Florestas

Tradings de soja falham em monitoramento de fornecedores indiretos no Cerrado brasileiro

Gargalos na cadeia da commodity contribuem para o desmatamento veloz do bioma, que é essencial para o abastecimento de água do país
<p>Colheita mecanizada de soja em Luís Eduardo Magalhães, Bahia (Imagem: <span id="automationContributor" class="copy-text"><span id="automationThirdPartyAgencyName">imageBROKER</span> / Alamy)</span></p>

Colheita mecanizada de soja em Luís Eduardo Magalhães, Bahia (Imagem: imageBROKER / Alamy)

O Brasil tem a maior produção mundial de soja, mas está longe de ter uma cadeia produtiva ambientalmente responsável. E hoje essa monocultura avança principalmente pelo Cerrado, cujo desmatamento vem atingindo níveis recordes na fronteira agrícola do Matopiba, acrônimo para os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Especialistas explicam que, juntamente com a pecuária extensiva, a especulação com terras e a fraca fiscalização ambiental, a soja tem pressionado o bioma que abriga as nascentes que formam oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras e é essencial para a distribuição de água do país.

Essa pressão vem, principalmente, de falhas no rastreamento dos fornecedores indiretos da cadeia produtiva. Trata-se da vasta rede de operadores intermediários, como cooperativas, armazéns e entrepostos revendedores, situados entre a lavoura e as grandes compradoras — as tradings.

Você sabia?


Dez tradings responderam, juntas, por 77% da soja exportada do Brasil. A commodity tem como principal destino a China e a União Europeia.

Elas não plantam (exceto a brasileira Amaggi, que cultiva 5% do volume comercializado), mas operam junto às fazendas financiando sementes, insumos e defensivos agrícolas e, depois, comprando e exportando sua produção. Juntas, dez tradings responderam em 2019 por 77% da soja exportada, que seguiu, principalmente, para China e União Europeia.

Entre as principais companhias operando no Cerrado, Cargill, Louis Dreyfus Company, ADM, Cofco e Viterra não divulgam informações sobre o rastreamento de fornecedores indiretos até o nível da fazenda, segundo uma análise do Diálogo Chino de seus relatórios de sustentabilidade. A Amaggi afirma rastrear 22% de seus fornecedores indiretos, e a gigante Bunge, 30%.

Apesar das limitações, o rastreamento de fornecedores indiretos é crucial para que as tradings alcancem suas metas de zerar o desmatamento em suas cadeias de suprimentos. LDC, Bunge e Amaggi planejam alcançá-la em 2025. Cargill, ADM e Cofco, por sua vez, em 2030.

Misturas de soja irregular

No mercado brasileiro da soja, o grão pode passar por diferentes intermediários até chegar às caldeiras de processamento ou ao porto. Volumes de soja vindos de fazendas regulares às vezes se misturam, nos silos, àqueles vindos de áreas irregulares, como conta um trabalhador do setor.

“A maior parte da soja por aqui se mistura. Nos secadores, por exemplo, uma carga é jogada sobre a outra”, afirmou ao Diálogo Chino Aldenir Almeida, caminhoneiro que transporta grãos e cereais entre os principais municípios produtores do Mato Grosso.

Ludmila Rattis, cientista do Woodwell Climate Research Center, dos EUA, que acompanha as cadeias produtivas da Amazônia e do Cerrado, confirma que a mistura de soja acontece. Ela conta que um caminhão pode carregar grãos de diferentes produtores e que há brechas para a ocorrência de fraudes em armazéns. “No fornecimento direto, é mais difícil isso ser fraudado”, explicou.

Já o coordenador de projetos do Imaflora, Lisandro Inakake, diz que “as empresas têm dificuldades de enxergar os caminhos do grão” porque ele “circula como dinheiro”. Ou seja, é comum a soja servir como moeda para o pagamento de insumos, sementes, empréstimos e financiamentos.

silos de soja no estado da Bahia, no Brasil
Silos em Luís Eduardo Magalhães, Bahia, um dos maiores polos do agronegócio brasileiro (Imagem: Lilian Caramel)

Em Luís Eduardo Magalhães, um dos maiores polos do agronegócio brasileiro, na Bahia, as cooperativas de produtores intermedeiam as vendas tanto de associados quanto de não-associados. Para fechar o negócio, elas exigem apenas o Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público dos imóveis rurais do país, como prova de regularização ambiental.

