A carne bovina é um dos principais produtos de exportação para muitos países da América Latina. Também se tornou uma grande dor de cabeça para os formuladores de políticas públicas, que estão cada vez mais sob a pressão de consumidores e investidores preocupados com os impactos ambientais e sociais das fazendas de gado.
Uma solução, no entanto, pode estar a caminho.
Na última década, pecuaristas, organizações ambientalistas e governos desenvolveram um conjunto de iniciativas destinadas a tornar a produção de carne bovina mais sustentável. Seu trabalho oferece um caminho para um número crescente de produtores que procuram explorar a demanda por produtos mais verdes.
A pecuária é responsável por 46% do PIB agrícola da América Latina e cinco países — Brasil, Uruguai, Paraguai, México e Argentina — são responsáveis por 75% da produção. O setor floresceu nas últimas décadas graças ao aumento da demanda da crescente classe média mundial, cujo apreço pela carne bovina deve crescer por mais alguns anos.
75%
da produção da pecuária da América Latina está concentrada em cinco países
A expansão, no entanto, se deu à custa do desmatamento ilegal, das crescentes emissões de gases de efeito estufa e da poluição da água, além de, em certos casos, violações de direitos trabalhistas por parte de frigoríficos e fazendas. As regiões mais afetadas são a floresta tropical amazônica brasileira e as partes árida e subtropical do bioma Chaco, na Argentina, Paraguai e Bolívia.
A América Latina e a mesa redonda da carne bovina sustentável
A América Latina faz parte da mesa redonda global pela pecuária sustentável (GRSB, na sigla em inglês), uma iniciativa criada em 2011 com o objetivo de melhorar a cadeia de valor global da carne bovina. A organização, que tem presença na Argentina, Brasil, Paraguai, Colômbia e México, trabalha com pecuaristas, supermercados, frigoríficos e outros atores.
A GRSB define a carne bovina sustentável como um produto socialmente responsável, ambientalmente correto e economicamente viável que prioriza o planeta, as pessoas, os animais e o progresso. A cadeia de valor deve administrar os recursos naturais de forma responsável, respeitar os animais e garantir a segurança e a qualidade dos produtos de carne bovina.
O Brasil foi um dos primeiros países da região a tentar construir um caminho para a carne bovina sustentável, ao criar uma mesa redonda para discutir o tema em 2009, o Grupo de Trabalho Pecuária Sustentável. Especialistas do setor apontam frequentemente o relatório “A Farra do Boi na Amazônia”, publicado em 2009 pelo Greenpeace, como um momento decisivo para demonstrar a conexão entre as cadeias de abastecimento de carne bovina e o desmatamento.
O relatório levou grandes frigoríficos a prometerem total rastreabilidade, enquanto uma certificadora, a Rainforest Alliance, iniciou um selo para a carne sustentável. No entanto, o caminho desde então tem sido marcado por muitas promessas e poucas entregas.
Hoje, apenas as maiores empresas rastreiam fornecedores diretos, enquanto o resto da cadeia de abastecimento permanece obscura. Algumas empresas repetiram as promessas de 2009 no ano passado, alegando que agora tinham a tecnologia para rastrear toda a sua cadeia de abastecimento. O selo da Rainforest Alliance nunca foi à frente.
“É um sistema que nunca ganhou tração”, explicou Lisandro Inakake de Souza, que coordena o programa de clima e agricultura no Imaflora, uma ONG ambiental no Brasil. “Não podíamos colocar as fazendas nos padrões de certificação, porque o mercado não está pedindo por isso”.
Mas, anos de trabalho têm ajudado os produtores brasileiros a desmistificar o que realmente significa carne bovina sustentável. Em 2016, a mesa redonda do Brasil lançou uma plataforma digital de indicadores de carne bovina sustentável para os produtores. As normas estão relacionadas à eficiência, rastreadores de emissões de carbono, respeito aos direitos dos trabalhadores e manutenção de reservas legais.
