As mudanças climáticas aumentaram a incidência de eventos extremos em todo o mundo. Não é mais possível ignorar as secas, inundações e ondas de calor em lugares tão díspares como Paquistão, Quênia e Chile.
Este mês, o clima extremo atingiu o Brasil, com enchentes devastadoras no estado mais austral do país, o Rio Grande do Sul. Imagens impactantes mostram o bairro Centro Histórico, de Porto Alegre, totalmente submerso. Alguns moradores foram resgatados com pequenas embarcações e jet skis — alguns tiveram que subir nos telhados de suas casas enquanto viam seus pertences serem arrastados pela correnteza.
Houve danos imensos na infraestrutura das cidades, incluindo em pontes, viadutos, estradas e no maior aeroporto internacional da região. A estimativa inicial de reconstrução do governo estadual é da ordem de R$ 19 bilhões, embora esse valor tenha sido calculado a partir dos eventos climáticos de 2023, que tiveram uma escala muito menor. A dimensão completa das perdas só será possível quando a água baixar totalmente.
No auge de uma crise como essa, todos os recursos devem ser concentrados no resgate e apoio às pessoas afetadas pela tragédia. Mas, à medida que as águas escoam lentamente, fica evidente que a reconstrução do estado exigirá um esforço ainda maior.
Diante da destruição, o governador do estado, Eduardo Leite, pediu um Plano Marshall para o Rio Grande do Sul, referindo-se à mobilização massiva para reconstruir a Europa após a Segunda Guerra Mundial.
A evocação ao plano serve como retórica útil para uma reconstrução coletiva, mas será necessário algo muito diferente em comparação a 1948. A reconstrução após um evento climático extremo exige uma resposta abrangente e multifacetada, com foco nas necessidades das pessoas afetadas.
Desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou seu mandato em 2023, o Brasil tem reafirmado seu papel na transição climática em eventos internacionais. Embora esse discurso se repita internamente, as ações climáticas do governo têm sido inconsistentes.
Em meio a um desastre sem precedentes no Brasil e a emergências climáticas ao redor do mundo, as enchentes no Rio Grande do Sul exigem ações governamentais decisivas. Os custos humanos devem ser mitigados imediatamente e, em seguida, o estado deve ser reconstruído de forma resiliente ao clima. Aqui, propomos um plano para essa reconstrução.
1. Superar políticas de austeridade
Afastar-se das políticas de austeridade fiscal é a primeira medida que um país em desenvolvimento deve tomar em uma emergência climática. Houve uma tendência pós-pandemia de países adotarem tais medidas, apesar das imensas necessidades de investimento.
O governo Lula tem se esforçado para mostrar responsabilidade orçamentária, aprovando um novo arcabouço fiscal. A mudança fixou uma nova meta de superávit orçamentário primário, que limita o aumento de gastos, vinculando-os à receita fiscal.
Originalmente, o governo federal prometeu zerar o déficit em 2024 e atingir superávit nos anos seguintes — isso enquanto relançava programas sociais, aumentava salários e mantinha os investimentos em alta. Até o momento, o país tem se esforçado para cumprir essas metas ambiciosas.
A catástrofe atual pode não mudar esses compromissos, mas certamente exigirá uma governança ousada e criativa. A reconstrução exigirá fundos orçamentários adicionais, removendo esses custos das metas fiscais anuais.
O arcabouço fiscal, por exemplo, já inclui desastres na sua lista de isenções. Porém, tanto o governo quanto o Congresso devem chegar a um acordo de longo prazo sobre a interpretação dessa cláusula para salvaguardar os investimentos necessários em infraestrutura.
Muitos países em desenvolvimento enfrentam um endividamento que impede reformas ousadas, mas a posição atual do Brasil permite fazê-lo de forma responsável.
Com apenas seis anos para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 da ONU e as metas do Brasil no âmbito do Acordo de Paris, agora não é o momento para o país apostar em austeridade.
2. Mobilizar financiamento acessível
Em segundo lugar, o Brasil precisa de financiamento de bancos de desenvolvimento nacionais e multilaterais com condições de pagamento acessíveis. Mobilizar recursos por meio de linhas de crédito existentes e aproveitar as vantagens do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é um bom começo, mas será preciso mais.
