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Opinião: ‘Passaporte verde’ visa promover pecuária sustentável do Brasil na China

Rastreabilidade internacional de carne bovina é desafio complexo, mas iniciativas bilaterais estão avançando
<p>Criação de gado em Figueirópolis d&#8217;Oeste, em Mato Grosso. A pecuária é a principal responsável pelo desmatamento na Amazônia brasileira (Imagem © Ricardo Funari / Greenpeace)</p>

Criação de gado em Figueirópolis d’Oeste, em Mato Grosso. A pecuária é a principal responsável pelo desmatamento na Amazônia brasileira (Imagem © Ricardo Funari / Greenpeace)

No ano passado, o Instituto Ambiental Global (GEI, na sigla em inglês), organização social chinesa da qual faço parte, lançou diversas parcerias com órgãos públicos brasileiros para apoiar iniciativas transfronteiriças que estimulem a boa governança ambiental e a sustentabilidade de cadeias produtivas. 

O projeto foi um marco diplomático nas relações entre o Brasil e a China para o comércio sustentável — e abriu um novo capítulo para uma agricultura comprometida com a conservação da biodiversidade e o combate à crise climática.

Em março de 2022, o GEI assinou um memorando de entendimento (MoU, na sigla em inglês) para impulsionar iniciativas de sustentabilidade em Mato Grosso, principal produtor de carne bovina e soja do país. Também assinou um acordo com o Consórcio da Amazônia Legal, que visa promover o desenvolvimento sustentável na região.

Agora, esses documentos começaram a se transformar em ações concretas. Uma delas é o “passaporte verde” para a carne bovina: o projeto-piloto de rastreabilidade visa fornecer informações detalhadas sobre a origem de produtos bovinos brasileiros por meio de códigos de barras impressos nos pacotes alimentícios na China. 

O GEI conta com a colaboração do governo de Mato Grosso e do Instituto Mato-Grossense da Carne (Imac). Após a realização de estudos técnicos, trabalhos de campo, análises de políticas públicas e o projeto-piloto, foram definidos quatro objetivos para a parceria.

Em primeiro lugar, a iniciativa busca identificar as responsabilidades socioambientais das partes envolvidas; em segundo, quer instruir órgãos brasileiros para o fornecimento de carne bovina sustentável ao mercado chinês; em terceiro, vai analisar a viabilidade de distribuição desses produtos na China, bem como os possíveis mecanismos econômicos para promovê-los; e, por fim, vai avaliar estratégias de rastreabilidade em nível administrativo, regulatório e institucional.

A rastreabilidade beneficia todas as partes da cadeia produtiva, mas também é um processo que exige transparência, a construção de confiança e práticas sustentáveis. Se bem feita, a rastreabilidade pode agregar valor aos produtos e elevar seu preço no mercado. Além disso, a mudança pode ajudar a promover a sustentabilidade de forma mais ampla em todo o setor.

No entanto, o desenvolvimento de sistemas de rastreabilidade transfronteiriços capazes de enfrentar o desmatamento provocado pela pecuária ainda é um enorme desafio. Primeiro, é tecnicamente complicado rastrear a movimentação de animais no Brasil: a cadeia de abastecimento é uma complexa rede na qual o gado é comercializado entre diferentes fazendas até chegar ao consumidor final. A categorização e padronização de indicadores, modelos e ferramentas de rastreabilidade também demandam grande esforço. E, em última análise, a criação de sistemas confiáveis e equilibrados deve favorecer os negócios de pequenas e médias empresas tanto na China quanto no Brasil.

A parceria proposta pela GEI abre um caminho para o desenvolvimento de políticas ambientais sólidas no estado de Mato Grosso e impulsiona um nicho de mercado para produtos bovinos rastreáveis e de alta qualidade na China.

Passaporte verde: mais rastreabilidade

O “passaporte verde” de Mato Grosso foi lançado em 2022 para produtos de carne bovina. Mas, além da necessidade de planejar o funcionamento desse sistema, um dos principais desafios é monitorar e popularizar a aplicação da rastreabilidade em toda a pecuária do estado.

Inicialmente, a iniciativa busca supervisionar e capacitar o setor, auxiliando empresas na implementação de sistemas de rastreabilidade, permitindo que a carne bovina produzida conforme os melhores padrões socioambientais obtenha o selo do passaporte verde até 2026. 

Em segundo lugar, o objetivo é classificar as carnes e rotular aquelas consideradas de qualidade “superior”. Isso seria, ao mesmo tempo, uma forma de cumprir as responsabilidades estaduais de governança ambiental e uma forma de inspecionar a qualidade dos alimentos.

carne bovina em friogrífico da Marfrig no Mato Grosso
Novo passaporte verde visa aumentar rastreabilidade em toda a cadeia bovina em Mato Grosso. Se produtores e frigoríficos não cumprirem os novos padrões até 2026, poderão sofrer restrições (Imagem: Alamy)

Trata-se de uma iniciativa ambiciosa e potencialmente revolucionária, pois o governo estadual terá como alvo tanto os pecuaristas diretos quanto os indiretos (aqueles que vendem sua produção a intermediários) — e, no futuro, isso pode se tornar um programa estadual que inclua todos os produtores. 

A partir de 2026, se as atividades de produtores e abatedouros não cumprirem com os padrões do passaporte verde — por terem ligação com o desmatamento, por exemplo —, os produtores vão sofrer restrições em futuros negócios. As compras de gado serão limitadas a 20% em relação à última compra (ou seja, dois bois em vez de dez) até que sejam atingidos todos os critérios socioambientais do programa. Assim, espera-se que a verificação dos registros desse comércio possa melhorar as atividades dos fornecedores indiretos.

