Uma grande batalha está em curso no setor de veículos elétricos. Em meio à guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, a montadora chinesa Build Your Dreams (BYD) já supera a americana Tesla, sua principal concorrente nessa corrida global.
Em 2024, a BYD vendeu 4,2 milhões de veículos elétricos e híbridos plug-in (com motor elétrico e bateria recarregável a partir de fontes externas), mais do que qualquer outra montadora no mundo, com uma receita anual de 777 bilhões de yuans (R$ 660 bilhões). Já a Tesla — comandada pelo bilionário Elon Musk, ex-funcionário especial do governo dos EUA — vendeu 1,8 milhão de unidades, atingindo uma receita de US$ 97,7 bilhões (R$ 605 bilhões).
O relatório do primeiro trimestre da BYD em 2025 indica que as vendas de veículos elétricos e híbridos cresceram 60% em relação ao mesmo período do ano passado. Isso foi motivado, em certa medida, pelo lançamento de uma nova tecnologia de carregamento, a Super e-Platform: segundo a BYD, uma carga de só cinco minutos pode dar ao carro uma autonomia de 400 quilômetros. Até o momento, a rede Supercharger da Tesla oferecia 75% dessa capacidade em uma carga de 15 minutos.
Nos últimos anos, a BYD deixou de fabricar apenas baterias e colocou a China na liderança da eletromobilidade. Agora, a empresa começa a espalhar suas operações pela América Latina, região que ainda se move no ritmo do diesel e da gasolina.
De baterias a carros elétricos
A BYD surgiu em 1995, inicialmente como fabricante de baterias para telefones celulares. Em 2003, a companhia deu uma guinada decisiva quando o mercado de carros elétricos começou a decolar: a fim de ingressar no novo ramo, a empresa comprou a fábrica da chinesa Xi’an Qinchuan Automobile para projetar seus próprios veículos.
Cinco anos depois, ela surpreendeu a indústria automotiva com o lançamento do F3DM, modelo que a BYD considera o primeiro híbrido plug-in do mundo. Em 2022, ela parou de fabricar veículos convencionais a combustão e concentrou suas operações exclusivamente na produção de veículos elétricos e híbridos plug-in.
Atualmente, a BYD tem mais de 30 parques industriais e atua em aproximadamente 400 cidades em mais de 70 países. O presidente e fundador da empresa, Wang Chuanfu, atribuiu o sucesso da montadora à sua enorme equipe: “Por trás de cada uma de nossas tecnologias, há inovação, desenvolvimento verde e o trabalho árduo de 110 mil engenheiros”, disse ele em fevereiro.
Em entrevista à TV estatal chinesa, Wang afirmou ainda que os veículos elétricos da China estão pelo menos três a cinco anos à frente de seus concorrentes “em termos de produto, tecnologia e cadeia industrial”.
Aposta alta da BYD na América Latina
A BYD quer dobrar suas vendas fora da China para 800 mil unidades em 2025. Sua meta é que quase metade de seus carros seja vendida no exterior.
“As empresas chinesas estão desesperadas para encontrar novos mercados e têm se mexido rapidamente na América Latina”, explicou Ilaria Mazzocco, especialista em política climática chinesa do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington, nos EUA. “O governo chinês tem apoiado esse movimento até agora, mas a América Latina ainda não é um substituto equivalente para o mercado europeu, que é muito maior”, disse Mazzocco ao Dialogue Earth. Desde novembro, os veículos elétricos fabricados na China enfrentam tarifas de até 45% na União Europeia.
A presença da BYD já é perceptível no Brasil: a empresa é responsável por sete de cada dez veículos elétricos vendidos no país, conforme dados do setor. Além disso, a BYD tem testado sua influência junto ao governo brasileiro por meio de um forte lobby para reduzir as tarifas de importação, que têm aumentado constantemente para incentivar a fabricação doméstica de veículos elétricos. A empresa está prestes a iniciar a produção em solo brasileiro a partir de sua fábrica em Camaçari, na Bahia, com operações programadas para iniciar no fim do mês. A data de início chegou a ser adiada devido a uma série de violações trabalhistas reveladas em dezembro passado: o Ministério do Trabalhou autuou a empresa por manter 163 trabalhadores chineses “em condições análogas à escravidão”, que eram submetidos a jornadas extenuantes e viviam em instalações precárias.
