Uma antiga lenda Guarani conta a história de um jovem indígena que parte em uma expedição pela floresta do Chaco apenas com um pedaço de bambu e uma cuia conhecida como “mati”. Após se perder na mata fechada, ele encontra as folhas de uma planta que, ao serem misturadas com água na cuia, formam uma bebida poderosa que lhe dá energia para continuar o caminho.
Hoje, essa infusão com folhas secas e moídas da erva-mate (Ilex paraguariensis) é uma das bebidas típicas mais consumidas na América do Sul.
A preparação do mate varia conforme o país: argentinos e paraguaios geralmente preferem uma moagem mais grossa; para os uruguaios, a infusão é mais fina e com folhas picadas; no Sul do Brasil, o chimarrão geralmente é servido em uma cuia maior e a bebida é compartilhada.
Apesar das diferenças, todos esses países guardam algo em comum: o mate é o combustível para longos dias de trabalho ou estudo — e, não à toa, a seleção argentina de futebol fez questão de levar a erva para a Copa do Mundo de 2022.
Sua popularidade impulsiona uma indústria de US$ 2 bilhões por ano. Além da infusão tradicional, a erva-mate está cada vez mais presente em bebidas energéticas, cosméticos, barras de cereais, sorvetes e vermutes, entre outros produtos.
Porém, à medida que o clima extremo traz estragos e transformações à agricultura do Cone Sul, o panorama da produção de erva-mate, atualmente liderada por Argentina, Brasil e Paraguai, está prestes a mudar.
Em 2023, a Argentina foi a maior produtora da erva-mate, com 982 mil toneladas, seguida pelo Brasil (736 mil toneladas) e pelo Paraguai (160 mil toneladas), conforme dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
No Uruguai, por sua vez, o desmatamento levou ao quase desaparecimento da planta em meados do século 20. O país hoje não produz grandes quantidades de mate e importa a maior parte de vizinhos para suprir um consumo de 10 kg per capita da planta por ano, mais que qualquer outro país no mundo.
Um estudo brasileiro publicado em 2024 indica que as emissões de gases do efeito estufa podem deslocar as áreas cultiváveis de erva-mate no Cone Sul nas próximas décadas. A pesquisa projeta uma redução das áreas próprias no Paraguai e no Brasil, e uma estabilidade ou expansão no Uruguai, a depender dos cenários climáticos.
Guilherme Botega, pesquisador do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul e um dos autores da pesquisa, disse ao Dialogue Earth que o cenário mais pessimista de emissões levaria o Uruguai a se consolidar como um “centro estratégico para o cultivo de erva-mate nas próximas décadas, principalmente se investir em tecnologias adaptativas e políticas para promover a produção”. Ainda assim, ele alertou que “esse potencial está fortemente condicionado ao grau de aquecimento global”.
No início do próximo século, considerando o pior cenário de emissões, o sul do departamento uruguaio de Río Negro se tornaria apropriado ao cultivo de erva-mate, juntamente com uma parte da província de Buenos Aires, na Argentina, e parcelas nos estados de Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Hoje a Argentina lidera em área cultivada, com mais de 230 mil hectares de erva-mate. O Brasil vem na sequência, com pelo menos 85 mil hectares (sem incluir a parcela de vegetação silvestre), enquanto o Paraguai tem 40 mil hectares. Por enquanto, o Uruguai tem uma produção artesanal, sem estatísticas detalhadas.
A erva-mate, que antes crescia de forma natural no Uruguai, praticamente desapareceu em meados do século 20. O processo foi impulsionado pelo desmatamento associado a obras de infraestrutura, pela introdução de espécies exóticas destinadas à produção de celulose e pela expansão da pecuária.
Mas nos últimos anos, iniciativas vêm recuperando a erva-mate no Uruguai. Além do consumo próprio, o cultivo comercial vem se expandindo. O Dialogue Earth visitou pequenos produtores no país e conversou com representantes do setor na Argentina sobre a adaptação da produção frente às mudanças climáticas.
Projeto Ambá
O dia começa cedo nos morros do departamento de Rocha, no leste uruguaio, a cerca de 300 metros acima do nível do mar. A densa neblina da manhã se confunde com a fumaça de uma fogueira, preparada para torrar cerca de 30 kg de folhas de erva-mate.