Instituições multilaterais poderiam apoiar esses esforços, e o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) se apresenta como um parceiro interessante nessa frente. Fundado em 2015 pelos membros do bloco dos Brics, o NDB ainda busca se firmar no cenário internacional, com um capital disponível. A instituição é comandada pela ex-presidente brasileira Dilma Rousseff, que iniciou sua carreira política no Rio Grande do Sul, e já prometeu US$ 1,1 bilhão (R$ 5,7 bilhões) para a reconstrução do estado — recursos oriundos do próprio banco e de outros aliados locais, como o BNDES e o Banco do Brasil. O envio desse apoio emergencial cumpre com a própria agenda verde do NDB.
Outras instituições, como o Banco de Desenvolvimento da América Latina e o Caribe (CAF), com seu portfólio de projetos de infraestrutura e resiliência, serão cruciais para apoiar o Rio Grande do Sul. No cenário atual de altas taxas de juros, países enfrentam altos custos de empréstimos no setor privado, reduzindo sua capacidade quitar as dívidas. Os bancos de desenvolvimento nacionais e multilaterais têm, portanto, um papel fundamental em garantir que os países em desenvolvimento possam se recuperar de maneira resiliente, sem comprometer sua capacidade pagar dívidas.
Já há iniciativas nesse sentido para atender à emergência gaúcha. A deputada federal Fernanda Melchionna propôs um projeto de lei para conceder um extenso alívio da dívida do estado junto à União.
No dia 17 de maio, o presidente Lula sancionou uma lei que suspende os pagamentos da dívida gaúcha por 36 meses. O objetivo é permitir que os recursos sejam canalizados em mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Além disso, outros ministérios coordenam um plano para auxiliar o estado. O Ministério da Fazenda já se comprometeu com um repasse inicial de R$ 50 bilhões para a reconstrução.
3. Planejamento para o futuro
Em terceiro lugar, é fundamental que o governo brasileiro adote uma visão de longo prazo e aposte na resiliência contra futuros desastres. A mais recente lei de licitações públicas permite que os governos federal e estaduais adquiram bens e serviços com base em aspectos técnicos, e não apenas no custo. Como declarou recentemente a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, os investimentos em cidades vulneráveis ao clima devem ter como objetivo mitigar impactos futuros, e qualquer reconstrução deve fazer o mesmo.
Essas metas foram incorporadas superficialmente ao Programa de Aceleração do Novo Crescimento (Novo PAC), que menciona o financiamento de “cidades resilientes e sustentáveis”.
4. Priorizar a reconstrução verde
Os países que se reconstroem de desastres climáticos devem priorizar, na medida do possível, as indústrias verdes e as cadeias de produção locais. Isso promove mais resiliência às mudanças climáticas diante de interrupções de cadeias globais.
O Brasil se uniu aos esforços globais de industrialização verde com sua nova política industrial, visando por exemplo tornar sua produção de aço e cimento mais sustentável. Nesse sentido, ajustes nas normas de compras públicas para priorizar fornecedores “verdes” poderiam incentivar a descarbonização. Essas iniciativas podem alinhar o uso de recursos naturais, metas de reindustrialização e políticas de sustentabilidade.
5. Construir um legado institucional
Por fim, responder adequadamente às emergências climáticas é, acima de tudo, um desafio político. Vale lembrar que o fundo do Plano Marshall para reconstruir a Europa foi acompanhado por outros esforços institucionais — por exemplo, a criação do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento. Da mesma forma, a reconstrução do Rio Grande do Sul requer uma nova estrutura institucional que possa servir de exemplo para mitigar os imensos custos das mudanças climáticas.
O governo federal também deve capacitar a recém-criada Secretaria Extraordinária para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul: a pasta precisa coordenar ações junto a órgãos locais e a outros ministérios. Isso evitará o isolacionismo burocrático.
Além disso, a criação de um conselho para a resiliência climática — composto por representantes da sociedade civil, governos locais, empresas e bancos multilaterais — poderia acompanhar o trabalho da secretaria. Esse conselho poderia se concentrar inicialmente no Rio Grande do Sul e, em seguida, orientar futuras respostas a emergências — um modelo para administrações nacionais e globais.
Esperamos que a resposta a esse desastre climático possa moldar positivamente o futuro não apenas de Porto Alegre, mas de outras cidades e instituições nas próximas décadas. Embora as circunstâncias sejam terríveis, não se pode duvidar da capacidade de recuperação de Porto Alegre.
A capital do estado é famosa por métodos inovadores de governança: em 1989 a cidade ousou inventar o orçamento participativo. A iniciativa tornou-se uma referência internacional para um futuro mais democrático no auge do neoliberalismo, quando as alternativas políticas eram escassas. Hoje, Porto Alegre pode mostrar mais uma vez que outro mundo é possível.