Faz quatro dias que Mariana Cristina Lourdes Moreira não consegue comer direito.
Quando ela e seus três filhos pequenos moravam em Santo Antônio de Posse, cidade rural de 23 mil habitantes a cerca de duas horas de São Paulo, a fome estava sempre em sua cola. Moreira, hoje com 25 anos, fazia dinheiro colhendo laranjas em uma fazenda próxima. Em seus melhores dias, ela enchia sete caixas em um turno de dez horas, para o qual ganhava R$ 14 — ou R$ 294 por mês. Com um aluguel de R$ 450, não era nem de perto o suficiente.
Moreira já tinha morado em São Paulo, mas teve que voltar para casa para ajudar sua mãe a cuidar de seu irmão, que tem uma deficiência.
Agora, sentada na mesa de um refeitório no Centro Comunitário São Martinho de Lima, Moreira retira a casca de uma manga para sua filha de 6 anos, Eloá. Seus outros filhos — Eloísa, de 4 anos, e Kaleb, de 2 anos — mastigam pão e bebem leite achocolatado enquanto esperam por ajuda. Uma vez alimentados, Moreira faz sua refeição.
Aqui no centro comunitário, um grupo de voluntários liderado pelo Padre Júlio Lancellotti — que apoia pessoas sem teto e com fome — serve café da manhã sete dias por semana para 700 a 1.000 pessoas, incluindo Moreira, Eloá, Eloísa e Kaleb. Para o almoço, é uma multidão ainda maior.
Alguns que vêm para as refeições gratuitas têm lutado contra a insegurança alimentar durante a maior parte de suas vidas. Outros recentemente se tornaram parte dos mais de 33 milhões de pessoas no Brasil que agora passam fome, depois que a pandemia colocou 377 pessoas desempregadas por hora, somente em seu primeiro ano, e o custo crescente dos alimentos tornou quase impossível sustentar suas famílias.
“Agora só posso comprar metade do que costumava”, diz Moreira. “Muitas vezes tive que colocar as coisas de volta no caixa porque eu não tinha dinheiro suficiente”.
E isso não está acontecendo apenas no Brasil. Em toda a América Latina, famílias estão lutando para colocar alimentos na mesa, apesar do aumento da produção e exportação de commodities da região que alguns dizem “alimentar o mundo”. Depois de tirar lentamente sua população das garras da fome nos últimos 15 anos, a América Latina foi, mais uma vez, engolida pela insegurança alimentar, já que a pandemia, a guerra na Ucrânia e os eventos climáticos extremos mais frequentes pesam muito sobre o que acaba nos pratos das pessoas.
Pandemia aumenta a fome
Quando a pandemia de Covid-19 começou em 2020, quase 3,1 bilhões de pessoas em todo o mundo não tinham condições de ter uma dieta saudável. De acordo com o relatório “State of Food Security and Nutrition in the World”, publicado este ano pela ONU, 117,3 milhões dessas pessoas estavam na América Latina. Isso representa 21% da população da região, e 6,9% a mais do que no ano anterior.
E como os alimentos continuam a se tornar cada vez mais inacessíveis — o relatório observa que o custo de uma dieta saudável aumentará novamente à medida que os preços dos alimentos subirem em 2022 — espera-se que a segurança alimentar e a nutrição adequada, duas questões que já afligem a região, percam ainda mais o controle.
Um total de 45,1 milhões de latino-americanos, ou 7,4% das pessoas que vivem na região, estavam subnutridas em 2020. Nesse mesmo ano, a prevalência de insegurança alimentar moderada e grave — falta de acesso físico, social e econômico a alimentos seguros e saudáveis — atingiu 37,5%. Em 2021, esses números saltaram novamente, atingindo 49,4 milhões de pessoas, ou 8%, e 38,9%, respectivamente.
Mas embora milhões de latino-americanos passem fome — ou estejam cronicamente subnutridos — muitos deles continuam a produzir alimentos para outros.
Banquete para o agronegócio
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, entre outros países da região, continuaram a impulsionar a produção e a exportação de commodities nos últimos anos. No primeiro semestre de 2022, as exportações do agronegócio brasileiro, principalmente de carne, soja e café, totalizaram US$ 79,3 bilhões, um aumento de 29,4% e considerado um novo recorde para o semestre.
