Energia

Entenda o longo histórico de desavenças do acordo de Itaipu

Após 50 anos, novo acordo sobre funcionamento da hidrelétrica binacional foi concluído. Porém, atritos e dúvidas continuam
<p>Hidrelétrica de Itaipu, terceira maior do mundo, é compartilhada por Brasil e Paraguai. A renegociação do tratado bilateral sobre a usina tem sido marcada por tensões e desavenças sobre as tarifas de energia (Imagem: John Holmes / Alamy)</p>

Hidrelétrica de Itaipu, terceira maior do mundo, é compartilhada por Brasil e Paraguai. A renegociação do tratado bilateral sobre a usina tem sido marcada por tensões e desavenças sobre as tarifas de energia (Imagem: John Holmes / Alamy)

Em 2023, quando Santiago Peña assumiu a presidência do Paraguai e Luiz Inácio Lula da Silva a do Brasil, o acordo bilateral que criou a hidrelétrica binacional de Itaipu, terceira maior do mundo, completou 50 anos. 

Desde então, ambos os países vêm travando a renegociação de seus termos, que chegou a uma conclusão nesta terça-feira, dia 7. Para firmar o compromisso, o ministro brasileiro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, viajou a Assunção. 

O novo acordo reajustou a tarifa de energia da usina em 15,4%, passando-a para US$ 19,28 por quilowatt (kW) até 2026. Ele atendeu parcialmente ao pleito paraguaio, que buscava valores entre US$ 20,75 e US$ 22,23 por kW, enquanto o Brasil queria manter a tarifa mais próxima dos atuais US$ 16,70 por kW.

O governo brasileiro diz que a medida garante a manutenção da tarifa, sem reajuste ao consumidor brasileiro. Mas a maior vitória é principalmente do Paraguai, que receberá mais US$ 600 milhões de Itaipu até 2026 e cuja negociação chegou em momento oportuno. 

“Pode ser uma virada de chave à sua transição energética”, diz Guillermo Achucarro, pesquisador paraguaio de políticas climáticas.

Um ‘sonho’ após o conflito

Antes do acordo anunciado, o presidente paraguaio falou da criação de Itaipu como o resultado da iniciativa de brasileiros e paraguaios que “ousaram sonhar”. Mas, na prática, a história da barragem tem sido muito mais conturbada. 

O historiador Jacob Blanc explica que o Tratado de Itaipu, de 1973, surgiu de uma disputa diplomática em torno da fronteira Brasil-Paraguai. Ela havia sido demarcada no final da Guerra do Paraguai (1865-1870), quando os dois países estavam em lados opostos — e as tropas brasileiras contribuíram para a chacina da população paraguaia à época. 

Em junho de 1965, a ditadura militar brasileira ocupou a área, onde havia sido identificado um potencial hidrelétrico uma década antes. Quatro meses depois, oficiais brasileiros detiveram uma delegação paraguaia que visitava o local junto a aliados do então presidente do Paraguai, o ditador Alfredo Stroessner.

Isso desencadeou um conflito diplomático na região, com direito a ameaças de guerra e mediação dos Estados Unidos. Em 1966, o Paraguai e o Brasil assinaram a Ata do Iguaçu, na qual concordaram em explorar conjuntamente o potencial hidrelétrico da área. Mais tarde, o tratado de 1973 declarou Itaipu uma “entidade binacional”. O território em disputa deveria ser represado e inundado, solucionando formalmente o conflito.

O tratado forjou uma “divisão paritária de energia e gestão”, segundo Tomaz Espósito Neto, pesquisador das relações Brasil-Paraguai. Porém, o acordo gerou uma controvérsia: embora o Paraguai tenha assumido sua parte nos custos de construção da barragem, a falta de infraestrutura hidrelétrica do país à época fez com que ele concordasse em ceder ao Brasil qualquer energia não utilizada em sua cota de 50% da produção da usina. 

Conforme o relatório anual de Itaipu de 2022, o Brasil consumiu 75% da energia produzida pela usina naquele ano, enquanto o Paraguai usou os 25% restantes da geração hidrelétrica para cobrir 86% de sua demanda de eletricidade em 2022. Por isso, como vendedor de grande parte de sua cota, o Paraguai buscou aumentar a tarifa nesse novo acordo.

