Um galpão com o teto desabado, que antes abrigava 500 suínos de corte, não deixa o criador Gustavo Lorenzon se esquecer da enchente catastrófica de maio de 2024, no Rio Grande do Sul, estado do extremo sul do Brasil. Um ano depois, ele ainda não tem recursos para consertá-lo, mesmo que isso represente uma redução de 30% em seu faturamento anual. “Uma reforma ia custar caro e achamos prudente aguardar. Não é hora de fazer mais uma dívida”, disse Lorenzon ao Dialogue Earth em abril.
Terceira geração de uma família de suinocultores, Lorenzon disse que, em 2022, investiu R$ 1,3 milhão para modernizar seus pavilhões. O crédito rural do governo previa dois anos de carência, que ele começou a pagar em 2024. Porém, as cheias daquele ano derrubaram drasticamente sua produção, forçando-o a apertar o orçamento familiar. “Tiramos do nosso próprio salário para honrar a parcela de R$ 210 mil anual”, explicou Lorenzon.
Há um ano, chuvas torrenciais provocaram a pior tragédia climática da história do estado. O Vale do Taquari, onde fica a granja dos Lorenzon, foi uma das regiões mais afetadas pelo transbordamento do rio homônimo e seus afluentes e por deslizamentos de encostas.
O desastre, provocado pelo fenômeno El Niño e agravado pelas mudanças climáticas, arrasou a agropecuária gaúcha. Dados da Emater, a agência federal de assistência técnica rural, mostram que 206 mil propriedades perderam lavouras, animais e instalações.
O fenômeno climático La Niña provoca resfriamento anormal das águas do Oceano Pacífico, intensificando os ventos e alterando o regime de chuvas no país. Com isso, entre 2020 e 2023, a região Sul, sobretudo o estado do Rio Grande do Sul, vivenciou três anos subsequentes de secas, enquanto as regiões Norte e Nordeste do país enfrentaram o aumento das chuvas.
Com a chegada do El Niño, fenômeno oposto, esse cenário mudou a partir de 2023. O aquecimento do oceano, intensificado pelas mudanças climáticas, impulsionou ventos e fortes chuvas que causaram quatro grandes enchentes no Sul do Brasil — em junho, setembro e novembro de 2023 e em maio de 2024.
Em 2024, a equipe do Dialogue Earth percorreu as regiões mais afetadas pelas chuvas — as planícies dos vales do Taquari e Caí e da Região Metropolitana de Porto Alegre — e se deparou com perdas devastadoras, histórias de resistência e pedidos urgentes de apoio.
Ao retornar quase um ano depois, a equipe encontrou agricultores traumatizados, endividados e com medo de investir em sua produção diante dos extremos climáticos.
“Fiquei limpando a casa, consertando as coisas, vendo como retomar a produção porque não queria parar para pensar no que havia ocorrido”, narrou a agricultora Roselei dos Santos Porto, com um jeito sôfrego como se estivesse revivendo o ocorrido.
Por 15 dias, a casa e a plantação de hortaliças da família Porto permaneceram debaixo d’água no assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no município de Eldorado do Sul.
A 150 quilômetros a norte dali, no município de Encantado, o agricultor Mauro Vieira Marques e sua esposa, Ivete Justina, passaram um ano diante das árvores tombadas e da terra revirada pela força da enchente em sua propriedade. Apenas em abril deste ano que a prefeitura enviou máquinas para nivelar o terreno e remover os entulhos.
Agora, eles planejam replantar o pomar com laranjas-do-céu, limas, mamão e caqui. Depois da tragédia, apenas uma bananeira sobreviveu.
A correnteza também destruiu as instalações onde o casal produzia queijos artesanais e ovos para vender na feira local. Elas não foram reconstruídas. “Só consegui plantar abóboras, alguns temperos e uns pés de milho para fazer farinha. Estamos voltando aos pouquinhos”, disse Marques.
Para complementar a renda, Justina começou a trabalhar como cuidadora de idosos. O casal ainda mora na casa que foi inundada, restaurada com o apoio de doações, mas aguarda apoio público para construir uma nova residência em uma colina.
Como tornar setor resiliente ao clima
Um ano após as chuvas, a perplexidade persiste entre os moradores da região e nubla o enorme desafio de tornar a agropecuária local resiliente aos extremos climáticos. Depois da enchente, o ano de 2025 trouxe outro desafio: o solo quebradiço por falta de água. Sob efeito do fenômeno La Niña, a estiagem e as ondas de calor levaram 60% dos municípios do Rio Grande do Sul a decretar situação de emergência.
A alternância entre estiagens e enchentes tornou-se parte da realidade do Rio Grande do Sul — um dos maiores produtores de arroz, soja e suínos do país — desde 2020. A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) estima que a agropecuária gaúcha tenha perdido mais de R$ 106 bilhões com a seca entre 2020 e 2024.
