<p>Bancos de areia surgem na lagoa Piyulaga à medida que a seca se intensifica no território indígena do Xingu, em Mato Grosso, em agosto. O povo indígena Waurá depende da pesca para sua subsistência (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)</p>
Natureza

Indígenas resistem à seca na bacia amazônica do Xingu

Crise hídrica ameaça fontes de vida e tradição para os Waurá, enquanto grupo luta para restaurar nascentes degradadas

Os indígenas Waurá vivem às margens da lagoa Piyulaga, cujo nome, que também batiza sua aldeia, significa na língua nativa arawak “lugar de pesca”. 

São pescadores habilidosos: enquanto o barco flutua na lagoa, um grupo estende a rede de um lado, e um jovem bate uma vareta na água do outro. Assustados, os peixes nadam direto para a armadilha. Os indígenas então os retiram da rede, matam-nos com os próprios dentes e os arremessam no barco. A técnica vai se repetindo em pontos estratégicos da lagoa até encher algumas sacolas. 

Os homens pescam algumas vezes por semana, assegurando o peixe que, junto com a mandioca, formam a base alimentar de suas famílias. Mas, na primeira semana de outubro, ao chegarem à lagoa, se depararam com a morte de vários espécimes. E a cada dia seguinte, encontravam mais peixes mortos.

Three people fishing in a lagoon with nets
Indígenas Waurá pescam na lagoa Piyulaga, na Terra Indígena do Xingu. Embora sejam pescadores habilidosos, eles enfrentam ameaças à sua subsistência devido à seca na bacia do rio Xingu (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)
A bag with different species of fish
Pesca do dia inclui traíra e pauzinho, mas desde a primeira semana de outubro pescadores Waurá têm encontrado peixes mortos na lagoa Piyulaga. Eles atribuem a mortandade à baixa do nível da lagoa e ao aquecimento da água em meio à seca (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

Eles acreditam que as causas estejam relacionadas à rápida diminuição do nível da lagoa e ao aquecimento anormal da água – agravados por uma seca histórica na bacia do rio Xingu. Essa rede hidrográfica se expande por mais de 500 mil quilômetros quadrados, área do tamanho da Espanha, entre os estados do Pará, no Norte, e Mato Grosso, no Centro-Oeste. 

No dia 30 de setembro, a Agência Nacional de Águas (ANA) declarou que a bacia está em situação crítica de escassez hídrica. Em alguns pontos, o tempo de retorno ao normal das vazões são extremamente lentos e ultrapassariam até um século, segundo estimativas de Patrick Thadeu Thomas, superintendente adjunto na agência.  

“Estamos vivendo nesse momento uma situação extraordinária de estiagem na bacia do rio Xingu”, ele afirmou na reunião da ANA naquele dia.

Além de cortar a aldeia Piyulaga e mais de uma centena de comunidades no território indígena do Xingu, a bacia atende a 23 municípios, somando meio milhão de habitantes, listou Thomas. Ela é crucial para a navegação, como na cidade de Volta Grande do Xingu, e abastece hidrelétricas, incluindo a gigante Belo Monte.

Embora a usina corresponda a 5% da potência instalada de geração elétrica do Brasil, ela gerou apenas 1% de sua capacidade no início de outubro, o menor índice dos últimos cinco anos, segundo análise baseada em dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico

Mapa: Dialogue Earth

A declaração da ANA de situação crítica na bacia segue em vigor até 30 de novembro, quando se espera o retorno das chuvas à região amazônica. Até lá, medidas de mitigação estão sendo adotadas, como a redução do nível do reservatório de Belo Monte para liberar mais água ao rio Xingu.

‘A lagoa é nosso mercado’

Sentado à sombra, perto da entrada de sua oca, Tirawá Waurá, um professor de 51 anos, convidou a repórter a se aproximar em uma tarde sufocante de meados de agosto. “Queria falar da mudança no clima”, disse ele, que é hoje “o maior motivo de preocupação” de sua comunidade.

“A lagoa é nosso mercado, é onde buscamos nossa comida”, explicou Tirawá. “Se ela secar, a gente não vive bem”.

Localizada na transição entre a Amazônia e o Cerrado, a bacia é lar de uma vasta diversidade de peixes. Mas, a cada ano, sua capacidade de regeneração diminui, segundo os Waurá. “Antes, havia mais espécies”, disse Yaruma Kauê, de 20 anos, enquanto segura um tucunaré. 

“Ele conta que havia pintado, trairão…”, acrescentou o jovem, olhando para Ewelupi Waurá, de 61 anos, o mais experiente entre os pescadores, cujo porte robusto reflete suas décadas de trabalho físico árduo. Ewelupi evita falar português, assim como muitos da aldeia que mantêm hábitos tradicionais, incluindo sua técnica de pesca.

A man standing in a river next to a canoe with a fish in his hands
Aos 61 anos, Ewelupi Waurá é o líder mais experiente entre os pescadores da aldeia Piyulaga (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)
A man with a fish in his hands
Yaruma Kauê segura um tucunaré capturado naquele dia. Ele conta que a lagoa tinha mais diversidade de espécies (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

Além do impacto de Belo Monte na biodiversidade da bacia, a agroindústria avançou rumo à floresta nativa até praticamente ilhar a reserva indígena do Xingu. Suas nascentes, na porção sul, não estão protegidas por áreas de preservação, sofrendo com o intenso avanço da fronteira agrícola: Pará e Mato Grosso acumulam as maiores taxas de desmatamento da Amazônia, segundo o monitoramento do governo federal. 

