Energia

Fábrica de painéis solares promete fortalecer renováveis na Argentina

Produção de módulos fotovoltaicos deve começar ainda este ano na província de San Juan, com investimento público e tecnologia importada da China
<p>Funcionário inspeciona laminador na fábrica de painéis solares da Empresa Provincial Societaria del Estado em San Juan, Argentina. Primeira instalação industrial desse tipo na América Latina, a fábrica importa a maior parte de seus materiais da China (Imagem: Matias Avramow)</p>

Funcionário inspeciona laminador na fábrica de painéis solares da Empresa Provincial Societaria del Estado em San Juan, Argentina. Primeira instalação industrial desse tipo na América Latina, a fábrica importa a maior parte de seus materiais da China (Imagem: Matias Avramow)

O engenheiro químico Lucas Estrada está confiante de que a primeira fábrica de painéis solares da Argentina vai entrar em operação ainda este ano. Ele é o presidente da empresa Energia Provincial Sociedad del Estado (Epse), estatal encarregada da gestão da fábrica. A empresa também é responsável por administrar a produção e a distribuição de energia na província de San Juan, no centro-oeste da Argentina.

Em San Juan, a economia está focada na mineração, especialmente de ouro e prata, embora agora haja planos de extrair também minerais críticos para a transição energética, como o cobre. Com pouco mais de 4,8 mil empregos ligados ao setor em 2024, a província ocupou diversas vezes a segunda posição em exportações de mineração entre 2006 e 2023.

O Dialogue Earth conversou com representantes da Epse e do setor de mineração, que enxergam a geração de energia renovável e a fabricação de tecnologia limpa como um forte complemento para a economia na província. “Temos uma das maiores incidências de radiação [solar] do mundo. Podemos virar um polo para o setor de energia renovável”, disse Estrada.

Cerca de 65% da capacidade elétrica instalada de San Juan vem de fontes solares, de acordo com dados da Cammesa, que administra o mercado atacadista de eletricidade da Argentina. O restante está dividido entre projetos hidrelétricos de diferentes escalas e uma única usina termelétrica.

Desde 2017, San Juan passou de importador a exportador de eletricidade. Mas, agora, a província está buscando aumentar ainda mais a oferta — principalmente para abastecer as operações de mineração, que demanda um alto consumo de energia. Isso já era projetado pelo Projeto Solar de San Juan, plano lançado em 2007 pelo governo provincial para aproveitar a vasta radiação solar da área.

Desde então, foram criados um parque eólico, os mapas para avaliar o potencial eólico e solar da província e, em breve, a fábrica de painéis solares. “Transformaremos a economia de San Juan ao investir recursos da mineração em energia renovável”, afirmou Estrada.

Construído em 2011, o San Juan 1 foi um dos primeiros parques solares sul-americanos conectados à rede elétrica
Construído em 2011, o San Juan 1 foi um dos primeiros parques solares sul-americanos conectados à rede elétrica. Atualmente, serve como campo de testes para novas tecnologias solares. Na província argentina de San Juan, pouco mais de 65% da capacidade elétrica instalada é solar (Imagem: Matias Avramow)

Um dos primeiros parques solares sul-americanos conectados à rede elétrica foi construído na província, em 2011. Atualmente, há 21 parques solares em operação e cinco em construção. A maioria deles foi construída junto a empresas privadas: a província doa o terreno, e as empresas constroem e administram as operações. A intenção original da fábrica de painéis solares era que as empresas privadas fornecessem parte da infraestrutura e, assim, reduzissem os custos de expansão da rede em San Juan. Mas, segundo Estrada, a província agora também pretende exportar certos componentes produzidos na fábrica e construir uma relação com parceiros estratégicos, como China, Europa e Estados Unidos.

Fábrica solar de San Juan

A nova fábrica, localizada na capital homônima da província, inicialmente produzirá painéis solares a partir de materiais importados e, depois, fabricará células, lingotes de silício e wafers (biscoitos, em inglês). Os lingotes são as matérias-primas metálicas, cortadas e processadas para formar os wafers. Estes, por sua vez, são organizados em forma de células solares. Cada célula é interconectada para criar um painel fotovoltaico, transformando a luz do sol em eletricidade.

