Não chovia há três meses. Nem uma única gota havia caído nos nove hectares de pastos ressecados onde Carmen Portela e sua família criam gado, perto de Cuchilla del Fuego. A cidade, no departamento noroeste de Paysandú, foi uma das áreas mais afetadas pela seca na primavera de 2021 no Uruguai.
O déficit hídrico, causado pelo segundo ano consecutivo do fenômeno climático La Niña, foi motivo de preocupação em quase todos os cantos do país, e em toda a América do Sul. Mas foram os incêndios no Uruguai — os maiores da história do país e que queimaram 37 mil hectares de floresta em Rio Negro e Paysandú — que causaram mais alarme. Eles levaram à declaração de estado de emergência nos últimos dias de dezembro.
A seca dos pastos afetou particularmente vacas e seus bezerros nascidos no inverno do ano passado. Antes dos incêndios, milhares de bovinos pastavam dentro das florestas, em sistemas agrícolas integrados à exploração florestal.
Alguns bezerros morreram, alguns sofreram queimaduras, outros se dispersaram da manada e ficaram ilhados por terras incendiadas.
Após os incêndios, a Liga del Trabajo, uma organização da cidade de Paysandú, em Guichón, se mobilizou para ajudar os pequenos agricultores e seus bezerros afetados pela devastação. Eles transformaram a área que normalmente abriga feiras, leilões e outros serviços pecuários da cidade em alojamento para a reabilitação dos animais.
Não é a primeira vez que isso é feito: nas temporadas de 1999/00 e 2007/08, outros dois períodos de seca extrema, a Liga já havia aberto suas portas para bezerros vulneráveis.
“Quando surgiu essa possibilidade, nós logo aderimos para cuidar do futuro de nossa produção”, nos disse Carmen, enquanto tentava escolher alguns de seus 60 bezerros Braford e Angus vermelhos entre as centenas que pastavam no “hotel” de bovinos.
Hotel para bovinos
As vastas instalações da Liga estão equipadas para abrigar e cuidar de um grande número de bovinos, com vários cercados, currais de vacinação, grades de gado, além de locais de banho e abrigos para os animais. No centro do complexo, há uma arena para equitação e uma área menor para leilões. É algo que lembra a arquitetura rural de um século atrás.
Para o hotel, foi necessário instalar três comedouros com capacidade para até 400 kg de ração, bebedouros, toldos para garantir sombra dos animais, além de recrutar uma equipe.
Para a assistência financeira, Nelson Moncalvo e Héctor Daniel Martini, presidente e secretário da Liga, recorreram a Fernando Mattos, ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca (MGAP) do Uruguai. Eles fizeram o orçamento para a reabilitação de mil bezerros. O ministro, que já conhecia as instalações da Liga, apoiou imediatamente o projeto.
O Fundo de Emergência Agrícola do MGAP alocou US$ 59 por cabeça de gado para mantê-los por cem dias. Ao final do período, em 30 de maio, espera-se que tenham ganho cerca de 70 kg cada. Produtores que enviam seus animais contribuem com mais US$ 25 por cabeça.
Em 23 de fevereiro, Carmen Portela transportou seus 60 bezerros ao longo de 70 km até o hotel. Vinte outras operações familiares fizeram o mesmo — todos criadores de gado com menos de 500 hectares, sem dívidas com o MGAP e cujos documentos estão todos em dia. Alguns enviaram cem animais. Outros apenas cinco.
Um total de 1.065 bezerros estão registrados no hotel, dos quais 862 entraram após a seca. Alguns animais não tiveram permissão para entrar, pois testaram positivo para a brucelose, doença contagiosa que afeta a fertilidade. Outros não precisaram ir: alguns proprietários viram suas pastagens se recuperarem antes das estadias planejadas. Isso porque 600 mm de chuva caíram nos dois meses após a seca prolongada.
Na chegada, os bezerros são ensinados a comer e usar os bebedouros, explica Moncalvo, recostado a uma cerca de madeira. Separados de suas mães quando ainda bebem apenas leite, com menos de dois meses de idade e pesando 60-70kg, eles têm que se adaptar a comer rações — uma mistura de milho, sorgo, cevada, trigo e suplementos minerais — e pilhas de alfafa.
O desmame de bezerros ajuda a restaurar a condição corporal da mãe e permite que a gravidez aconteça novamente, que é o que, graças a Deus, conseguimos
O desmame precoce, ou seja, a separação prematura de bezerros de suas mães, é uma prática utilizada em situações de emergência, como a seca no Uruguai. Ela pode acelerar a recuperação das vacas e incentivar a reprodução para manter as taxas de gestação em alta. Mas é visto como um último recurso, devido aos riscos sanitários e às complicações logísticas envolvidas.
