Florestas

Pará: o maior desmatador da Amazônia pode ser um líder da bioeconomia?

Com pressões crescentes, governo estadual parece empenhado em dar um verniz mais verde ao estado que acumula recordes de desmatamento do bioma
<p>Produção de acerola na Floresta Nacional do Tapajós, no Pará (Imagem: <a href="https://flickr.com/photos/194505739@N06/51704394318/in/album-72157720176297044/">Flavio Forner</a> / <a href="https://flickr.com/photos/194505739@N06/51704394318/in/album-72157720176297044/">ASL Brazil</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/">CC BY NC</a>)</p>

Produção de acerola na Floresta Nacional do Tapajós, no Pará (Imagem: Flavio Forner / ASL BrazilCC BY NC)

São Félix do Xingu é um município superlativo da Amazônia brasileira: é o segundo maior emissor de gases de efeito estufa do país; o segundo com mais desmatamento médio nos últimos 15 anos; líder nacional em rebanho bovino; e um dos municípios com menor desenvolvimento humano na região.

O município é ainda um claro exemplo da condição do Pará. Desde 2006, o estado é o líder em desmatamento da Amazônia, impulsionado pelo avanço da pecuária, da soja e da construção de estradas e portos para facilitar o escoamento da produção para os mercados doméstico e internacional.

Mas com a crescente pressão para se reverter a devastação do bioma e a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva — que prometeu colocar as questões ambientais no topo de sua agenda —, o governador Helder Barbalho parece empenhado em dar um verniz mais verde ao estado.

Em novembro de 2022, Barbalho participou da conferência climática COP27, integrando a comitiva de Lula, que ofereceu a Amazônia brasileira para sediar a COP30 em 2025. Se o país for escolhido, Belém, capital do Pará, receberá o evento. Barbalho também aproveitou a conferência para anunciar o Plano Estadual de Bioeconomia (PlanBio), que visa zerar as emissões líquidas de uso da terra no estado até 2036.

O plano teria como foco evitar o desmatamento por meio da valorização da bioeconomia, ou seja, a economia da floresta em pé. Nos próximos cinco anos, ele espera investir R$ 1,2 bilhão em produtos da biodiversidade, com um retorno estimado de R$ 170 bilhões até 2040, o equivalente ao PIB do estado.

A iniciativa é inédita a nível governamental — a maioria dos projetos que impulsionam a bioeconomia é assumida por organizações ambientais e comunidades tradicionais em escalas menores.

Será que o modelo econômico — e a imagem do estado como grande desmatador — estão prestes a mudar?

Para Celma de Oliveira, coordenadora de projetos da organização ambiental Imaflora e moradora de São Félix do Xingu, há um cenário promissor nas esferas federal, com a eleição de Lula, e estadual, com o PlanBio. “Existe esperança com essa retomada de um governo mais participativo e de ministérios e conselhos que foram desarticulados”, diz Oliveira, referindo-se ao esvaziamento de órgãos ambientais durante a presidência de Jair Bolsonaro. “Agora, a sociedade civil precisa participar da gestão para funcionar”.

Criação de gado na Floresta do Jamanxim
Criação de gado em área da Amazônia desmatada ilegalmente na Floresta do Jamanxim, no Pará (Imagem: Ricardo Funari / Alamy)

Pecuária, soja e pressões sobre pequenos produtores

A pecuária e a soja são predominantes na paisagem paraense. As lavouras do grão ocuparam 849 mil hectares em 2022, aumento de 70% em relação a 2017. Além disso, o estado tem o segundo maior rebanho bovino do país, com 26,7 milhões de cabeças de gado e uma taxa de 1,5 cabeça por hectare — considerado de baixa produtividade.

“Essa taxa de lotação da pecuária paraense é muito baixa e precisaria ser dramaticamente melhorada para evitar crescer todo ano pela expansão de terra”, diz Sérgio Leitão, fundador e diretor-executivo do Instituto Escolhas, que desenvolve estudos voltados para o desenvolvimento sustentável.

Em meio a essa contínua expansão, muitos pequenos agricultores no Pará fazem o possível para resistir à tentação de se voltar para a produção de soja e gado e desmatar a terra.