Na Colômbia, a BYD lidera o mercado de veículos elétricos, respondendo por 42,5% das vendas do setor em 2024, conforme a Associação Latino-Americana de Distribuidores de Automóveis (Aladda). O governo colombiano vem promovendo essa mudança por meio da Estratégia Nacional de Mobilidade Elétrica, que busca colocar 600 mil veículos elétricos nas ruas até 2030. A BYD já faz a montagem de ônibus elétricos na Colômbia e planeja abrir uma fábrica de montagem de carros leves.
Em 2024, a BYD vendeu 40 mil unidades no México, número que espera dobrar em 2025. Parte de sua estratégia inclui a construção de uma fábrica com capacidade para produzir mais de 150 mil veículos ao ano. Porém, o projeto está parado enquanto Beijing estuda os riscos de vazamento dessa tecnologia de carros inteligentes por meio da fronteira com os Estados Unidos, segundo informações do Financial Times.
A BYD também lidera as vendas do setor no Equador, com mais de 47% do mercado de veículos elétricos. No Peru, ela espera conquistar 50% do mercado de veículos elétricos e híbridos até 2025. A marca também anunciou recentemente sua chegada à Argentina.
“Há alguns anos, o foco da empresa era o transporte público urbano: ônibus elétricos no Chile e na Colômbia”, explicou Jose Luis Torres De La Piedra, especialista em eletromobilidade e ex-diretor de vendas da BYD Peru. “Houve uma redefinição dessa estratégia. Agora sua prioridade são os carros leves e os híbridos plug-in”.
“No Peru, o escritório [da BYD] existe desde 2018, quando a ideia de um carro elétrico parecia distante”, observou Torres De La Piedra. “Isso mostra uma visão de futuro. Eles não vendem apenas carros, vendem tecnologia. E hoje o mundo abraça a tecnologia”.
Futuro elétrico na América Latina?
Conforme os dados de 2024 da Aladda, quase 412 mil veículos eletrificados — ou seja, elétricos e híbridos plug-in — foram vendidos na América Latina, representando um crescimento anual de 73,5%. O Brasil liderou as vendas com um aumento anual de 89%, consolidando sua posição como o mercado mais importante da região, seguido pelo México (67%) e pela Colômbia (65%).
Enquanto a Tesla concentra sua estratégia nos Estados Unidos e na Europa, a BYD faz incursões na América Latina e no Sudeste Asiático com preços mais competitivos. Um ranking da publicação Rest of World revelou que os veículos mais baratos da BYD para a América Latina estão no México e no Chile; os preços começam em US$ 20.402 e US$ 21.191, respectivamente.
“Isso pode facilitar a transição para os carros elétricos na região. Mas também pode colocar outros concorrentes fora do jogo”, alertou Margaret Myers, diretora do Programa para a Ásia e América Latina do Inter-American Dialogue. “Os EUA não competem nessa faixa de preço”.
Isso não passou despercebido pela Europa. Desde 2023, a Comissão Europeia tem monitorado de perto as empresas chinesas por suspeita de concorrência desleal — uma das hipóteses é que elas estejam recebendo subsídios do Estado chinês. Em outubro de 2024, foram impostas tarifas de 17% sobre os veículos elétricos da BYD vendidos no bloco europeu e, em março deste ano, jornais revelaram que a Comissão Europeia havia aberto uma investigação sobre as operações de uma fábrica da BYD na Hungria.
Diante desse contexto, a América Latina deve se questionar se deseja continuar apenas como um mercado para os carros elétricos chineses ou se quer virar um centro de produção para a nova era automotiva.
Para Myers, se a América Latina jogar bem suas cartas, poderá se tornar um ator estratégico na revolução da eletromobilidade. “A questão fundamental é se a BYD está sendo integrada às cadeias de valor locais”, disse ela. “Se não houver transferência de tecnologia e processos de industrialização internos, não haverá benefícios no longo prazo. Se a América Latina não exigir hoje que esses investimentos incluam transferência de tecnologia, ela será deixada de fora dessa revolução — e a velha história de sempre se repetirá”.