Das 22 famílias da aldeia indígena de São José do Uruburetama, do povo Kokama, apenas três permaneceram na comunidade durante a seca histórica de 2024. As demais foram obrigadas a se deslocar para a cidade, em busca de atendimento de saúde, alimentação e segurança. As secas extremas de 2023 e 2024 abalaram a rotina da aldeia localizada na zona rural da cidade de Coari, no Amazonas, e lhes impuseram um novo modo de viver, dividido entre a floresta e a periferia da cidade.
Nota editorial:
Esta reportagem faz parte do programa Vozes Indígenas, do Dialogue Earth. Os oito bolsistas são jornalistas e escritores indígenas do Sul Global. O projeto visa valorizar as temáticas, narrativas, práticas jornalísticas e percepções dos povos originários.
Em abril, como parte do projeto Vozes Indígenas do Dialogue Earth, me propus a documentar como a comunidade foi impactada por esses eventos climáticos. Em uma lancha rápida, percorri cerca de cem quilômetros do centro urbano de Coari até a aldeia. A viagem durou cinco horas, mas pode chegar a três dias na seca. Com o lago Mamiá, que banha São José do Uruburetama, reduzido a trechos de lama nesse período, o ir e vir fica comprometido — e com ele, o dia a dia da comunidade.

Na Amazônia, os períodos secos são parte do ciclo natural da região. O chamado “verão amazônico”, entre julho e novembro, leva à redução gradual do nível dos rios. As comunidades ribeirinhas e indígenas estão acostumadas com essas variações, ajustando a pesca, a navegação e o plantio conforme o ritmo das águas.
Porém, o que se viu em 2023 e 2024 ultrapassou esse padrão: foram secas excepcionais, mais longas, intensas e imprevisíveis, agravadas por fenômenos climáticos como o El Niño — que aquece as águas do Pacífico e altera padrões de chuva em várias regiões — e o avanço das mudanças climáticas.
“Os modelos climáticos são claros em prever secas ‘sem precedentes’, ou seja, piores do que qualquer seca até agora”, afirmou, ao Dialogue Earth, Philip Fearnside, pesquisador em mudanças climáticas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.

Segundo Fearnside, o agravamento recente das secas tem múltiplas causas: tanto o El Niño como o dipolo do Atlântico — fenômeno que desequilibra as temperaturas entre o norte e o sul do oceano — estão mais frequentes e mais severos com o avanço do aquecimento global. Fearnside ressalta ainda que, com o avanço do desmatamento da Amazônia, há menos árvores liberando vapor d’água na atmosfera, o que reduz a formação de nuvens e dificulta que a chuva volte a cair sobre a floresta. Com isso, ele observa uma tendência de mais secas intensas e consecutivas, como as que ocorreram em 2023 e 2024. Para este ano, a seca que se inicia tende a ser moderada.
Em São José do Uruburetama, a única fonte de água para consumo é o próprio rio Mamiá. Segundo os moradores, em 2023 e 2024, quando o nível baixou como nunca antes, a água ficou turva, com gosto e cheiro de lama. Ainda assim, é a água que se usa para beber, cozinhar, lavar e tomar banho. O tratamento é feito apenas com cloro, fornecido pela prefeitura.

Durante a seca, os casos de diarreia e dores estomacais – especialmente entre crianças e idosos – se multiplicam, segundo Valcineto Moreira, agente de saúde da comunidade. “A água fica muito suja, parece barro. A gente trata com cloro, mas mesmo assim [as pessoas] adoecem”, afirmou. Não foram encontrados números desses casos específicos em bases de dados públicos.
A água, que sempre foi fonte de vida e sustento, passa a representar um risco.
Desafios da vida na cidade
A indígena Kokama Tandara Nunes deixou a comunidade na seca de 2023, quando sua filha mais nova adoeceu. “Ela apareceu com malária, mas não ficava boa. A imunidade já estava baixa. Passou uma semana, duas, e nada”, relata. A família enfrentou dois dias de viagem até conseguir atendimento no centro de Coari. “Já não passava mais barco. A gente teve que ir de canoa e empurrá-la na lama”, lembra Nunes.

Em 2024, com medo de reviver o drama, Nunes foi para a cidade com a família antes que alguém adoecesse. “Meu filho do meio tem asma. Já ficamos sofrendo com ele também. Aí fomos todo mundo”, conta.
Durante os períodos mais críticos das secas, moradores indígenas do centro urbano de Coari oferecem abrigo – mas não conforto. Para muitas famílias de São José do Uruburetama, viver na cidade significa se amontoar na casa de parentes, às vezes com três ou quatro núcleos familiares em um só cômodo. A maioria não tem casa própria e depende da solidariedade de amigos ou familiares para conseguir abrigo temporário. A família de Nunes se abrigou em um cômodo cedido por uma tia em sua residência na periferia do município.
Na cidade, tudo é custo. Transporte, alimentação, remédio, gás. “Lá, se tu não tiver dinheiro, tu não come. E aqui [na aldeia] não, a gente vai atrás”, resume Nunes.
Na floresta, mesmo com dificuldade, há o peixe do rio, o fruto do açaí, a farinha da roça de mandioca, a troca entre vizinhos. Na cidade, sem renda estável, o risco de passar fome é real.


Para enfrentar os altos custos da vida urbana, as famílias indígenas se organizam coletivamente. Reúnem o pouco que têm para comprar cestas básicas, dividem alimentos e ajudam umas às outras como podem. A maioria sobrevive com o apoio do programa de assistência social do governo federal, o Bolsa Família, que se torna a principal fonte de renda nesse período. O valor médio recebido pelas famílias do programa é de R$ 668, menos da metade do salário mínimo.
Apesar das dificuldades, as famílias que entrevistei deixaram claro que a ida à cidade é temporária. A floresta, com seus desafios, continua sendo sua casa.
Ameaça constante da malária
A malária é uma das principais ameaças à saúde em São José do Uruburetama, especialmente durante os períodos de seca, quando as condições se tornam ideais para a proliferação do mosquito transmissor. Com o rio baixo, surgem poças e trechos de água parada e rasa — ambiente perfeito para o inseto se reproduzir.