Apesar disso, muitos fornecedores de carne bovina e gado tropeçam no critério mais fundamental: seguir a lei. O desmatamento ilegal e as questões de posse de terra ainda são obstáculos para um grande número de fazendeiros brasileiros. A lei brasileira exige que os produtores preservem entre 20% e 80% de suas fazendas, dependendo da região e do bioma.
Ainda assim, os crimes ambientais e a apropriação de terras são comuns, e também há confusão sobre os caminhos para a reabilitação de fazendas embargadas e a obtenção de títulos de terra — mesmo quando as reivindicações são legítimas.
“Na realidade brasileira, sabemos como pode ser difícil, e como às vezes há jogo sujo, quando as pessoas ocupam terras públicas”, disse Souza.
As empresas, por outro lado, buscam se adaptar, visto que os investidores pressionam por práticas mais sustentáveis. Jordan Timo, fundador da empresa de rastreabilidade Niceplanet Geotecnologia, ajuda os gigantes da carne Minerva e Frigol, entre outros, a rastrear suas cadeias de fornecimento e publicar informações sobre fornecedores diretos on-line. Assim, os consumidores podem acessar os detalhes de origem da carne ao digitar um código impresso nas embalagens de carne bovina.
“Nós temos a tecnologia para expandir”, diz ele. “O importante é que a falta de conhecimento sobre o que pode ser feito é uma ferramenta usada por quem não quer agir”.
Há um número crescente de produtores e líderes da indústria que pressionam por uma indústria de carne bovina sustentável. Mauro Lúcio Costa, criador de gado no estado do Pará, pode ser um dos mais eloquentes.
Nos últimos três anos, Costa fez parte de um projeto piloto da Niceplanet Geotecnologia para rastrear toda a sua cadeia de fornecimento por meio do seu celular. O sistema permite que ele ofereça carne bovina quase totalmente rastreável – por mais que ele admita que, às vezes, nem mesmo ele conseguia encontrar bezerros de fazendas sustentáveis porque a demanda era muito alta.
Costa pode verificar, por meio de seu celular, se um fornecedor tem uma reserva legal de floresta no perímetro da fazenda e se já há registros de trabalho análogo à escravidão em sua propriedade. O sonho de Costa é de vender carne bovina com um selo de biodiversidade — sinal que mostra aos consumidores que, ao comprar sua carne, eles estão na verdade ajudando a proteger uma parte da floresta amazônica que fica dentro de sua fazenda. Seu maior obstáculo é persuadir outros produtores a se unirem a ele, para que juntos possam garantir um abastecimento constante.
“Se eu pudesse fazer sozinho, você estaria olhando para um homem rico, porque eu teria um produto que ninguém mais tem”, disse ele.
Mas por ora, os consumidores não estão exigindo este tipo de produto. De acordo com Souza, do Imaflora, a maioria está mais preocupada com questões como o bem-estar animal ou se a embalagem é biodegradável. Ainda assim, Costa acredita que se um número suficiente de agricultores se reunir, será possível cultivar uma demanda de mercado.
“Steve Jobs não esperou que ninguém quisesse um iPhone, ele inventou e depois vendeu”, disse ele.
Correndo atrás do prejuízo
No Paraguai, a GRSB também criou um conjunto de indicadores para medir se a cadeia de valor da carne bovina pode ser sustentável. Os resultados preliminares mostram que é esse o caso, segundo Hugo Sánchez, o chefe da filial local da GRSB. Isto porque as vacas do Paraguai são alimentadas, sobretudo, com capim e sem hormônios.
“A maior parte de nossa produção é sustentável, mas ainda temos que provar isso com uma certificação adequada. O Paraguai carece de informações sobre seu setor de carne bovina e nós queremos mudar isso”, disse Sánchez. “Fazer isso nos permitiria vender nossa carne bovina a mercados premium e a um preço mais alto. Mas é um longo caminho pela frente, não somos vistos agora como um país produtor de carne bovina“.