A fábrica em San Juan planeja produzir 800 mil painéis ao ano, com uma capacidade total de 450 megawatts (MW). “Na verdade, nosso plano é dobrar a produção no curto prazo, para nos tornarmos uma gigafábrica”, explicou Estrada. “O prédio foi projetado com espaço suficiente para colocar o dobro do maquinário e atingir um gigawatt (GW) de capacidade em um futuro próximo”.

A fábrica é dividida em dois setores: a instalação de painéis solares e a instalação de lingotes, wafers e células. Em uma visita às instalações em abril, o Dialogue Earth confirmou que a linha de produção estava quase completa. “Estamos testando a qualidade de uma última máquina e ela poderá começar a funcionar em breve”, disse Estrada, acrescentando que a previsão é que isso aconteça em setembro. Anteriormente, a Epse havia anunciado a inauguração para abril. A segunda parte da fábrica, para a produção de células solares, deve ser inaugurada posteriormente.

Equipamentos para fabricação de lingotes, wafers e células solares na fábrica da Epse ainda estão guardados em caixas
Equipamentos para fabricação de lingotes, wafers e células solares na fábrica da Epse ainda estão guardados em caixas. A outra parte da fábrica, onde serão montados os painéis solares com materiais importados, está quase pronta (Imagem: Matias Avramow)

Martin Dapelo, membro do conselho de administração da Câmara Argentina de Energias Renováveis (Cader), observou que a produção de células solares seria uma novidade na região: “Há alguns laminadores no Brasil, mas não conheço nenhuma fábrica de células na América Latina”. Por enquanto, as células solares necessárias para montar os painéis serão importadas principalmente da China. Outros componentes acessórios, como baterias e conversores de corrente elétrica, também serão importados da China.

O projeto solar da Epse e a própria estatal estão intimamente ligados ao papel da China no mercado global de energias renováveis e, particularmente, ao setor de energia solar. San Juan, assim como toda a região, importa os componentes de infraestrutura fotovoltaica quase exclusivamente da China. Cerca de 99% dos painéis solares importados pela América Latina em 2023 tiveram origem no país asiático, conforme a revista The Economist.

A Power China será a principal fornecedora da fábrica em San Juan, explicou Estrada, embora a estatal também compre componentes e equipamentos de outras empresas: conversores de energia da Huawei; sistemas de armazenamento da Risen Energy; e maquinário da ConfirmWa, entre outros. O presidente da Epse acrescentou que, apesar de importar a maioria dos materiais da China, a fábrica ainda pode reduzir o custo do produto final em 10% a 15% em comparação com a importação direta.

A fábrica será quase totalmente automatizada, mas com cerca de 110 trabalhadores. A maioria da equipe será “altamente qualificada em operação, manutenção e programação dos robôs”, acrescentou Estrada, afirmando que a fábrica também criará muitos outros empregos de forma indireta.

Braço robótico de soldador laminador na fábrica de painéis solares da Epse
Braço robótico de soldador laminador na fábrica de painéis solares da Epse. Embora a fábrica seja quase totalmente automatizada, cerca de 110 trabalhadores altamente qualificados serão empregados na operação, manutenção e programação das máquinas (Imagem: Matias Avramow)

A estatal ainda firmou uma parceria com a H2 Gemini, empresa suíça que constrói máquinas para produzir painéis solares. “Tanto a H2 Gemini quanto outros consultores externos [dos Estados Unidos e da Austrália] vieram para cá, e a gente também foi aprender com eles”, disse Estrada. Os funcionários também viajaram para capacitações na China.

Em meio às tensões comerciais globais, a fábrica em San Juan mantém uma relação cautelosa com seus parceiros chineses e norte-americanos. Os componentes e equipamentos da fábrica serão adquiridos principalmente da China, mas a estatal espera assinar acordos com os EUA para importar silício para os lingotes e wafers. “Eventualmente, também pretendemos exportar para os EUA”, disse Estrada. Apesar de reconhecer que eles não podem competir com os preços chineses no momento, ele disse que a guerra tarifária coloca San Juan como um ator estratégico: “Eles precisam de muitas fábricas fora da China e realmente não há muitas fábricas de painéis soolares de alta qualidade”.