Especialistas ouvidos pelo Dialogue Earth concordam que esse debate ainda não foi levado suficientemente a sério pelo governo estadual. “A partir de um certo momento, houve uma naturalização da hecatombe que sofremos”, disse Sérgio Schneider, professor da pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Schneider apontou que a reabertura do aeroporto em 21 de outubro de 2024 — após sete meses fechado por impactos das chuvas — trouxe a sensação de que tudo havia voltado ao normal, de que a enchente fora apenas um evento excepcional, e “não parte do novo normal”.
Diante da dimensão da tragédia no Rio Grande do Sul, espera-se que o tema esteja na pauta da conferência climática COP30, marcada para novembro em Belém do Pará. Segundo Schneider, o desastre pode servir de exemplo para compartilhar aprendizados e reforçar a urgência de ações que envolvam justiça climática, financiamento para perdas e danos e apoio a comunidades vulneráveis. Mas ele diz que o estado perdeu a chance de se tornar um exemplo de governança climática na cúpula da Amazônia.
“Não aprendemos a lição”, disse Schneider. “Poderíamos ter feito muito mais e melhor, como criar uma secretaria de Mudanças Climáticas, que reunisse academia, governo e empresas para planejar políticas públicas, mas essas instâncias ainda não estão alinhadas”.
Schneider compara a inação no Rio Grande do Sul à das próprias COPs: há boa vontade e massa crítica, mas o que prevalece é a “procrastinação”. “Estamos lidando com uma emergência de forma muito lenta”, afirmou ele, que também é consultor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura.
O governo gaúcho informou ao Dialogue Earth que até criou um comitê de cientistas para assessorar a Secretaria de Reconstrução na análise de projetos de resiliência climática — entre eles, uma proposta de gestão hídrica para reduzir os impactos de secas e enchentes constantes. O projeto, no entanto, ainda está em fase de elaboração.
Além de garantir a produção de alimentos, algo vital e estratégico para o país, é essencial repensar o modelo agrícola para que o Brasil cumpra suas metas de redução de emissões: hoje, a agropecuária responde por quase 74% das emissões do país, principalmente devido à conversão do solo em monoculturas, segundo o Observatório do Clima.
O manejo inadequado reduz a capacidade do solo de reter carbono e transforma a terra em um agente da crise climática. Um estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia mostra que solos cultivados por mais de uma década com uma única espécie perdem 38% de seus estoques de carbono — o dobro da perda sofrida pelos solos que enfrentam queimadas recorrentes.
“Não adianta termos plantas mais resistentes à seca se não fizermos o manejo correto do solo”, disse a agrônoma Francislene Angelotti, pesquisadora especializada em mudanças climáticas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Ela cita técnicas como a alternância de culturas para preservar nutrientes, o plantio de diferentes espécies no mesmo espaço, a cobertura do solo com restos de plantas para conservar a umidade e o cultivo sem arar a terra, para evitar a perda de nutrientes.
Segundo a pesquisadora, o Brasil já tem uma política capaz de dar conta desse desafio, traduzida no plano ABC, sigla para Agricultura de Baixa Emissão de Carbono.
O governo estadual disse ao Dialogue Earth estar comprometido com o Plano ABC e tem equipado técnicos para medir as emissões das lavouras – e planejar a redução. No entanto, o grave endividamento no campo gaúcho tem adiado essas ações de longo prazo.
‘O problema do campo é financeiro’
Após a tragédia de 2024, o Rio Grande do Sul angariou bilhões para sua reconstrução. Na época, o Congresso Nacional suspendeu por três anos a cobrança de R$ 11,7 bilhões em dívidas do estado com a União. A maior parte dos recursos até agora foi investida no apoio emergencial às vítimas e na construção de novas casas e obras de infraestrutura — dez pontes tombaram, mais de oito mil quilômetros de estradas foram danificados, e houve prejuízos à malha hidroviária.
O governo federal também depositou R$ 6,5 bilhões para obras de adaptação às mudanças climáticas, como a construção de diques contra as cheias nas áreas mais vulneráveis. Até o momento, o governo de Eduardo Leite abriu a licitação do primeiro projeto para Eldorado. No entanto, os diques não chegam até o bairro onde ficam os sete assentamentos do MST, e agricultores relatam viver com medo sempre que o nível do rio sobe.
“Corremos não apenas o risco de perder nossa produção, mas de perder nossa vida”, disse Marcia Riva, produtora agroecológica de cogumelos shimeji e sócia da agroindústria Pão na Terra, sediada no mesmo assentamento do MST da família Porto.
Quando as águas da enchente baixaram, restaram fendas nos morros, o solo rachado e agricultores endividados e sem saber como retomar a produção. Com apoio dos irmãos e recursos arrecadados pelo próprio MST, Riva reconstruiu a cozinha industrial para fabricar pães e bolos. A estufa de shimeji, no entanto, voltou menor.
“Não tenho como investir mais”, disse ela. “Não acessamos nenhuma política pública porque ainda estamos em uma área que pode ser alagada novamente”, disse, referindo-se à precariedade na infraestrutura de proteção contra cheias que, um ano depois, pouco saiu do papel.