Esse crescimento tem sido atribuído principalmente ao aumento dos preços dos alimentos, significativamente afetados pela guerra na Ucrânia, pelo descontrole nas cadeias de produção e pela influência nos preços dos fertilizantes e da energia, bem como pelos efeitos da pandemia.
No Congresso Brasileiro do Agronegócio, de 2018, Alan Bojanic, então representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura no país, disse que o Brasil tinha “condições para ser o celeiro do mundo“, citando o crescimento positivo de seus mercados de grãos e carnes.
A exportação se tornou mais atraente para os produtores de commodities nos últimos anos, pois a desvalorização do real brasileiro trouxe mais competitividade fora do que dentro do país.
As exportações do agronegócio argentino também trazem mais dólares do que nunca. O relatório da Bolsa de Valores de Rosário (BCR), principal mercado agrícola do país, diz que a agricultura contribuiu com US$ 65 de cada US$ 100 exportados no primeiro semestre de 2022. No total, um recorde de US$22 bilhões foi trazido ao país nesses seis meses através da exportação de grãos, cereais e subprodutos.
Produzimos alimentos para 400 milhões de pessoas, mas parece que nenhuma delas vive aqui
Mas, como no resto da América Latina, a insegurança alimentar, a subnutrição e a fome continuam a crescer na Argentina.
Problemas estruturais, a inflação desenfreada que já atingiu 70% ao ano, a alta concentração do mercado na indústria alimentícia e uma macroeconomia fraca são apenas alguns dos fatores que ajudam a explicar como um país com tanta riqueza no agronegócio pode lutar para alimentar sua própria população.
“Produzimos alimentos para 400 milhões de pessoas, mas parece que nenhuma delas vive aqui, onde há cada vez mais pessoas pobres”, diz Enrique Martínez, coordenador do Instituto de Produção Popular. “É um grande paradoxo”.
Lares vulneráveis
Leidi Cuevas tem 29 anos, três filhos e um marido que acabou de perder o emprego. Ela vive no sudoeste da cidade de Rosário e, desde o início da pandemia, está a cargo de uma cozinha comunitária que antes servia 200 famílias. Agora, ela fornece refeições para mais de 600 famílias.
“Mais e mais pessoas estão chegando, facilmente dez ou 15 novas famílias por semana procurando um prato de comida ou algo para lanchar”, diz Cuevas, acrescentando que, agora que seu parceiro está desempregado, ela “sente na pele o que é não ter dinheiro para comprar comida”.
Para Cuevas, o preço dos alimentos “é uma loucura”. “A carne é um privilégio que nós não temos”, diz ela. “Quase nunca temos fruta, talvez laranjas, se nos derem alguma”.
Na cozinha comunitária, há duas panelas — uma de 100 e outra de 50 litros — cheias com arroz, macarrão, além de tomate enlatado. Quando dão sorte, servem frango.
“Me sinto impotente e triste, porque quando meu marido estava trabalhando, podíamos comprar o que queríamos”, diz ela. “Agora tudo é muito mais difícil. Há desigualdade demais neste país”.
No Brasil, Moreira tem enfrentado desafios semelhantes.
Quando não estava colhendo laranjas, ela fazia bicos na limpeza para tentar pagar as contas, mas não era o suficiente para manter a comida na mesa.
Agora que está de volta a São Paulo, ela tem menos preocupação que seus filhos passem fome, graças aos voluntários. Ela já reservou um lugar para os quatro viverem em uma comunidade de posseiros de cerca de cem pessoas, bastando atravessar a rua do centro comunitário.
“Há espaço suficiente para tudo o que precisamos”, diz Moreira, acrescentando que lhes foram doados colchões para dormir. “Agora só preciso comprar alguns pregos e economizar R$ 50 para pagar um dos homens de lá para me ajudar a erguer as paredes”.
Como uma mulher negra que trabalha em empregos informais e tem filhos, Moreira representa todos os setores da população mais afetados pela fome no país.
De acordo com um estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa sobre Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), a fome entre a população negra do Brasil aumentou 70% entre 2020 e 2022. O relatório, intitulado “Olhe para a Fome”, também destaca que os lares liderados por mulheres foram mais afetados do que os liderados por homens, com o percentual desses lares passando de 11,2% para 19,3% nos últimos dois anos.