“Em geral, as cooperativas pedem o CAR ao produtor somente porque é o que a trading requer. É praxe no mercado. Da parte das cooperativas daqui, não existe rigor ambiental, como visitas às fazendas ou separação das cargas nos armazéns”, conta Paulo Santos, corretor de grãos que atua nos municípios de São Desidério e Correntina, grandes produtores de soja do país, no Matopiba.

Embora obrigatório, o CAR é auto-declaratório, e é aí que mora o problema. “O CAR é falho. A análise é muito lenta. A autodeclaração dá liberdade ao produtor de contornar violações à legislação ambiental”, afirma Prudente Pereira de Almeida Neto, professor da Universidade Federal do Oeste Baiano, em Barreiras, município também da fronteira agrícola.

Para ele, as brechas permitem que a soja contaminada com o desmatamento entre na cadeia. “O CAR pode mascarar uma realidade fraudulenta, já que, inclusive, quase não há fiscalização. Como é que se confia em um processo como esse?”, questiona Almeida Neto.

De fato, apenas 538 dos 959 mil imóveis rurais da Bahia declarados no sistema passaram por algum tipo de análise pelo governo estadual até o momento, segundo o boletim do Serviço Florestal Brasileiro divulgado este ano. Além disso, em 2020, 67,6% dos alertas de desmatamento no Cerrado foram registrados em áreas declaradas no CAR, de acordo com o último relatório do Mapbiomas.

Tradings têm metas de desmatamento zero

No país que mais produz e exporta a oleaginosa no mundo, não há um sistema público de rastreamento de soja, e o trabalho fica a cargo do próprio setor. O Soft Commodities Forum (SCF), um consórcio de seis tradings agrícolas, anunciou em 2021 ter atingido 100% de rastreabilidade de seus fornecedores diretos da soja no Cerrado brasileiro.

No entanto, informações como nome, tamanho e localização das fazendas não são divulgadas. A falta de transparência é uma das principais queixas de observadores internacionais que acompanham a cadeia de perto.

“As mesmas tradings que dominam o beneficiamento e a exportação da soja são muito mais transparentes na cadeia de óleo de palma, na Indonésia. Por que não dizer de onde compram e de quem compram a soja no Brasil?”, questiona Barbara Kuepper, pesquisadora da organização holandesa Profundo. “Eu advogaria por mais abertura, que nos permitisse acompanhar o andamento dos compromissos [de combate ao desmatamento] assumidos com o Cerrado”.

Infelizmente, salvar a Amazônia custou o Cerrado. O governo federal jogou o agronegócio para cá!

Mas a missão é encarada como desafiadora até por pesquisadores do setor. “É um processo complexo porque tem uma questão sensível de liberação de informação comercial, o que, às vezes, inviabiliza [o monitoramento]”, afirma Inakake, do Imaflora. “O setor ainda está na fase inicial de desenvolver sua capacidade de rastreamento. O problema do fornecimento indireto está longe de ter uma solução, mas tem que haver uma”.

Moratória da Soja para o Cerrado estaciona

Lançada em 2006, a Moratória da Soja funciona como um pacto voluntário entre setor produtivo, organizações ambientais e governo federal e proíbe a compra de soja cultivada em áreas desmatadas da Amazônia. Estudos têm mostrado que isso contribuiu para a conservação da floresta.

O pacto, no entanto, não abrange o Cerrado, por onde avança o desmatamento. O Mapbiomas mostra que, entre 2010 e 2020, a soja tomou 1.14 milhão de ha de vegetação nativa no Matopiba.

“O Cerrado é um bioma estratégico, mas que está sendo negligenciado”, alerta Julia Shimbo, coordenadora científica do Mapbiomas. “Precisamos manter a vegetação que resta por questão de segurança hídrica e energética nacional”.

“Por ironia, precisamos equilibrar produção e conservação em nome da própria sobrevivência da agricultura, que depende de chuvas”, acrescenta Shimbo.

Marcos Beltrão é documentarista e vem registrando o desaparecimento de riachos em Correntina, onde vive, e o rebaixamento do aquífero Urucuia. Ele alerta que, com a moratória voltada para a  Amazônia, a devastação apenas mudou de lugar. “Infelizmente, salvar a Amazônia custou o Cerrado. O governo federal jogou o agronegócio para cá!”, critica Beltrão.