O mundo está mudando. Ou nós corremos atrás ou seremos deixados para trás
Ainda assim, Sánchez reconhece a imagem negativa dos produtores por causa do desmatamento na região do Chaco. O desmatamento na área é legal, mas os produtores têm que manter 45% das árvores de pé em suas terras. Mais de 2,9 milhões de hectares de floresta do Chaco foram desmatados entre 2010 e 2018, de acordo com a ONG Guyra Paraguay.
Na Argentina, a filial local da GRSB está em processo de implementar um conjunto semelhante dos indicadores utilizados no Paraguai. A mesa redonda argentina que nem toda a carne produzida no país é sustentável, mas espera que os indicadores ajudem a dar um norte para o futuro. Sustentabilidade significa cumprir todas as leis nacionais, ao mesmo tempo em que se busca melhorar ainda mais, argumentam eles.
“O mundo está mudando. Ou nós corremos atrás ou seremos deixados para trás”, analisa Federico Baiocchi, chefe da filial argentina da GRSB. “Os consumidores estão pressionando o setor de carne bovina a ser mais sustentável”. E há uma longa lista de áreas em que poderíamos melhorar, desde a rastreabilidade até a emissão de gases de efeito estufa. Estamos no fundo do poço, portanto, só podemos melhorar”.
As vacas não pastam mais livremente nos vastos pampas da Argentina e, em vez disso, são conduzidas a confinamentos para serem engordadas. O uso de hormônios é permitido,e não há rastreabilidade eletrônica. O desmatamento continua sendo um grande problema. No ano passado, 114.716 hectares de florestas da Argentina foram desmatados, de acordo com o Greenpeace.
Em todo o continente, a maioria dos produtores vêem o Uruguai como um exemplo. Os altos padrões do país permitiram que Montevidéu vendesse carne bovina a um preço mais alto. A maioria das vacas vagueiam ao ar livre, se alimentam de capim e são rastreadas eletronicamente.
Timo, da Niceplanet Geotecnologia, está confiante de que o modelo uruguaio de rastrear cada vaca é o caminho para o Brasil também — e que isso também poderia aumentar em muito os lucros dos produtores. “Sempre pensamos que os produtores uruguaios podiam cobrar mais porque tinham mais qualidade na carne”, disse ele. “Mas não é isso. É a rastreabilidade”.
Iniciativas transregionais
A mesa redonda de discussão sobre a carne bovina não é a única iniciativa da região. Algumas fazendas já produzem carne bovina com uma certificação sustentável, como as pertencentes à Grasslands Alliance, uma iniciativa liderada pela ONG BirdLife International que opera na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Pede-se aos produtores que mantenham pelo menos 50% de suas pastagens intocadas, sejam responsáveis pelo bem-estar dos animais durante sua vida útil e garantam condições de saúde e segurança para o consumidor. Em troca, eles vendem sua carne bovina com o selo da iniciativa.
A Grasslands Alliance já abrangia 621 mil hectares e 444 estabelecimentos rurais onde opera já em 2020.
“Temos todos os tipos de produtores que integram a iniciativa. Alguns se unem por causa da possibilidade de agregar valor à sua produção e aumentar seus lucros. Mas outros se sentem orgulhosos de ter um produto diferente dos demais”, disse Gabriela Gabarain, coordenadora da Grasslands Alliance na Argentina.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) trabalha com o governo nacional do Paraguai na iniciativa do Chaco Verde por cinco anos. Juntos, eles treinam mais de 3.500 pequenos e grandes produtores para melhorar suas práticas”.
“Estamos tentando encontrar o caminho para que os produtores sejam mais eficientes e sustentáveis para que sua carne bovina possa ter acesso a mercados premium”, disse o coordenador do projeto, Rafael Gadea. “A produção é, em sua maioria, sustentável, mas ainda precisa provar isso por meio de uma certificação real”.