As economias da Rússia e Ucrânia ocupam, respectivamente, a 11ª e 55ª posições mundiais. Mas, para o fornecimento global de recursos essenciais, como energia, alimentos e minerais, esses países são ainda mais relevantes. Por isso, a ameaça ou real redução do fluxo de recursos provoca aumentos globais nos preços.
O mundo já enfrentava um aperto no custo de vida resultante da pandemia da Covid-19. Portanto, novos aumentos de preços ou restrições de fornecimento podem prejudicar seriamente a segurança alimentar e energética, o acesso equitativo a bens e serviços básicos e a estabilidade social em todo o mundo — o que ainda pode gerar riscos sistêmicos para economias e sociedades.
As implicações globais do conflito na Ucrânia estão apenas começando a ser plenamente exploradas, mas os impactos imediatos da crise nos mercados globais já estão bem documentados. Nos primeiros dias após a invasão da Rússia, os preços da energia dispararam, provocando aumentos nos preços dos fertilizantes — cuja produção é intensiva em energia. Isso, por sua vez, contribuiu para o aumento dos preços dos alimentos, já que os custos dos fertilizantes influenciam na produção.
Aumentos de preços ou restrições de fornecimento podem prejudicar seriamente a segurança alimentar e energética em todo o mundo
As interrupções no transporte marítimo em torno da Ucrânia — bem como globalmente — têm impedido o fluxo de mercadorias, o que aumentou ainda mais os preços, enquanto as sanções econômicas sobre os fluxos transfronteiriços de mercadorias e finanças estão pressionando cada vez mais os mercados. Mas isto é apenas o começo: esses impactos trarão um efeito cascata que se propagará para muito além de seu ponto de origem.
O risco traz uma combinação de perigo, exposição e vulnerabilidade. Na invasão da Ucrânia, o perigo é o conflito e seus impactos imediatos nas sociedades e economias da Ucrânia e da Rússia. A exposição está relacionada ao grau em que outros países podem ser afetados, dependendo do quanto estão integrados na economia global ou da natureza just in time — ou seja, que produz e armazena o mínimo possível — de suas cadeias de produção.
Os riscos em cascata — impactos de segunda e terceira ordem do perigo original e das respostas a esse perigo — podem ir além das fronteiras setoriais de energia e alimentos — e seu efeito composto provoca riscos sistêmicos amplos na sociedade.
Isso é essencial para compreender a natureza e a escala das ramificações globais sentidas a partir do conflito na Ucrânia. O trabalho recente no Reino Unido para avaliar os riscos em cascata resultantes de um clima em mudança — a Avaliação de Riscos da Mudança Climática do Reino Unido — traz uma teoria valiosa para pensar a área.
Ela examina as principais rotas desses riscos em sistemas globais. Quando aplicada à situação na Ucrânia, as rotas e suas interações indicam a escala da crise enfrentada por cidadãos, para muito além das fronteiras da Ucrânia e da Rússia.
Interrupções de fluxos de bens e energia
Em redes de comércio globalizadas, a interrupção local de cadeias de produção gera impactos internacionais amplos. O abastecimento de alimentos é uma preocupação imediata, uma vez que a maioria dos países depende de cadeias de produção enxutas e alguns garantem apenas alguns dias de alimentos em suas fronteiras.
A experiência de crises anteriores de alimentos indica que, mesmo pequenas interrupções no comércio, podem resultar em corridas ao mercado e a uma rápida inflação nos preços. Nesse conflito, a interrupção do comércio não será pequena porque Rússia e Ucrânia exportam cerca de um quarto de todo o trigo, mais de três quartos do óleo de girassol e um sexto do milho comercializado no mundo.
Os mercados de energia são outra preocupação, já que muitos países usam mais do que produzem e, portanto, dependem da importação de energia ou combustível para o uso doméstico. A Rússia produz cerca de 10% da energia comercial do mundo, com concentração de vendas na União Europeia e China.
Como no caso dos alimentos, a escassez de energia provoca disputas de mercados e inflação, enquanto políticas nacionais fracas visando à própria segurança pressionam ainda mais o fornecimento global e os preços. E com a natureza interligada dos mercados de energia, a escassez de um combustível — como o gás, neste caso — afeta os preços globais de outras fontes energéticas.
Impacto do fluxo de dinheiro e pessoas
Como a última década ilustra bem, os fluxos transfronteiriços de pessoas impactam as sociedades que os absorvem — por exemplo, aumentando o nacionalismo — e aumentam os custos de recursos essenciais. Dado que muitas pessoas estão fugindo do conflito, outros países podem ter dificuldades financeiras por conta da crise do custo de vida e dos esforços para reforçar a infraestrutura de segurança nacional.
Os fluxos financeiros são cruciais para o funcionamento das economias globais. Como cidadãos russos podem estar prestes a descobrir, restringir esses fluxos tem sério impacto sobre as famílias. Além do caso da Rússia, a saída de dinheiro de grandes centros financeiros, como de Londres, para atender a pedidos de seguros ou de investimento na infraestrutura pós-conflito, pode ter graves impactos econômicos.
Impacto sobre governança e saúde
Os aumentos globais dos preços de energia e alimentos levarão muitos países a lutar contra o aumento da insegurança alimentar e energética, assim como da desigualdade. Essas condições criam questões que vão além das pressões migratórias e de suas políticas, incluindo o aumento da instabilidade social.
Isso pode desestabilizar governos, o que tem consequências para a estabilidade de toda uma região, por exemplo com a interrupção das cadeias de produção, a necessidade de empregar forças militares ou de ajuda internacional — tudo isso com consequências globais que atingem muito além dos países em questão.
As pessoas podem sofrer impactos de saúde mental da invasão da Ucrânia, seja pelo trauma de ser forçado a sair de casa para escapar do conflito, seja pela ansiedade do bem-estar e segurança de familiares e amigos envolvidos, seja por uma ansiedade mais geral decorrente da percepção de viver em um mundo instável.
24 de fevereiro de 2022
Foi quando começou a invasão da Rússia na Ucrânia. Segundo estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), mais de 10 milhões de ucranianos já tiveram de deixar suas casas desde o início do conflito.
Então, o que pode ser feito para mitigar os potenciais riscos sistêmicos e em cascata?
Uma resposta é concentrar-se na construção de economias mais resilientes, e outra é não descartar as oportunidades da integração global do comércio.
A resposta não é simplesmente tentar construir uma autossuficiência, mas sim ter reservas para quando o just-in-time falhar. Isto poderia envolver a compra e o armazenamento de alimentos quando há maior disponibilidade, e sua liberação no sistema quando há escassez, ajudando a estabilizar os preços. A diversidade nas cadeias de produção e redes de distribuição também é desejável, assim como maior flexibilidade e possibilidade de substituições para lidar com as carências de produtos.
Em nível social, a resiliência também aumenta quando as vulnerabilidades são enfrentadas, por exemplo com redes de segurança social. É provável que a segurança alimentar e energética aumentem em função dessas crises, tanto no mundo rico quanto pobre. Por isso, a comunidade internacional deve ter esforços urgentes para enfrentar as carências relacionadas a conflitos, particularmente nos alimentos, para garantir no futuro sua disponibilidade em países de baixa renda dependentes de importações.
Esse artigo é adaptado da versão original publicada pela Chatham House e é reproduzido aqui com permissão dos autores.