“Sapecar” significa “abrir os olhos” em guarani e é um termo usado no país para se referir à secagem e torrefação das folhas. Esse processo é conduzido por um projeto apoiado pela organização Ambá, dedicada à restauração de ecossistemas.
No centro de regeneração de sete hectares da Ambá, já foram encontradas mil árvores de Ilex paraguariensis crescendo espontaneamente em encostas com floresta nativa. Isso ocorre graças a pássaros que comem e espalham suas sementes vermelhas, parecidas a grãos de café.
“Enquanto colhíamos folhas no campo, um dos proprietários nos disse que tinha visto uma nova árvore. Ele nos levou para vê-la e, caminhando pela área, encontramos mais dez que não tínhamos contabilizado. Isso é pura dispersão de sementes”, explicou Talía Zamboni, coordenadora de restauração ecológica da Ambá.
O grupo organiza atividades abertas à comunidade, nas quais exploram a área por meio de trilhas e colocam a mão na massa para transformar as folhas em erva-mate —- atividade interrompida apenas por alguns goles de mate ao longo do caminho.
Impacto da silvicultura e pecuária
Na natureza, a erva-mate pode atingir de dez a 30 metros de altura, com troncos de até 80 centímetros de diâmetro. Mas em plantações comerciais elas costumam ser podadas pequenas para facilitar a colheita.
A espécie se desenvolve melhor em regiões com uma temperatura média anual entre 15 °C e 25 °C e precipitação superior a 1.200 mm. A planta também é sensível à luz solar direta.
Entre os produtores mais conhecidos, estão o projeto I Porá, no departamento de Maldonado, e na região de Quebrada de los Cuervos, liderada por Alberto Demichelli, considerado um dos pioneiros na reintrodução da espécie no país.
Outro pioneiro é o agrônomo Raúl Nin, que produz mudas em seu viveiro, batizado de Ca’aguigua — ou “morador da floresta” em guarani —, na cidade costeira de La Paloma. Esse espaço de 1600 metros quadrados abriga mais de 200 espécies, requisitadas por produtores locais.
Ele destaca que a erva-mate foi afetada pelo avanço da silvicultura no Uruguai, importante atividade econômica e setor de exportação do país, levando 6% do território nacional a ser ocupado por monoculturas de eucalipto e pinheiro. Além disso, o avanço da pecuária modificou o solo uruguaio.
Assim como Nin e a Ambá demonstram o potencial da produção artesanal de erva-mate integrada aos ecossistemas locais, grandes produtores na Argentina começam a reconhecer a necessidade de adotar novas práticas diante da crise climática.
“Precisamos regenerar sistemas de produção que se assemelhem a seus ambientes naturais”, disse Verónica Scalerandi, vice-diretora da área técnica do Instituto Nacional da Erva-Mate (INYM), na província de Misiones.
A agrônoma reconheceu que o estudo de seus colegas brasileiros “convida à conscientização” e afirmou já ter presenciado alguns dos cenários projetados, como as secas severas de 2021 e 2022.
Scalerandi afirmou que o problema se agrava pela forte degradação dos solos, limitando que a água chegue às raízes das plantas.
Uma pesquisa do INYM acessada pelo Dialogue Earth mostrou que quase 80% dos solos de erva-mate da Argentina estão degradados. Com isso, menos de 60% da chuva consegue, de fato, alcançar as raízes das plantas.
“Temos médias de produção muito baixas, o que mostra que algumas culturas estão muito degradadas e produzindo muito pouco”, disse ela. “Mas às vezes você vai a um campo onde um produtor está fazendo as coisas certas e tem bons resultados”.
A erva-mate é uma oportunidade para nossa ecorregião. É uma cultura nativa que pode ser cultivada por meio do manejo eficiente da cobertura natural do soloVerónica Scalerandi, vice-diretora da área técnica do INYM
Apesar dos desafios, Scalerandi mantém o otimismo. Ela ressaltou que a erva-mate, espécie nativa da ecorregião remanescente da floresta do Paraná, se adapta bem à sombra e pode ser cultivada em convivência com a cobertura arbórea, aproveitando até plantas consideradas ervas daninhas.
Para ela, a sustentabilidade do setor depende menos do aumento da produção e mais da criação de sistemas resilientes ao clima, com foco na proteção do solo — fator que considera decisivo para garantir a produção no longo prazo. “A erva-mate oferece uma oportunidade para nossa ecorregião”, ressaltou.