Em 2024, um comitê formado por ministérios em Brasília renegociou 140 mil contratos de crédito do Pronaf e do Pronamp — programas federais voltados à agricultura familiar e a médios produtores — com descontos que chegaram a quase R$ 1 bilhão. No entanto, os agricultores e os técnicos da Emater ouvidos pelo Dialogue Earth sustentam que a ajuda financeira continua aquém do necessário.
O governo gaúcho estima que as dívidas dos produtores locais com vencimento em 2025 alcancem R$ 28 bilhões. “O maior problema do campo agora é financeiro”, disse Márcio Madalena, secretário adjunto da Secretaria Estadual de Agricultura. “A próxima safra [entre 2025-26] nos preocupa muito”.
O governo do estado também sugeriu ao Ministério da Fazenda o uso do Fundo Social do Pré-Sal, criado para distribuir parte das receitas do petróleo das camadas profundas do pré-sal em áreas como saúde, educação e combate à pobreza, mas que também prevê apoio a estados afetados por eventos extremos. Os recursos do fundo estão disponíveis e não gerariam impacto fiscal. As negociações, porém, ainda não avançaram, segundo Madalena, e a recuperação do setor segue em risco.
Para a agricultora Riva, mais do que as dívidas, é o trauma dos agricultores que demanda maior atenção: “Estamos ainda muito abalados. Ainda bem que somos um grupo unido, mas precisamos de toda ajuda possível”.
A maioria dos produtores entrevistados pelo Dialogue Earth disse ter precisado de medicação psiquiátrica para ansiedade e depressão após a tragédia de 2024. Um estudo recente publicado na Lancet aponta que eventos climáticos extremos estão ligados ao agravamento da saúde mental — impacto ainda maior entre populações de baixa e média renda, como grande parte da população latino-americana.
Paisagem transformada
Na zona rural, a paisagem começa a se transformar após a tragédia de 2024. No Vale do Taquari — onde predominam pequenas propriedades, em média de 16 hectares — as lavouras de milho e hortaliças estão sendo recuadas das margens dos rios e afluentes, por orientação dos técnicos da Emater.
A ideia é não usar mais a área inundada e deixar a mata ciliar se recompor. A natureza já nos deu uma lição do que não fazerCristiano Carlos Laste, gerente da Emater em Lajeado
O desmatamento das encostas contribuiu diretamente para agravar a tragédia, segundo uma análise de Eduardo Vélez, da plataforma Mapbiomas, compartilhada com o Dialogue Earth. A Bacia Hidrográfica do Guaíba, onde se concentraram os maiores prejuízos da enchente, perdeu 26% da vegetação nativa desde 1985. A redução da cobertura dificultou a infiltração da água no solo e facilitou seu escoamento, aprofundando os impactos.
“A ideia é não usar mais a área inundada para deixar a mata ciliar se recompor”, disse Cristiano Carlos Laste, gerente da Emater no município de Lajeado. “A natureza já nos deu uma lição do que não fazer”.
A cadeia leiteira da região, duramente afetada pela enchente, não se recuperou. Propriedades que perderam total ou parcialmente suas instalações deixaram de criar vacas leiteiras. As áreas foram convertidas para o cultivo de grãos e folhas forrageiras, para alimentar o rebanho de fazendas menos atingidas.
A médio prazo, Emater e Embrapa planejam implantar Unidades de Referência Tecnológica (URTs) nas regiões mais afetadas. As URTs funcionam como propriedades-modelo, onde são testadas práticas agrícolas sustentáveis e adaptadas ao clima. O objetivo é promover o diálogo com os agricultores e incentivar a construção de paisagens mais resilientes a eventos extremos.
Para Ernestino Guarino, pesquisador da Embrapa Clima Temperado, o foco nas URTs reflete a necessidade de que a recuperação passe por um redesenho da paisagem rural — “um novo acordo entre homem e natureza”, como define. Ele ressalta, no entanto, que “essa inflexão leva tempo”.
A família Porto, de Eldorado do Sul, conseguiu manter a certificação orgânica da plantação submersa na tragédia de um ano atrás. Segundo os agricultores, análises do solo feitas por professores da UFRGS e técnicos do Ministério da Agricultura e Pecuária não identificaram contaminação por agrotóxicos ou outros resíduos.
Assim, um mês e meio após a enchente, o solo da propriedade já estava pronto para o replantio. “Ganhamos 15 mil mudas de restaurantes parceiros e começamos tudo de novo”, lembra Roselei Porto.
Para garantir a confiança dos clientes, a família expôs os resultados das análises do solo livre de contaminação ao lado dos preços dos orgânicos em uma tradicional feira de Porto Alegre. Sempre que alguém parava na banca, aproveitavam para explicar melhor a situação. “Não imagina a felicidade quando os clientes começaram a voltar”, disse ela.
Mas a retomada logo esbarrou em um novo obstáculo: mais uma estiagem. Nos assentamentos do MST na Região Metropolitana de Porto Alegre, a seca do último verão comprometeu a produção de hortaliças e temperos.
“A impressão que tenho é que não temos mais um ano agrícola completo, plantando o ano inteiro”, comentou a agricultora Marcia Riva, vizinha da família Porto. “Precisamos de novas alternativas de produção e de muita ajuda”.