Para os lares com crianças menores de 10 anos, a fome dobrou, atingindo 18,1% este ano. A fome também é maior nos lares onde o responsável está desempregado (36,1%), trabalha na agricultura em pequena escala (22,4%), ou tem um emprego informal (21,1%).
Bem-estar que não alivia a insegurança
Em São Paulo, Moreira passa o dia viajando no metrô da cidade, vendendo chicletes e doces aos passageiros nos trens lotados. Ela poderia se juntar aos muitos brasileiros que vendem produtos similares nos semáforos, mas ela se preocupa com a segurança de seus filhos nas movimentadas ruas da cidade.
Algumas pessoas são gentis, diz ela, e lhe dão dinheiro extra quando vêem as crianças. Um homem que ela conheceu lhe ofereceu para limpar três casas que ele planejava alugar. Emocionada por ter trabalho suficiente para pagar a instalação de sua casa, ela aceitou. Mas quando ela terminou, o homem lhe disse que não tinha dinheiro para lhe pagar. Ela saiu sem nada, sem saber como compensar o tempo que havia passado no trabalho não remunerado.
Moreira sonha em encontrar um emprego estável para que ela possa dar mais estabilidade a seus filhos. Atualmente ela recebe o Auxílio Brasil, de R$ 600 reais por mês, lançado pelo governo federal após o desmantelamento do Bolsa Família. Mas Moreira vive com um medo constante de que o benefício seja reduzido ou cortado.
“Ajuda com algumas coisas, como fraldas e outros itens para as crianças, mas ainda não cobre tudo o que elas precisam”, diz ela.
De acordo com o estudo da Rede Penssan, a insegurança alimentar moderada e grave cresceu nos últimos dois anos, mesmo para aqueles que recebem o benefício. Para 32,7% das famílias que recebem o Auxílio Brasil e ganham menos da metade do salário mínimo do Brasil — de R$ 1.212 reais — por pessoa em sua casa, a fome ainda é uma realidade.
Para quem está na Argentina, não é diferente.
Victoria Clérici é uma das líderes de uma associação argentina de recicladores informais, um trabalho que, segundo ela, está se tornando cada vez mais popular e que é realizado atualmente por 300 mil pessoas em todo o país.
Carne e frutas, diz ela, são em sua maioria compras “impossíveis” para as pessoas que vivem nos bairros da classe trabalhadora da Argentina.
Os alimentos nestes bairros são mais caros, não há tanta variedade e não há supermercados que possam vender coisas mais baratas
“Agora compramos os cortes mais baratos de carne, o que costumávamos dar aos cães”, diz ela. “O frango é mais consumido porque é mais barato, então podemos pelo menos acrescentar algo ao guisado”.
Segundo Clérici, os bairros na periferia das grandes cidades argentinas sofrem muito mais com a inflação do que os setores mais abastados, pois têm menos acesso às grandes lojas que têm o suporte financeiro para oferecer promoções.
“É incrível, mas a comida nestes bairros às vezes é mais cara, não há tanta variedade e não há supermercados que possam vender coisas mais baratas”, diz ela, observando que o que a maioria das pessoas pode se dar ao luxo de comprar não é saudável. “Mesmo a comida que chega como ajuda estatal é toda seca e pobre em proteínas”.
No Brasil, itens em uma cesta básica típica — como arroz, feijão, massa, farinha e açúcar — também não fornecem refeições completas e saudáveis para aqueles que os recebem. Mas, para Moreira, a caixa seria uma ajuda bem-vinda.
Ela e seus filhos comem no centro comunitário todos os dias enquanto trabalham para economizar os R$ 50 que ela precisa para terminar de montar seu novo lar. Ela já está trabalhando para matricular suas duas meninas na escola agora que elas se mudaram (seu filho ainda é muito novo), e ela espera encontrar um emprego estável para poder colocar comida na mesa, deixando mais espaço no centro para outros que precisam da ajuda dos voluntários.
“Eu quero ficar por minha conta”, diz ela. “Sempre trabalhei muito, mas já não é mais o suficiente. Não importa o que eu faça, a fome está sempre presente”.