Este ano, tanto Estrada quanto o governador da província, Marcelo Orrego, tiveram reuniões com representantes de empresas e de governos da União Europeia, dos EUA e da China. Em maio, Orrego se reuniu com o embaixador da União Europeia na Argentina, Amador Sánchez Rico, e representantes diplomáticos de outros 22 países do bloco, para apresentar a província de San Juan como um polo comercial para setores-chave, enfatizando a eletromobilidade e a transição energética. O governador também se reuniu com diplomatas do governo Trump e foi o único entre seus pares a participar da posse do presidente americano em janeiro.

Para Juliana González Jáuregui, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a criação de laços fortes com a China é mais valioso neste momento. “Os Estados Unidos estão saindo do jogo do lítio na Argentina. Não vejo muitas empresas norte-americanas interessadas em energias renováveis; os EUA exercem muita pressão sobre eles e sobre os países sul-americanos, mas as empresas norte-americanas não oferecem nada em troca”, disse González. “A Power China, por outro lado, tem percorrido as províncias argentinas e oferecido contratos. Ela também oferece preços competitivos, financiamento e capacitação”.

Ligações com a China

Há pouco mais de uma década, a China tem sido um dos principais responsáveis pela queda acentuada dos preços dos painéis solares em todo o mundo. Na virada do século, os painéis custavam US$ 6,41 por watt, mas em 2023 esse valor caiu para US$ 0,31. A partir de 2022, a China concentrou mais de 80% da produção de todos os componentes necessários para a produção de painéis solares, segundo a Agência Internacional de Energia

De 2016 a 2019, a Argentina entrou no mercado fotovoltaico por meio de uma série de licitações abertas pelo governo de Mauricio Macri. “As licitações foram vencidas por várias empresas espanholas, mas também por algumas chinesas. Foi a porta de entrada da China para o setor de energia renovável no país”, explicou González. 

Um exemplo é o Parque Solar Cauchari, na província de Jujuy, concluído em 2019 e 85% financiado por capital chinês.

Em janeiro, a província de San Juan, por meio da Epse, assinou um memorando de entendimento com a Shanghai Electric, subsidiária do grupo Power China. O acordo visava obter um empréstimo com bons termos para financiar sistemas solares, eólicos e de armazenamento, explicou González. O principal objetivo era avançar na construção do parque eólico em Tocota, a 200 quilômetros da cidade de San Juan.

Para González, o interesse da província argentina em fechar negócios com a China é resultado de sua expansão no setoor de energias renováveis. “Vejo a aceleração desse processo como a busca por mercados alternativos aos EUA, considerando a guerra tarifária com Trump”, ponderou.

O interesse crescente em certos mercados estratégicos, como o de energia, também é movimento visto em outros países latino-americanos, como Brasil, Peru e Chile, acrescentou a pesquisadora. “Há uma corrida tecnológica e questões de acesso a recursos que também se aceleram na região”.

González também notou uma significativa influência chinesa em projetos eólicos do país: de acordo com ela, são cada vez mais comuns os contratos de engenharia, aquisição e construção, nos quais empresas como a Power China “basicamente se encarregam de todo o processo de construção e instalação”, explicou.

Esses acordos, no entanto, apresentam algumas desvantagens para a Argentina. “Não há colaboração com empresas argentinas, nem transferência de tecnologia, nem treinamento. A empresa vem, se instala e usa seus próprios materiais”, observou González. Nesse contexto, a fábrica da Epse em San Juan seria um ponto fora da curva, pois “há um processo de aprendizado e transferência de conhecimento”. Além disso, por ser uma instalação totalmente estatal, “a lógica de negociação é diferente dos casos à dos outros contratos”.

Embora a parceria da Epse com a China possa render bons frutos para a província, González ressaltou que os grandes investimentos chineses no setor de energia renovável não significam que o país asiático tenha abraçado unicamente os projetos de baixo carbono. A estatal chinesa PetroChina, por exemplo, também tem planos para se instalar  no campo de petróleo e gás da região de Vaca Muerta, na Patagônia argentina, até o fim do ano.