Em 1975, quando o projeto foi iniciado, Brasil e Paraguai assumiram dívidas de pouco mais de US$ 3,5 bilhões, incluindo empréstimos da estatal Eletrobrás. Analistas estimam que essa dívida tenha crescido para US$ 79 bilhões ao ser paga em 2023. 

O valor aumentou em meio a acusações de superfaturamento da obra e refinanciamento dos primeiros empréstimos com o Brasil. Os bancos credores aumentaram suas parcelas como forma de recuperar as perdas decorrentes de uma tarifa de energia abaixo do custo entre 1985 e 1997, beneficiando as indústrias brasileiras que usavam a maior parte da energia de Itaipu.

Organizações sociais e partidos políticos do Paraguai criticam o que consideram uma dívida “espúria”. Um relatório de 2013, do Columbia Center on Sustainable Investment, sediado nos EUA, concluiu que o Paraguai já havia pago sua parte. “Uma contabilidade cuidadosa de todos os custos e preços mostra que o Brasil pagou muito pouco ao Paraguai durante décadas”, diz o relatório. 

O status da Itaipu como entidade binacional, com marco regulatório próprio, significa que ela opera com base jurídica própria. Dessa forma, a dívida do projeto nunca foi oficialmente auditada. Devido a decisões judiciais que entendem que Itaipu não tem obrigação de prestar contas para além de seu conselho de administração, durante décadas, nem o Paraguai nem o Brasil puderam controlar as finanças da hidrelétrica.

Suas dívidas acabaram sendo pagas pelos consumidores de eletricidade de ambos os países, explica Mercedes Canese, pesquisadora paraguaia e membro da Causa Nacional Itaipu, grupo que faz campanha por uma renovação justa e transparente do tratado.

Entrada na hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná, na fronteira Brasil-Paraguai
Entrada na hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná, na fronteira Brasil-Paraguai. A usina binacional tem seu próprio tratado, status diplomático e marco regulatório (Imagem: Pulsar Imagens / Alamy)

Renegociações para além das tarifas

Com a dívida quitada e transcorridos os 50 anos estipulados do tratado, a revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu começou oficialmente em outubro passado. Sua negociação está programada para ser concluída e apresentada ao Congresso brasileiro até 31 de dezembro. 

O Anexo C determina os custos de geração de energia hidrelétrica de Itaipu, que, em teoria, deveriam estar diminuindo. Mas vários fatores impedem que isso aconteça. 

Um deles é a tarifa que a empresa de Itaipu cobra dos fornecedores — e, em última instância, dos consumidores — pela energia que produz. Um fator-chave para o custo da energia na hidrelétrica tem sido sua própria dívida. Porém, com a diminuição desse valor, o Brasil propôs uma redução na tarifa. 

O Paraguai está em desvantagem devido à sua posição geopolítica e às enormes assimetrias em relação ao Brasil
Julieta Heduvan, analista de política externa

A analista de política externa Julieta Heduvan disse ao Dialogue Earth que as relações entre Peña e Lula têm sido até agora “extremamente positivas”. No entanto, ela também acredita que as negociações internacionais “sempre têm vencedores e perdedores”. 

“O Paraguai está em desvantagem devido à sua posição geopolítica e às enormes assimetrias em relação ao Brasil”, acrescenta Heduvan.

Após uma reunião bilateral com Peña em janeiro de 2024, Lula reforçou suas opiniões divergentes sobre a tarifa cobrada em Itaipu. O presidente brasileiro também se mostrou “irritado” pela pressão do Paraguai para aumentar o valor da tarifa paga pelo Brasil.

Presidente paraguaio Santiago Peña (à esquerda) e seu homólogo brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Itamaraty, em Brasília, em janeiro deste ano
Presidente paraguaio Santiago Peña (à esquerda) e seu homólogo brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Itamaraty, em Brasília, em janeiro deste ano. Analistas afirmam que as relações entre os dois têm sido ‘extremamente positivas’ até agora (Imagem: Ricardo Stuckert / Palácio do Planalto, CC BY-ND)

Amaro Pereira, economista de energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, disse ao Dialogue Earth que o sistema energético brasileiro pode se manter sem o excedente de energia do Paraguai. “A questão é que a energia de Itaipu é mais barata e, sem esse excedente, pode haver um impacto no preço da energia”, afirma.