Um homem segura uma planta em sua mão no Cerrado.
Para Marcos Beltrão, o Cerrado tem sido negligenciado pelo governo federal e sido explorado pelo agronegócio (Imagem: Lilian Caramel)

Inakake, do Imaflora, lembra que, embora de extrema importância, a discussão de pactos intersetoriais está parada. Segundo ele, os setores produtivo e exportador da soja continuam refratários à extensão da moratória para o Cerrado e o Gran Chaco, outro bioma ameaçado.

Bernardo Pires, gerente de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal (Abiove), que representa 13 tradings de soja, explica que o setor propôs, em vez da moratória, um pagamento por serviços ambientais ao produtor. “[Seria] algo em torno de US$ 200 por hectare ao ano, no qual, quem conserva, ganha. Isso seria mais fácil e eficiente do que uma nova moratória”, defende.

Em 2017, 60 organizações ambientais lançaram o Manifesto Cerrado, pedindo o envolvimento das tradings com o fim do desmatamento, que já era classificado como “grave” por ambientalistas. Em 2020, em apoio ao manifesto, 163 multinacionais, como Tesco, Walmart, Unilever e McDonald’s, cobraram o banimento das compras associadas à devastação. No entanto, não houve avanços.

Precisamos equilibrar produção e conservação em nome da própria sobrevivência da agricultura, que depende de chuva

A Abiove afirmou à época que a demanda era “inviável” e não acatou o pedido. Mas Pires diz que a entidade verifica diariamente as bases de dados públicos, como listas de embargos ambientais do Ibama, órgão federal de fiscalização, e de secretarias estaduais, além do desmatamento pelo Prodes Cerrado, do governo federal. “A checagem envolve 90 mil fazendas mapeadas por polígonos. Caso alguma apresente desconformidade ambiental, o agricultor é bloqueado”, afirma Pires.

A Abiove não divulga, no entanto, quais fazendas são essas ou a quem fornecem. Sem informações, o consumidor brasileiro só consegue verificar, pelo rótulo, qual indústria fabricou seu óleo de cozinha. Daí para trás, nada mais está claro. A plataforma Soja na Linha, do Imaflora, permite acompanhar o andamento dos acordos relacionados somente à Amazônia.

A reportagem solicitou entrevista a sete tradings com operações no país, mas nenhuma aceitou o pedido. A Abiove falou em nome das associadas.

Alta produtividade versus problemas socioambientais

Cocos, no extremo oeste da Bahia, não está na lista dos 61 municípios que o SCF considera de alto risco de desmatamento — as tradings do consórcio centram seu monitoramento nesses locais. Mesmo assim, acumulou 71.3 mil hectares de desmatamento, ou seja, perdeu o equivalente a 451 parques do Ibirapuera, em São Paulo, desde que o agronegócio chegou, na década de 1980.

“A devastação em Cocos é alta. As matas estão indo embora por conta dos empreendimentos agropecuários colossais. Vai virar tudo deserto”, diz Albanir Souza, padre da região que, entre 2011 e 2015, atuou  junto ao Ministério Público Federal para reconhecimento da etnia Xakriabá.

Cerrado Soja povos indigenas desmatamento Amazonia
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O município que ajuda a garantir a alta produtividade da soja no estado coleciona problemas ambientais, fundiários e de direitos humanos. Hoje pároco em Correntina, o religioso chegou a ser impedido de celebrar missas no município e a ser ameaçado por pistoleiros contratados por fazendeiros que queriam se apropriar das terras ocupadas pelos indígenas, segundo ele.

Comunidades Xakriabá vivem nas veredas de Cocos desde 1933, quando migraram da aldeia-mãe, em São João das Missões, em Minas Gerais, fugindo de conflitos com pecuaristas. Na década de 1980, eles começaram a sofrer pressões de fazendeiros que cobiçavam suas terras para o plantio de eucaliptos, o que não deu certo naqueles areões.

Hoje, soja irrigada, milho, café e projetos para pequenas centrais hidrelétricas no rio Carinhanha tiram a paz dos indígenas. Eles não têm, até hoje, seus territórios demarcados, assim como a maioria dos povos indígenas da Bahia, ainda que seja um direito previsto na Constituição brasileira.