Milhares de nicaraguenses foram às ruas, na sexta-feira (22), para protestar contra a proposta construção de um canal transoceânico e a resposta insatisfatória do governo à seca que aflige o país. Foi a quarta demonstração organizada contra a infraestrutura do megaprojeto, e coincidiu com a divulgação de um novo relatório revelando toda a extensão da crise de água que atinge o país. Em meio a gritos de “Não ao canal” e “Fora chineses”, um número estimado de 15 mil a 20 mil manifestantes, a maioria habitantes rurais e indígenas, marcharam para a cidade de Nueva Guinea, na Região Autônoma da Costa Atlântica Sul, local do trecho terrestre mais longo do canal. O protesto pacífico ocorreu poucos dias depois de ter sido rejeitada pela Assembleia Nacional nicaraguense uma iniciativa dos cidadãos para revogar uma lei, de 2013, concedendo ao empreendedor imobiliário chinês Wang Jing o direito de construir e operar o canal. No mesmo dia, um relatório divulgado por um grupo de 15 ONGs, intitulado Crise socioambiental da Nicarágua: Seca pós-2016 (em espanhol), informou que a escassez de água na Nicarágua já afeta até 48% das comunidades rurais agora que os pântanos, rios e lagos do país estão secando como resultado das mudanças climáticas. Segundo o relatório, a destruição das florestas e outros ecossistemas é culpada pela queda nos níveis hídricos, que já coloca em risco a segurança alimentar e está causando conflitos sociais. “Estamos diante da mais profunda crise ambiental da história recente”, disse Victor Campos, um dos autores do relatório, numa coletiva de imprensa. “A situação prova que não estamos fazendo as coisas corretamente no país”, acrescentou Campos, pedindo ao governo que proteja melhor o meio ambiente e os recursos do país. O relatório também apela aos nicaraguenses para que protejam ativamente os recursos terrestres e hídricos e denunciem os crimes ambientais. Além de atravessar ecossistemas terrestres muito sensíveis, a hidrovia proposta de 278 km iria atravessar o Lago Nicarágua, com um impacto devastador e “irreversível” sobre os ecossistemas aquáticos nesse lago, a maior reserva de água doce da América Central. Medidas paliativas? No início do mês, a HKND concessionária do canal anunciou um plano para plantar meio milhão de árvores ao longo da rota do canal a fim de manter os níveis de água elevados. A reflorestação ocorrerá sobretudo em torno da cidade de Brito, na costa atlântica sul, na reserva Índio Maíz, nas proximidades e na zona pantaneira de San Miguelito, na margem leste do Lago Nicarágua. Segundo Bill Wild, conselheiro sênior da HKND no projeto do canal, o plano de reflorestamento é o maior já visto nessa região da América Central e representa a maneira “mais fácil e mais barata” de conservar água. A primeira fase, programada para coincidir com a estação das chuvas, que começa no mês que vem, consiste no plantio de 250 mil árvores. Não se sabe que tipo de árvores serão plantadas, nem de que maneira as florestas serão geridas no futuro – fatores que, segundo os conservacionistas, serão cruciais para garantir a sobrevivência das plantas. Aumenta a tensão acerca da água e dos direitos O descontentamento vem aumentando na Nicarágua. Sexta-feira foi o protesto número 74 expressando o sentimento popular contra o governo desde que Wang recebeu a concessão do canal, em 2013. O país é o segundo mais pobre do hemisfério ocidental e vem sendo assolado pela seca. “Os poços secaram”, disse a manifestante Reyna Sosa à revista Confidencial durante a marcha. “Não temos água nem para tomar banho… Precisamos comprar galões de água por dois ou três pesos.” Embora os protestos da semana passada tenham ocorrido sem incidentes graves, cresce a preocupação das organizações internacionais com a aparente politização das instituições do país. Poucas horas antes da marcha, a Anistia Internacional emitiu uma declaração pública pedindo ao governo nicaraguense que garanta aos cidadãos o direito de protestar. “No passado, manifestantes foram impedidos de exercer seu direito ao protesto pacífico, sofrendo agressões, ameaças e detenções arbitrárias por parte de agentes estatais e não estatais, em mobilizações anteriores”, dizia a declaração, em referência aos bloqueios policiais armados no terceiro protesto de âmbito nacional contra o canal, realizado em outubro do ano passado. A Anistia Internacional também pediu ao governo da Nicarágua que ouça tanto nas ruas, como no parlamento, as comunidades rurais cujos direitos e meios de sobrevivência serão afetados pela construção do canal. Manifestantes em Nueva Guinea marcharam com slogans exigindo que a lei do canal (Lei 840) seja revogada. Uma proposta lançada por iniciativa dos cidadãos para revogar a lei 840 foi rejeitada pelo primeiro secretário da assembleia geral do país, em 11 de abril, com o fundamento de que a Assembleia não tem alcance jurídico para debatê-la. A decisão foi depois confirmada pelo órgão que governa a Assembleia (Junta Directiva). Mónica López Baltodano, advogada da iniciativa, disse recentemente ao Diálogo Chino que a recusa da Assembleia Nacional de debater a lei foi “totalmente ilegal”.