Os agricultores não conseguem gerar renda suficiente para diversificar a produção

Maria Josefa Neves, de 51 anos, tem uma propriedade rural na comunidade de Tancredo Neves, a 120 quilômetros do centro de São Félix do Xingu. Em um de seus 12 hectares, ela cuida de uma agrofloresta, onde planta uma variedade de espécies nativas, como acerola, mandioca e cacau, sobre o que antes eram pastagens.

No restante da propriedade, ela deixou a vegetação se regenerar. “Eu moro no meio do mato, os macacos vêm na beira da casa”, conta Neves, dizendo, no entanto, que a área ao redor de onde vive está toda desmatada.

Neves é presidenta da Associação das Mulheres Produtoras de Polpa de Fruta, fundada em 2012. Ela adota técnicas de sombreamento — ou seja, cultiva feijão-guandu e arbóreas em paralelo às frutíferas para garantir sombra e nutrientes necessários ao solo, dispensando produtos químicos; utiliza biofertilizantes caseiros e fornece polpas de fruta a escolas da região.

Mulher segura cacau cortado ao meio
Produção de cacau na comunidade de Tancredo Neves, no Pará, Brasil (Imagem: Diego Formiga / Imaflora)

A entidade tem 55 associadas que há três anos vendem as polpas de frutas ao governo federal, o qual, por sua vez, realiza sua distribuição. A parceria vem avançando: o contrato passou de R$ 231 mil em 2022 para R$ 351 mil em 2023.

Porém, para abrir novos mercados, elas precisam de mais investimentos. A associação depende, por exemplo, de uma câmara fria para o armazenamento da produção e de um caminhão refrigerado para transportar as frutas. Celma de Oliveira diz que a falta de políticas públicas impede o avanço de iniciativas agroecológicas, e um dos principais problemas é a dificuldade de acesso ao crédito.

“Tem crédito específico para o sistema agroflorestal, mas os bancos colocam uma série de empecilhos. Aí os agricultores não conseguem gerar renda suficiente para diversificar a produção”, diz Oliveira, que presta assistência à associação, pelo Imaflora. “É muito mais fácil conseguir crédito para a pecuária”.

O secretário estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, José Mauro O’de Almeida, concorda que é preciso criar mais condições para que esses produtos sejam comercializados: “Nós temos boas iniciativas de agroflorestas, biojoias, biocosméticos, bioprodutos de uma maneira geral, mas que não ganham escala”.

Para isso, Almeida diz ser necessário melhorar a infraestrutura, logística e  verticalização — ou seja, mantendo o processamento do produto na região. “Em Paris, você compra o açaí liofilizado [desidratado e vendido em pó ou cápsulas] a 200 euros o quilo. Tem alto valor agregado, muito maior do que o da soja, mas é preciso ter a verticalização”, diz.

A expectativa é que o PlanBio responda a algumas dessas demandas para que, segundo Almeida, a fronteira agrícola pare de expandir. O plano também quer valorizar o modelo econômico sustentável e prevê a criação de centros de empreendedorismo em cinco regiões do estado, um museu da bioeconomia e uma escola sobre os saberes da floresta. O primeiro aporte virá do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que oferecerá US$ 300 milhões à agenda climática do estado, segundo o secretário. A primeira parcela está prevista para ser paga em outubro, mas o valor especificamente destinado ao PlanBio ainda não foi definido.

Damião Barborsa cuida de mudas
Damião Barborsa cuida de mudas em seu viveiro na comunidade Xadá, no Pará (Imagem: Flavio Forner / ASL BrazilCC BY NC)

Governo do Pará joga dos dois lados

Apesar da virada mais verde sinalizada em anúncios recentes, o agronegócio provavelmente continuará sendo uma indústria-chave e uma fonte vital de renda para o Pará e seu governo — e uma possível fonte de tensões com suas ousadas ambições de bioeconomia.

Em 2022, as exportações do agronegócio do Pará alcançaram US$ 3 bilhões, 70% a mais do que no ano anterior. As principais mercadorias foram soja, carne bovina e produtos florestais — como madeira, carvão vegetal e papel.

A China foi o principal destino internacional do agronegócio paraense, com US$ 957,7 milhões em valor exportado, um terço do total — carne e soja representaram 92% dessa quantia, segundo o Ministério da Agricultura. Na sequência, estão Estados Unidos, Holanda e Espanha.

