Na manhã do dia 1º dezembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva posava, junto de em torno de 130 líderes mundiais, para a foto oficial da conferência climática COP28 em Dubai. Em seguida, com o Brasil confirmado como anfitrião da COP30, Lula foi um dos únicos quatro a discursar na abertura da cúpula da ONU e tomou o privilegiado espaço para dizer que “o planeta está farto de acordos climáticos não cumpridos”. É hora, ele acrescentou, de “trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”.
Naquele mesmo dia, o Brasil também assumia a presidência temporária do G20, fórum que reúne as maiores economias do mundo para a cooperação internacional. Lula tem afirmado que o mandato de um ano do país nesse fórum servirá para motivar seus membros a se empenhar em uma transição energética justa.
Porém, ainda no dia 1º, o governo também confirmava a adesão do Brasil à Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados, a Opep+. E para fechar o dia agitado, o presidente da Petrobras informou que pretendia abrir uma subsidiária da estatal na petrolífera Arábia Saudita, depois de ter anunciado a intenção de ter uma unidade também na China, maior consumidor do óleo brasileiro.
As contradições desse dia estão longe de serem eventos isolados do primeiro ano do governo Lula. Embora a agenda climática tenha ganho novo impulso após a gestão negacionista de Jair Bolsonaro (2019-2022), o discurso de combate ao aquecimento global com frequência destoou da prática, e analistas descreveram algumas políticas anunciadas como vagas ou insuficientes para enfrentar as mudanças climáticas e os desafios socioambientais do país.
“O Brasil vai ter que realmente se decidir”, afirmou, ao Diálogo Chino, Márcio Astrini, diretor-executivo do Observatório do Clima. “Não dá para você liderar uma agenda de clima, que precisa atacar os combustíveis fósseis e, ao mesmo tempo, entrar para o clube do petróleo. Não dá para ter as duas coisas ao mesmo tempo”.
Foco contra o desmatamento da Amazônia
Astrini pondera que, embora o petróleo seja uma questão prioritária, especialmente para um país sediando uma COP, o tema é relativamente novo na agenda ambiental brasileira, que historicamente tem sido focada na proteção das florestas. Em 2023, não foi diferente: logo em 1º de janeiro, o presidente recém-empossado já prometia zerar o desmatamento líquido da Amazônia, que sofria altas galopantes.
Durante o mandato de Bolsonaro, houve um crescimento de 60% no desmatamento do bioma em relação ao período anterior, de 2014 a 2018, compartilhado entre Dilma Rousseff e Michel Temer, segundo análise da plataforma Seeg. Esse foi o maior aumento em um único mandato presidencial desde o início das medições, em 1988.
O desmatamento da região não só fechava as portas da política externa como gerava impactos para as populações locais, a biodiversidade e o clima. Pelos dados do Seeg, as mudanças de uso da terra responderam por 48% do total bruto emitido pelo Brasil em 2022, sendo 36% advindo sozinho da perda de floresta amazônica.
Para enfrentar o problema, o governo relançou o PPCDAm, plano que foi um dos responsáveis pela queda de 83% do desmatamento entre 2004 e 2012. Ele retomou e expandiu políticas da época, como ações firmes de fiscalização, que haviam sido fragilizadas pela administração Bolsonaro.
Até agora, tem dado certo, e a queda do desmatamento na Amazônia brasileira foi a principal conquista que o país teve para levar à COP28. De janeiro a novembro de 2023, os alertas de áreas desmatadas da Amazônia caíram pela metade em comparação ao ano anterior e pouparam em média 200 milhões de toneladas líquidas de CO₂ equivalente – mais do que o Peru emitiu em um ano. O governo também revisou para cima as metas nacionais de redução de emissões do Acordo de Paris, as chamadas NDCs, que haviam sido reduzidas pela gestão anterior.
Agronegócio, setor que mais emite CO₂
Mas o Brasil é o sexto país mais poluidor do mundo, pelos dados da plataforma Climate Watch, com cerca de 1,5 bilhão de toneladas líquidas de CO₂ despejadas em um ano na atmosfera. E, atrás das mudanças de uso da terra, a segunda maior fonte de emissões é a agropecuária, com 27% do total, segundo o Seeg. Como esse setor responde pela quase totalidade do desmatamento provocado no Brasil, isso significa que 75% das emissões brasileiras vêm de suas atividades, principalmente da pecuária.
Ao mesmo tempo, no entanto, o agronegócio responde por quase um quarto do PIB brasileiro e tem fortes bases no Congresso, em Brasília, por meio da bancada ruralista, majoritariamente alinhada ao bolsonarismo.
