana, uma das principais organizações envolvidas na campanha pela mudança na legislação sobre crime organizado.
Segundo o especialista, grande parte das nadadeiras exportadas pelo Peru provém de tubarões capturados no Equador, país que proíbe sua pesca deliberada. Uma investigação do site peruano de notícias OjoPublico revelou que 62% das nadadeiras que saíram do país para os mercados asiáticos entre 2020 e 2021 passaram pela nação vizinha. “Nesta cadeia, uma série de irregularidades foi detectada. Fica mais evidente o risco de que, por trás dela, estejam organizações criminosas transnacionais”, diz Heck.
Na recente conferência da Cites, passaram a ser protegidas da pesca indiscriminada 56 espécies de tubarão, com 88 votos a favor, 29 contra e 17 abstenções. O Peru foi um dos países que votou contra. Embora apenas 19 espécies particularmente ameaçadas tenham sido alvo da proposta – já que as nadadeiras e a carne de tubarão são muito difíceis de identificar – o comércio de famílias inteiras da fauna silvestre precisará ser regulamentado para que essas espécies sejam efetivamente protegidas.