Há décadas, portanto, os efeitos das hidrelétricas, da agroindústria e da urbanização têm vulnerabilizado a bacia do Xingu. A preocupação dos Waurá é que, a cada ano, quando a estação chuvosa volta, as águas no entorno da aldeia não se recuperam aos níveis anteriores, ficando um pouco mais baixas a cada ciclo. 

Uma análise de imagens de satélite de três plataformas sugere que a seca tem de fato atingido a localidade ao longo do tempo. Pela Global Surface Water, observa-se que algumas águas, antes permanentes, se tornaram sazonais nas últimas três décadas. A tendência de declínio das águas ao longo de décadas na área também é visível na plataforma de monitoramento MapBiomas.

“Se uma área não é mais permanentemente coberta por água, ela pode estar secando”, comentou Ayan Fleischmann, que pesquisa a hidrologia da região amazônica e checou as imagens a pedido do Dialogue Earth.

Imagens de satélite do rio Tabapuá, com a lagoa Piyulaga no centro. Bancos de areia no contorno da lagoa em outubro deste ano mostram intensificação da seca (Imagem: Planet Labs PBC)

Já a plataforma Water Masks for Amazon Basin mostra que a estiagem deste ano  superou os recordes do ano passado – quando uma seca histórica abateu o bioma. A estiagem ganhou força em outubro em comparação a agosto deste ano, tornando os bancos de areia ao redor das águas mais evidentes quando vistos de satélites, como da Planet.  

“A região do Xingu tem passado por uma diminuição constante da disponibilidade hídrica, e isso está num contexto regional de impacto das mudanças climáticas no sul da Amazônia”, acrescentou Fleischmann, líder do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

As imagens de satélite vão ao encontro dos relatos de moradores. Em agosto, a água de um riacho que conecta a lagoa Piyulaga ao rio Batovi, afluente do Xingu, não chegava ao joelho de um adulto. Em outubro, o riacho secou completamente.

“Nas secas passadas, tinha pouca água. Neste ano, secou tudo, não tem mais rio perto da aldeia”, disse Yatakulo Waurá, da associação de moradores Tulukai. Ele acrescenta que o riacho só volta a ter um pouco de água a três quilômetros de distância da comunidade – um quilômetro a mais do que nas secas anteriores.

Yatakulo é um dos poucos na aldeia que sabe o nome tradicional daquele curso d’água: “É Yalatukenenepu, que significa ‘caranguejo’”. Para a maioria, de tão essencial, é simplesmente “o rio”.

aerial view of a dry river amidst trees
Próximo à aldeia Piyulaga, o riacho Yalatukenenepu sofreu a pior seca de sua história, segundo os moradores (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)
people in a river with pequi in their hands
O ‘rio’ é essencial para a cultura Waurá. O pequi é submerso na água até virar um mingau e, em seguida, é servido em rituais (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

Com o amanhecer, o caminho de terra batida até o rio começa a ficar movimentado e segue assim até o cair da noite. Ali, é um local de banho e convivência do povo Waurá. É também onde eles deixam o pequi submerso até se tornar um mingau pela força da correnteza, que depois é servido em rituais. 

Para os Waurá, a água é mais que uma necessidade; é central em sua cosmologia. Eles contam que costumavam tomar banho na lagoa “para ficarem fortes e não envelhecerem”. Rios e lagos abrigam espíritos, como os Munä. Um mito diz que a cobra-canoa Kamalu Hai ensinou a arte da cerâmica, deixando argila nas margens do rio Batovi. Hoje, os Waurá ainda coletam barro do leito desse rio. 

Para o consumo de água, eles dependem de um poço artesiano, assim como a maioria dos indígenas no entorno do rio Xingu. Embora seu nome signifique “água limpa, água boa”, o rio Xingu sofreu com a degradação de sua qualidade ao longo dos anos. 

Uma torre se destaca em um canto da aldeia, armazenando e bombeando água para as torneiras próximas ou dentro das ocas. Mas a distribuição é instável: há escassez, então os moradores se habituaram a armazenar a água em vasilhas. Em outros momentos, a caixa d’água transborda, e se torna uma chuva artificial que atrai as crianças.

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Sementes de urucum na oca de Yatakulo Waurá, coletor da Rede de Sementes do Xingu — projeto dedicado à restauração de áreas desmatadas e à recuperação de nascentes (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)
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Famílias armazenam água devido à instabilidade do abastecimento do poço artesiano. No passado, eles bebiam a água do rio, hoje imprópria para o consumo (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

Nos fundos da oca de Yatakulo, sua família descasca, mói e seca a farinha de mandioca, além de armazenar sementes como de urucum e favela. Ele é um dos coletores da Rede de Sementes do Xingu, que desde 2007 se dedica à restauração de áreas desmatadas, visando principalmente recuperar nascentes e restaurar o fluxo das águas.

A rede conta com cerca de 700 coletores, entre indígenas e pequenos agricultores, sendo 45 da aldeia Piyulaga. O processo de recuperação envolve a busca das melhores sementes e o uso da “muvuca” — uma mistura de sementes para plantios manuais ou mecanizados. Até agora, foram coletadas mais de 350 toneladas de sementes, que restauraram mais de 8,8 mil hectares. 

É um esforço modesto diante da expectativa de restaurar mais de 200 mil hectares no entorno das nascentes da região, mas representa um passo crucial para assegurar a água — esse elo vital entre o sagrado, a cultura e a sobrevivência dos Waurá.