Não à toa, em abril, o governador Barbalho voltou a integrar a comitiva de Lula, desta vez com destino à China. Na ocasião, foi firmado um acordo com a China Communications Construction Company, a CCCC, para a construção de uma ferrovia ligando municípios do sudeste paraense ao porto de Barcarena, na costa norte do estado. O projeto, estimado em R$ 7 bilhões, servirá para o escoamento de commodities do Pará aos mercados internacionais.

O governo estadual também é um grande patrocinador do agronegócio. A pecuária paraense recebeu quase R$ 210 milhões em renúncias fiscais em 2021. Mas a atividade, diz Leitão, “recebe muito e oferece pouco em termos de produtividade e eficiência do ponto de vista ambiental”.

Em 2021, 85% das emissões de gases de efeito estufa do Pará tiveram origem na mudança de uso do solo (desmatamento, principalmente) e 11%, na agropecuária, segundo dados do Observatório do Clima. Altamira, também no Pará, e São Félix do Xingu são os municípios que mais geram emissões em todo o país.

Em Altamira, está a Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, uma área protegida que integra o território indígena do Xingu. Assim como as produtoras de polpas de frutas de São Félix do Xingu, os extrativistas de Riozinho do Anfrísio são pressionados pelo avanço do desmatamento, conforme dados do Inpe e relatos.

Esse avanço rumo às áreas de coleta de castanha da Amazônia, óleo de copaíba e borracha já foi uma grande preocupação do extrativista Pedro Pereira, um dos moradores da região. Mas nos últimos meses, ele já percebe uma debandada dos invasores com a retomada do combate aos crimes ambientais pelo governo federal. Em abril, Barbalho e Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, firmaram um acordo de cooperação para aprimorar a fiscalização ambiental, a gestão das florestas e o uso do solo no estado.

Barco no Xingu
No Xingu, quase mil produtores movimentaram R$ 9,5 milhões com a bioeconomia desde 2016 (Imagem: Rafael Salazar / Origens Brasil)

Mesmo com as pressões, os extrativistas de Riozinho do Anfrísio mostram ser possível gerar renda mantendo a floresta em pé. Contando com o apoio do Origens Brasil — rede coordenada pelo Imaflora e o Instituto Socioambiental que estimula negócios sustentáveis na Amazônia —, eles têm conseguido melhores acordos com as empresas que compram seus produtos. Não apenas obtêm valores mais justos, como as empresas arcam com os custos logísticos do negócio.

“Antes, a borracha dava R$ 0,70 por um bloco, e hoje são R$ 13, uma mudança enorme e com um contrato que nos dá segurança”, comemora Pereira.

No território do Xingu, o Origens Brasil tem quase mil produtores cadastrados, que desde 2016 já movimentaram R$ 9,5 milhões pelo comércio de produtos da biodiversidade. Apenas em 2022, foram R$ 2 milhões.

Mas pode ser bem maior a receita da bioeconomia, segundo um estudo recente do Instituto Escolhas, que avaliou a renda possível a partir da recuperação de áreas degradadas e, logo, o plantio de espécies nativas que poderiam ser exploradas pelos extrativistas. A pesquisa mostra que o reflorestamento de seis milhões de hectares — uma área maior do que o estado da Paraíba — poderia criar um milhão de empregos diretos, gerar R$ 13,6 bilhões em receitas e reduzir o índice de pobreza no Pará em 50%. Os empregos seriam gerados pela mão de obra na coleta de sementes, produção de mudas, plantio, manutenção e monitoramento da atividade.

Segundo Leitão, um gargalo muito discutido da bioeconomia é a baixa escala da produtividade. Mas ele ressalta que o replantio de florestas junto a outras atividades de menor impacto, como a horticultura produzida pela agricultura familiar, poderiam ampliar seu alcance. “Elas oferecem exatamente esse espaço da oferta de emprego, geração de renda, combate à pobreza e dão o tempo necessário para que a escala de outras atividades possa aparecer”, diz Leitão.

Pedro Pereira está animado com as perspectivas. Seu principal desafio agora não são os invasores, mas o avanço de sua produção. Ele espera que sua comunidade negocie com mais empresas para escoar a produção excedente. Mas, para ele, a preservação do bioma vai além do que uma oportunidade de renda.

“A floresta para nós é tudo”, diz Pereira. “É de onde a gente tira o sustento da nossa família, toda nossa alimentação, nosso recurso de dinheiro. Ela é a fonte de água. Sem a floresta, a gente não é ninguém”.