Alejandro Saravia, do Plan Agropecuario, instituto de apoio agrícola uruguaio, contou ao jornal El Telégrafo como, em 1999, um grupo de técnicos, incluindo ele próprio, foi à Argentina observar a técnica de desmame e trazer diretrizes para o manejo de bezerros abaixo do peso.
“Naquela época, não havia muita experiência”, recorda ele. Naquele ano, seis “hotéis” de bezerros operavam no Uruguai, mas a técnica só foi recriada em Guichón sete anos depois.
“O desmame de bezerros ajuda a restaurar a condição corporal da mãe e permite que a gravidez aconteça novamente, que é o que, graças a Deus, conseguimos”, diz-nos Carmen com alívio. Ela descreve como “inútil” manter um bezerro com sua mãe por mais seis ou sete meses quando ele está vulnerável, já que o animal perde um ano de produtividade.
Outros proprietários — e seus animais — tiveram menos sorte nas instalações. Nos primeiros dias, “seis ou sete bezerros morreram porque chegaram desnutridos e não se adaptaram à ração”, diz Moncalvo.
Uma vez que os bezerros ganham peso, eles são transferidos para outro pasto onde recebem ração com menos fibra, uma dieta com 18% de proteína e capim natural.
As instalações da Liga exigem mais de 3.000 kg de ração por semana, que é doada por celeiros e clínicas veterinárias de todo o país. Quatro alunos de uma escola agrícola local estão encarregados de encher os comedouros duas vezes por dia. John Cáceres, Segundo Pereyra, Lorenzo Panizza e Joaquín Henderson fazem estágio no hotel para produzir suas teses sobre manejo de bezerros e desmame precoce.
Os estudantes carregam a alimentação em uma caminhonete atrelada a um trator e dirigem lentamente de pasto em pasto. Eles usam os coldres em suas correias para cortar o nylon dos sacos de 40 kg antes de despejá-los nos comedouros, dos quais uma dúzia de bezerros pode comer, cada um consumindo até 4 kg por dia.
Em pesquisas realizadas após as primeiras experiências no hotel há mais de 20 anos, nove em cada dez beneficiários disseram estar satisfeitos com o tratamento; 82% deixariam os animais por mais tempo, mas apenas 38% enviariam os bezerros de volta ao hotel.
Pecuária pujante no Uruguai
O ano de 2021 será lembrado por aqueles que trabalham na indústria de carnes uruguaia. Houve recordes históricos de abate para exportação (2.638.252 bovinos, 630 mil a mais que em 2020) e de preço por tonelada exportada (perto de US$ 5 mil). O mercado chinês foi a força motriz por trás destes aumentos, importando 61% da carne produzida pelo Uruguai.
500,000
O impacto das condições extremas na reprodução poderia reduzir o estoque de gado do Uruguai em até meio milhão de cabeças este ano. O país terá dificuldades para igualar seu abate histórico de 2,6 milhões em 2021.
O preço do gado também bate recordes. Os bezerros nunca haviam ultrapassado os US$3 por kg, mas o fizeram pela primeira vez no final de março. Eles valem 50% mais do que há um ano.
No entanto, qualquer chance de manter essas altas pode ser comprometida pelo estoque deste ano, que deverá ser reduzido entre 400 mil e 500 mil cabeças, se a reprodução não acelerar. Isto exige que o maior número possível de vacas esteja em condições de conceber e sustentar a gestação. Isso também significa que devem ser feitos esforços para garantir o desenvolvimento saudável de bezerros nascidos em condições de risco, reforçando a importância de instalações como a da Liga em Guichón.
Ao fim do dia da nossa visita, os estudantes batem papo enquanto dividem as últimas tarefas. Eles calculam de que lado vem o vento antes de colocar o último saco na calha, para que o pó da ração, seco e parecido com serragem, não entre em seus olhos.
Com base nos sinais que ela detecta do comportamento das abelhas e colmeias já no início do outono, Carmen diz que outra primavera seca deve ocorrer este ano. Embora um terceiro ano consecutivo de La Niña seja incomum, o meteorologista Mario Bidegain tuitou recentemente que os modelos estão indicando que isso pode sim acontecer.
“Se a Liga voltar a abrir o hotel dos bezerros no próximo ano, muitas pessoas que ainda não o tentaram, o farão. Tem sido muito bom para nós”, diz Carmen antes de voltar seu olhar para o pasto. Moncalvo ouve e dá um aceno que parece dizer “vamos ver”.