Ao longo do ano, o governo se viu algumas vezes de mãos atadas ao tentar avançar com políticas ambientais. A disputa mais notória foi o projeto de lei (PL) do marco temporal, que coloca barreiras à proteção de terras indígenas, mas é defendido pelo agronegócio, com o argumento de aumentar a segurança jurídica à posse de terras. Em outubro, o PL foi quase integralmente vetado por Lula. Mas o veto foi derrubado pelo Congresso na semana passada.
Comentando a iminente derrota antes da votação, ainda na COP28, o presidente comparou representantes ruralistas no Congresso com “raposas tomando conta do nosso galinheiro”.
Quase simultaneamente, o Senado aprovou o que críticos apelidaram de PL do Veneno, que acelera o registro de agrotóxicos no país. O texto precisou ser costurado com a oposição como moeda de troca para a aprovação de medidas econômicas. Enquanto isto, o ritmo de novos registros de pesticidas na administração Lula já se equipara ao do governo Bolsonaro e supera o de qualquer mandato petista, segundo o jornal Folha de São Paulo.
Apesar da redução do desmatamento na Amazônia, ele segue alto no Cerrado, por onde também avança a fronteira agrícola do país. A perda de 11 mil km² do bioma entre agosto de 2022 e julho de 2023 levou à emissão de 159 milhões de toneladas de CO₂ equivalente. Para o ano que vem, o governo planeja uma estratégia semelhante à implementada na Amazônia.
Mesmo assim, ainda faltam propostas mais concretas para mudar significativamente a rota de crescimento das emissões da agropecuária, segundo um relatório do Instituto Talanoa, que fez um balanço da agenda climática brasileira em 2023.
O trabalho menciona o anúncio do novo Plano Safra, que oferece um recorde de R$ 435 bilhões em financiamento ao agronegócio e à agricultura familiar, reservando 0,5% disso à agricultura de baixo carbono. O relatório também alerta para a lentidão em torno de uma política de fertilizantes de baixo carbono e para a necessidade de um plano concreto de redução das emissões de metano. Enquanto isto, a digestão do boi segue como a principal fonte poluidora da agropecuária brasileira, processo que libera metano, gás até 80 vezes mais potente que o CO₂.
Durante a COP28, também faltou concretude no Plano de Transformação Ecológica, um dos lançamentos mais aguardados do Brasil em Dubai. “Acho que foi a quarta ou quinta vez no ano que ouvimos que ele teria sido lançado”, diz Natalie Unterstell, presidente do Talanoa, acrescentando que se tratou, novamente, de “um anúncio vago”.
“A gente não sabe o que é, quanto custa, quem vai fazer, como, quando, para quê, então não tem aí os elementos necessários de uma política pública de transformação”, diz.
Enquanto isso, o lobby da carne bovina ganhou destaque na COP28. Antes da conferência, gigantes do setor, entre elas a brasileira JBS, já planejavam uma aparição de peso para vender uma imagem de sustentabilidade, segundo o jornal britânico Guardian.
Não adianta virem aqui [na COP28] com um monte de papel. Eles são um tormento constante para a proteção de florestas no BrasilMárcio Astrini, diretor-executivo do Observatório do Clima
O Guardian notou que, na COP27, do ano passado, a JBS conseguiu acesso às negociações porque chegou como parte da delegação da administração Bolsonaro. Este ano, apesar da troca de governo, ocorreu o mesmo: lobistas do agronegócio viajaram como parte da delegação oficial, incluindo representantes da JBS, que participaram do lançamento de um plano de governo.
“Acho ótimo o Brasil integrar todo mundo à delegação”, comentou o embaixador André Corrêa do Lago, negociador-chefe do país na COP28 em uma coletiva dias antes de embarcar para Dubai. “Isso sempre foi extremamente útil”.
Márcio Astrini concorda que a discussão climática esteja aberta a todos que queiram apresentar soluções. Mas não é o que ele enxerga na atuação do agronegócio brasileiro: “Não adianta eles virem aqui [na COP28] com 500 pessoas, com um monte de papel, porque todo mundo sabe que, quando eles voltam ao Brasil, a atuação deles na área ambiental é acabar com a legislação, favorecer o crime ambiental, favorecer a destruição da floresta. Eles são um tormento constante para a proteção de florestas no Brasil”.
Empresários da indústria fóssil também chegaram à COP28 em massa, com mais de 2.400 representantes, sendo pelo menos 68 integrantes da Petrobras, de acordo com a Kick Big Polluters Out, coalizão de mais de 450 organizações internacionais. O número é quase sete vezes maior que o de indígenas, diz a coalizão, que contabilizou 316 pessoas.
Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, disse na cúpula que essa representação foi um “avanço”, destacando que um terço dos indígenas presentes eram do Brasil. “Claro que isso ainda é pequeno pelo tamanho da população indígena no mundo e pelo trabalho que a gente faz de proteção ao meio ambiente, mas estamos avançando”, acrescentou.
Um governo representativo?
Guajajara, que assumiu o novo ministério em janeiro, reforçou que os indígenas hoje têm mais representatividade no país, com líderes ocupando cargos no Legislativo, a chamada bancada do cocar, e no Executivo.
Mas, para um presidente que, em sua posse, subiu a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, acompanhado de representantes de vários grupos sociais, o resultado de um ano de governo é, para muitos observadores, frustrante: sua administração manteve a participação de mulheres e negros em funções de confiança na mesma proporção que a gestão Bolsonaro. Não foram encontrados dados para a representatividade indígena.
Líderes indígenas que apoiaram a eleição de Lula cobram um olhar mais atento a essa população. O líder e ativista indígena Beto Marubo diz que há “boas intenções e mais diálogo” no novo governo, porém, “há também incoerências”, por exemplo o de abrir mão de pautas indígenas e a aliança com políticos controversos, como o governador Helder Barbalho, que sediará a COP30 em 2025 no Pará, recordista em desmatamento.
Em janeiro, uma comitiva governamental desembarcou no Vale do Javari, na Amazônia — terra-natal de Marubo e onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados em 2022 —, prometendo maior presença do Estado para avançar com o desenvolvimento social e combater o crime organizado.
“Mas as coisas não andaram até o presente momento”, diz Marubo. “Pelo contrário, o Estado só tem feito ações pontuais, mesmo diante de uma situação que teve repercussão internacional”.
A situação é semelhante para o povo Yanomami, que enfrenta uma crise humanitária com o avanço do garimpo ilegal em seu território também na Amazônia. Em janeiro, autoridades, incluindo o próprio presidente Lula, foram à região com a promessa de ações firmes. Embora uma série de operações tenha expulsado milhares de garimpeiros da região nos primeiros meses do ano, eles já começam a retornar e ameaçar algumas aldeias.
Os garimpeiros “estão vendo a fraqueza do Estado brasileiro”, disse o líder indígena Júnior Hekurari em uma audiência do Ministério Público Federal na semana passada. “Daqui a pouco eles vão tomar a Terra Indígena Yanomami de novo e impedir de fazer a saúde nessas comunidades”.
Lula, o pai do pré-sal
Se faltou força política ao governo para avançar com temas ambientais e direitos indígenas frente às pautas mais conservadoras do agronegócio, no caso da exploração do petróleo, há um envolvimento direto da administração Lula para levá-la adiante.
Trata-se de uma agenda cara ao presidente, que, em seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2011, apostou na exploração de petróleo nas camadas profundas do pré-sal. “Essa é a razão maior do nosso orgulho, mais do que o carnaval, mais do que o futebol”, disse Lula, em 2010, durante a inauguração da primeira plataforma comercial de pré-sal.
Desde então, as reservas petrolíferas offshore do país vêm atraindo a atenção de investidores internacionais, incluindo da China.
Apesar de pareceres contrários emitidos por integrantes de sua própria gestão, Lula defende a condução de pesquisas para explorar petróleo na Foz do Amazonas, o que traz riscos à biodiversidade e pode, inclusive, anular os ganhos climáticos do país com a redução do desmatamento da Amazônia. Hoje, o setor de energia é a terceira maior fonte de emissões, segundo o Seeg, com 18% do total de CO₂ equivalente emitido em 2022.
Dias antes da COP28, a Petrobras lançou seu plano estratégico apostando no aumento da produção do óleo. E dias após a conferência climática, a Agência Nacional de Petróleo leiloou 192 áreas para a exploração de petróleo e gás natural, inclusive na Amazônia.
Com isso, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva — eleita como uma das vozes mais influentes do mundo pelas revistas Nature e Time — tem precisado usá-la para, reiteradamente, responder sobre o dilema do Brasil entre o óleo e o clima.
“O Brasil, como todos os países que são produtores de petróleo, vive essa contradição”, disse Silva ao canal televisivo Globo News no início da COP28, acrescentando que o país não quer “promover o desequilíbrio do planeta, a ponto de comprometer a vida, os processos econômicos e esse Armageddon ambiental que é a mudança do clima”.