Moreira, que vive na própria comunidade, relata o peso de ser o único elo entre os moradores e o sistema público de saúde. “É um trabalho preventivo, a gente coleta lâmina [de sangue para o diagnóstico], faz visitas, monitora. Mas, na seca, tem área que não dá para chegar. É lama, é distância, o barco não passa”, explica.
Na seca de 2023, Moreira se viu impedido de voltar para casa — e sua ausência teve consequências na comunidade. Ele havia deixado a esposa e os filhos na aldeia e seguido de canoa até o centro de Coari para comprar alimentos. Nesse intervalo, o nível do rio baixou tanto que sua embarcação não conseguia mais passar. Só conseguiu retornar três dias depois, com um bote de alumínio cedido por amigos. “Encontrei 17 casos de malária e minha esposa jogada no sofá, doente”, lembra o agente de saúde.
Dados oficiais da Secretaria de Saúde do estado do Amazonas mostram que 2023 registrou o maior número de casos de malária em Coari nos últimos cinco anos: 2.471 notificações, aumento de 41% em relação a 2022. O mês de agosto, com 639 casos, foi o pico de toda a série analisada – coincidindo com o início da estiagem. Em 2024, os casos seguiram elevados, com 2.225 registros, o que representa 27% a mais que o período anterior às secas históricas. Os números reforçam o que os moradores vivem na prática: com a seca, a malária avança mais rápido e chega mais longe.
Cinco meses de aula por ano
Sete famílias vivem no centro de São José do Uruburetama, enquanto a maior parte da comunidade está em áreas acessíveis apenas pelo rio. Quando a água baixa demais, as crianças dessas áreas não conseguem chegar à única escola, no centro.
Na escola, a educação se restringe ao ensino fundamental. Um professor leciona as séries iniciais e outro as finais – ambos no formato multisseriado, em que alunos de diferentes níveis e idades dividem a mesma sala de aula.
Esse modelo, já desafiador em condições normais, torna-se ainda mais precário durante as secas. Com o lago e o rio Mamiá rasos, o barco escolar deixa de operar, e as aulas são suspensas por tempo indeterminado, inclusive para as crianças que vivem perto da escola.
Isso porque os professores vêm do centro de Coari e retornam à cidade uma vez por mês para receber seus salários e comprar alimentos. No entanto, a seca torna a viagem de volta inviável. “Quando a seca vem, o barco comunitário não consegue passar”, explica Mariete Queiroz, liderança local. “As aulas param e só recomeçam quando o rio enche de novo. Aqui é assim: quem aprendeu, aprendeu; quem não aprendeu perde o ano”.

Em 2023 e 2024, o calendário escolar ocorreu apenas de abril a agosto, quando as aulas foram interrompidas pelas secas. Para tentar minimizar as perdas, foi criado um cronograma alternativo para os alunos que conseguiam se deslocar até a cidade. Já aqueles que permaneceram na comunidade muitas vezes ficaram de fora por falta de conexão à internet ou materiais impressos.
Ainda assim, os planos de estudo entregues aos estudantes da cidade para acompanhar em casa se mostraram insuficientes, segundo a cacique da comunidade, Ediane Freitas. Ela afirma que, sem aulas presenciais ou acompanhamento pedagógico, o aprendizado foi prejudicado: “Um plano de estudo para fazer em casa não tem o mesmo conhecimento que é na sala de aula”.
Para os que permaneceram na comunidade isolada, não houve qualquer alternativa educacional durante o período da seca.
Freitas tem alertado representantes da Secretaria de Educação do município de Coari sobre as recorrentes perdas educacionais entre os alunos da aldeia. Em 2025, o ano letivo teve início em abril e segue em andamento, mas ela ainda teme que possa ser interrompido pela seca.
“Depois que entra a seca, as crianças ficam totalmente paradas. As que ficam aqui não têm aula nenhuma. Quando volta no outro ano, o que passou já não repõe mais. Já perderam muito”, lamenta. Ela cobra um planejamento que considere a realidade das comunidades isoladas: “Se a gente tivesse esse olhar especial dos nossos poderes… mas a gente não tem”.
Procuradas, as secretarias municipais de Saúde e Educação de Coari não responderam sobre dados locais e ações adotadas durante as secas até o fechamento da reportagem.
“O governo precisa estar preparado para entregar alimentos e água para populações tradicionais quando grandes eventos extremos climáticos ocorrem”, disse Fearnside. Mas as ações, segundo ele, precisam ir além das emergenciais. “É preciso uma mudança rápida de políticas, que estão levando o país e o mundo no caminho para crises climáticas cada vez piores”.
Fearnside critica os planos do governo brasileiro de explorar petróleo na Amazônia e a proposta de reconstrução da rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho em um trajeto de 870 quilômetros no coração da floresta. Segundo ele, a obra abriria vastas áreas da Amazônia à ação de desmatadores e suas redes associadas.

Em São José do Uruburetama, o ciclo das águas dita o ritmo da vida. Mas o que antes era apenas adaptação à natureza, agora é também resistência a um clima cada vez mais imprevisível.
Mas, apesar das dificuldades, ninguém cogita abandonar a comunidade de vez. “Aqui me representa liberdade. Aqui me representa resistência. Aqui me representa força”, resume a cacique.