Uma questão decisiva?

A usina de Itaipu “desempenha um papel político, econômico e simbólico maior no Paraguai do que no Brasil”, explica Sara Costa, pesquisadora e integrante da campanha Causa Nacional Itaipu (ou Itaipú Ñande Mba’e, em guarani), do Paraguai. 

As questões ligadas à usina elegeram — e quase derrubaram — presidentes paraguaios: em 2008, Fernando Lugo foi eleito com a promessa de aumentar o valor pago pelo Brasil; em 2019, Mario Abdo Benitez correu o risco de impeachment após vinculação a um acordo obscuro com a empresa Leros, que tinha laços com o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. O acordo permitiu que a empresa comprasse o excedente paraguaio de Itaipu a um preço subsidiado, antes de vendê-la no mercado brasileiro por um preço mais alto.

A hidrelétrica complementa a receita tributária do Paraguai, mas o país tem proporcionalmente a menor arrecadação de impostos e PIB da América do Sul. Os royalties recebidos pelo uso que a usina faz do rio Paraná, onde está localizada a barragem, financiam desde a construção de escolas e centros de saúde até pesquisas científicas e o orçamento de municípios inteiros. 

Um exemplo disso é a ideia do governo de Peña de canalizar os recursos de Itaipu para um ambicioso projeto de merenda escolar. Sua implementação, no entanto, desviaria dinheiro de outras políticas, como a entrada gratuita nas universidades, um fundo para o tratamento de câncer, outro para saúde mental e o financiamento de pesquisas científicas. 

Isso provocou uma série de greves e ocupações em universidades de todo o país por duas semanas em abril. Os protestos só cessaram depois que o governo concordou em dialogar com os grevistas para garantir mais verbas às instituições de ensino.

O desejo de Peña em conseguir uma tarifa mais alta em Itaipu serve para garantir mais recursos do Brasil. Mas isso, segundo especialistas, não tem previsão legal, uma vez que o Acordo de Itaipu estabelece um custo da tarifa igual aos custos operacionais. Legalmente, Itaipu não está autorizada a gerar lucro.

“A discussão sobre a tarifa está sendo confundida com a revisão do Anexo C, algo muito mais amplo”, observa Sara Costa. “Por trás da questão da tarifa, há um pano de fundo de desenvolvimento socioeconômico, para o qual Itaipu é um ativo estratégico”.

Costa ainda argumenta que, “se o objetivo é usar a energia para industrializar ou eletrificar [o Paraguai], então precisamos de energia barata — e não cara, como quer o governo Peña”. O arranjo que o Paraguai defende atualmente serve para vender a outros compradores o excedente da energia à qual o país tem direito, a um preço melhor.

Caso o Paraguai utilize toda sua cota, diz Tomaz Espósito, “isso aumentaria muito o custo da eletricidade no Brasil”. O pesquisador avalia que o Paraguai não tem uma rede de distribuição para usar todo esse potencial — embora o governo afirme o contrário.

Pode ser uma questão de tempo até que o Paraguai precise usar toda a energia de Itaipu à qual tem direito. O consumo de eletricidade do país está aumentando rapidamente, algo que se deve ao crescimento de setores com uso intensivo de energia, como a mineração de criptomoedas e a produção de hidrogênio verde

O agravamento das ondas de calor também é um fator que explica esse crescimento da demanda. Segundo um relatório do governo de 2021, é provável que o consumo interno do Paraguai ultrapasse a capacidade de geração de energia entre 2028 e 2033. No entanto, os cálculos do relatório não incluem o impacto das mudanças climáticas no consumo, o que provavelmente aumentará ainda mais o uso de eletricidade.

Mudanças climáticas: ameaças e oportunidades

Apesar da grande disponibilidade de energia renovável no Paraguai, sustentada pela geração hidrelétrica, o país ainda depende de combustíveis fósseis e biomassa para seus setores de transporte e indústria. Em 2021, os combustíveis fósseis representaram 29% da matriz energética do país, enquanto os biocombustíveis cobriram 33%. 