O protocolo do passaporte verde está sendo desenvolvido por dois signatários do MoU — o governo de Mato Grosso e o Imac — junto ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Desde então, outras entidades públicas aderiram à força-tarefa, incluindo o Ministério Público Federal em Mato Grosso e as secretarias estaduais de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Econômico. 

Também participam entidades do setor agropecuário, como o Sindicato das Indústrias de Frigoríficos de Mato Grosso (Sindifrigo-MT) e a Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), além de grandes multinacionais como JBS e Marfrig.

O protocolo é construído sob uma base regulatória sólida: o projeto incorpora, por exemplo, o Código Florestal, que exige a proteção da chamada reserva legal por proprietários de terras na Amazônia e outros biomas; o protocolo Boi na Linha, que padroniza o monitoramento da origem dos animais e a auditoria em vários frigoríficos; o Programa de Reinserção e Monitoramento do Imac, plataforma desenvolvida para monitorar a recuperação ambiental de áreas desmatadas.

Essas regulamentações ajudam a unificar as iniciativas federais e regionais, promovendo sinergias positivas de forma estratégica e econômica. O protocolo contempla os planos agropecuários do Brasil e leva em conta a situação ambiental dos ativos detidos por fazendeiros — por exemplo, analisando seus avanços na recuperação das pastagens degradadas e/ou áreas desmatadas irregularmente, o que, ao mesmo tempo, aumenta sua produtividade.

O sistema de monitoramento Boi na Linha também deve ajudar a disseminar — e quiçá normalizar — o rastreamento do desmatamento ilegal entre produtores. Esse pacote de políticas públicas também representa um custo menor para os produtores de gado que queiram se adaptar ao novo modelo. Ele impulsiona programas de “verificação para a qualificação” para além de Mato Grosso, em escala nacional e internacional, permitindo um reposicionamento da carne bovina brasileira no mercado.

O protocolo também é uma iniciativa que chega em um momento oportuno, já que os produtores devem se adaptar a novas regulamentações, como a lei de desmatamento da União Europeia, que vai barrar a entrada de commodities cultivadas em terras desmatadas. 

Além do passaporte verde, o governo de Mato Grosso também está desenvolvendo dispositivos legais para implementar a verificação dos padrões de sustentabilidade: entre eles, mecanismos financeiros, como incentivos fiscais, e novas plataformas de monitoramento e análise de dados para identificar produtores responsáveis, a fim de aumentar sua credibilidade e visibilidade.

Qual será o papel da China?

Para apoiar os esforços de sustentabilidade, o GEI participou de uma viagem de campo por cinco cidades chinesas em maio deste ano, excursão organizada pelo governo estadual de Mato Grosso. A organização atuou como interlocutora e guia dos representantes brasileiros do setor, ajudando a mapear possíveis caminhos comerciais para que os produtos com selo de rastreabilidade de Mato Grosso cheguem aos consumidores na China.

O trabalho de campo gerou resultados concretos, como a assinatura de MoUs pelo GEI e Imac com associações do setor pecuarista das cidades de Tianjin e Chongqing. Esses memorandos visam promover o compartilhamento de dados e um comércio estável entre as diferentes partes envolvidas. O porto de Tianjin, no nordeste do país, movimentou mais de um terço dos produtos importados pela China em 2022; e Chongqing, na região central, tem uma enorme demanda por carne bovina congelada para a preparação de seu prato mais famoso, o hotpot.

Produção de couro bovino em Cáceres, Mato Grosso
Produção de couro bovino em Cáceres, Mato Grosso. A cooperação entre o Brasil e a China cria uma oportunidade para reverter os impactos nocivos do setor de carne bovina (Imagem: Alamy)

A viagem facilitou o envolvimento com órgãos de certificação, financeiros e alfandegários em Beijing e promoveu canais de diálogo entre governos e instituições. Também foi analisada a integração de mercados mais sustentáveis, considerando questões como incentivos fiscais e acordos comerciais, entre outros.

Essas conversas mostram que os dois países estão no início de um consenso sobre agricultura sustentável. Em termos técnicos, não é fácil traduzir as iniciativas de certificação brasileiras para a China, pois ambas aplicam sistemas próprios para avaliar produtos sustentáveis. Não há uma integração rápida e fácil de mercados sustentáveis nos dois países e nem de suas respectivas boas práticas agrícolas.

A escassa diplomacia e cooperação bilateral em anos recentes fizeram com que a atenção da China para a agricultura sustentável do Brasil se concentrasse apenas na questão do desmatamento. As políticas públicas e a experiência prática brasileira — seja na integração de sistemas florestais e pecuários, seja na intensificação agrícola que transformou o país de importador de alimentos a um dos responsáveis por alimentar o planeta — são pouco conhecidas na China. Em relação aos interesses conjuntos dos dois países, como a eliminação da pobreza, a criação de meios de subsistência alternativos e a digitalização, as conversas ainda são muito incipientes.

A péssima fama ambiental do setor agrícola brasileiro tem se espalhado pela China — e isso não ajuda na promoção de iniciativas brasileiras, como a do passaporte verde. A comunicação e cooperação dos países é urgente para reverter os impactos prejudiciais do setor de carne bovina no Brasil e reposicionar sua imagem. 

Para o Mato Grosso, a prioridade deve ser manter uma relação proativa com a China e compartilhar os pontos fortes de cada um. Esse engajamento poderia preencher lacunas e falhas no relacionamento Brasil-China, superando desafios no acesso a informações, construindo diálogos entre os dois países e ajudando a aumentar a presença de organizações brasileiras na China.