Com a renegociação, diz o pesquisador Guillermo Achucarro, Itaipu “pode ser o caminho à descarbonização e de uma mudança profunda na matriz energética paraguaia”. 

Espósito, no entanto, alerta que a mesma energia usada para descarbonizar a economia paraguaia pode levar o Brasil a explorar suas reservas de petróleo e gás da bacia amazônica. Sem acesso à energia barata do Paraguai, diz ele, o Brasil provavelmente suprirá o déficit no curto prazo com combustíveis fósseis.

Enquanto isso, o hidrogênio verde — geralmente obtido como subproduto da geração de fontes renováveis, como as hidrelétricas — chama a atenção de investidores. Um deles é a empresa de fertilizantes Atome Energy, que usa hidrogênio para produzir amônia. 

O presidente da Atome, James Spalding, é um ex-diretor paraguaio de Itaipu — algo que tem sido visto como um possível conflito de interesses. A Atome é beneficiada pela baixa tarifa de luz para uma produção que requer um alto gasto de eletricidade.

Como funciona a produção de hidrogênio

A demanda por hidrogênio está aumentando porque ele não gera gases de efeito estufa.

⚪️ Tradicionalmente, os combustíveis fósseis têm sido usados para produzir o hidrogênio, conhecido como hidrogênio “cinza”.

🔵 Já o hidrogênio “azul” é produzido com combustíveis fósseis, mas com tecnologia de captura e armazenamento de carbono que promete impedir que as emissões de gases de efeito estufa cheguem à atmosfera.

🟢 O hidrogênio só pode ser classificado como “verde” se for produzido por meio da eletrólise da água, usando-se apenas energia renovável.

Uma denúncia da Causa Nacional Itaipu à Controladoria-Geral do Paraguai alega que o país perderá US$ 117 milhões se cobrar uma tarifa muito baixa à Atome. Spalding, no entanto, disse ao Dialogue Earth que as operações da Atome significam que “o Paraguai usará cada vez mais a energia limpa e renovável para seu desenvolvimento industrial”.

O aumento do consumo de energia não é o único desafio enfrentado pelo Paraguai. Em 2021, a bacia do Paraná, da qual Itaipu depende, sofreu uma de suas piores secas já registradas. Isso causou problemas para o setor elétrico, diz Saulo de Souza, engenheiro brasileiro e coordenador de mudanças climáticas da Agência Nacional de Águas e Saneamento. Em 2021, a usina de Itaipu registrou a menor receita desde o início de suas operações, em 1984, segundo relatório da barragem publicado em 2021.

Souza, autor de um estudo de 2024 sobre o impacto das mudanças climáticas nos recursos hídricos, observa que o setor hidrelétrico terá que lidar com mais enchentes e secas —- “o que resultará em mais dificuldades operacionais”.

Hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná.
Hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná. Tanto o Brasil quanto o Paraguai são afetados pelas mudanças nos níveis de água desse rio transfronteiriço (Imagem: Alan Santos / Palácio do Planalto, CC BY)

As medidas de mitigação de enchentes têm ajudado a proteger as florestas ao longo das margens do rio Paraná. Mas, diz Canese, é importante saldar outra dívida histórica de Itaipu: com os povos indígenas da região, sobretudo o povo Ava Guarani, expulso de suas terras pelas ditaduras de ambos os países na construção da usina.

Uma investigação do jornal paraguaio Última Hora revelou que as terras ancestrais foram, em muitos casos, cedidas ao agronegócio e a empresas durante a construção da barragem na década de 1980. Quando os Ava Guarani tentaram retornar ao seu território em 2017, Itaipu entrou com uma ação de despejo, que os tribunais paraguaios rejeitaram em 2023. 

“Os Ava Guarani estão nos fazendo um favor ao querer retornar ao seu território”, explica Canese. “Sem um ecossistema restaurado, não teremos água”. Apesar da vitória parcial nos tribunais, os Ava Guarani ainda lutam pela retomada de suas terras.