A América Latina entra em 2024 depois de um ano turbulento, que evidenciou os profundos desafios ambientais da região. As tensões econômicas e as mudanças no cenário político tanto global quanto regional seguem travando as ações climáticas e a cooperação ambiental. Mas ainda há razões para acreditar em um futuro mais promissor.
Neste início de ano, destacamos os principais temas socioambientais e eventos políticos que devem impactar o meio ambiente na América Latina — além das relações da China com a região.
Prova de fogo para a democracia
O calendário eleitoral em 2024 será intenso: com eleições da Índia à Indonésia, da África do Sul aos Estados Unidos, espera-se que mais de um bilhão de pessoas compareça às urnas. Na América Latina, a eleição presidencial mexicana de junho será a maior da região: por enquanto, duas candidatas são favoritas para vencer a disputa, com um resultado que pode abrir caminhos para o progresso ambiental em um país dependente de petróleo e atrasado no cumprimento de suas metas climáticas.
O futuro da matriz energética será um ponto fundamental no debate mexicano, já que o setor passou os últimos anos sob um controle rígido do presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que restringiu o investimento privado em energias renováveis e manteve sua soberania energética a partir de combustíveis fósseis.
A principal candidata da oposição, Xóchitl Gálvez, prometeu aumentar os esforços para a transição energética do país, apostando nas energias renováveis. Do lado governista, a cientista climática e ex-prefeita da capital Claudia Sheinbaum será a representante do partido Morena. Sheinbaum é co-autora de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU e também apoia a adoção de energias renováveis. Embora lidere as pesquisas de intenção de voto, a candidata ainda não apresentou suas propostas para o setor energético — nem comentou qual será sua postura diante do legado pró-combustíveis fósseis de AMLO.
A região também terá eleições presidenciais em El Salvador, em fevereiro; e no Panamá e na República Dominicana, em maio. A disputa panamenha deve ser fortemente marcada pela agenda ambiental, que dominou o debate público no fim do último ano: em outubro, a renovação da concessão a uma mineradora canadense para explorar cobre desencadeou protestos massivos por todo o país, forçando o presidente Laurentino Cortizo a convocar um referendo sobre o tema. Em novembro, a Suprema Corte considerou ilegal a nova concessão e determinou o fechamento da mina, até então responsável por 5% do PIB panamenho. Cientes da opinião pública sobre os impactos ambientais negativos da mina, os principais candidatos à presidência apoiaram a decisão da Justiça. Além disso, o vencedor também terá de lidar com o aumento das secas no Canal do Panamá.
O Uruguai terá as últimas eleições do ano na América Latina, com um primeiro turno marcado para outubro. Caberá ao sucessor de Luis Lacalle Pou lidar com as cicatrizes da crise hídrica vivida no último ano: na região metropolitana de Montevidéu, uma seca severa deixou a população sem água potável por várias semanas. Já as soluções do governo para lidar com o problema foram duramente criticadas. O novo presidente ainda terá a missão de manter o bom histórico do Uruguai na geração de energia limpa, contornando os obstáculos para tornar o país um centro regional de produção de hidrogênio verde e descarbonização do setor de transportes.
A Amazônia em uma encruzilhada
A Amazônia encara um futuro incerto — e seus habitantes, uma realidade avassaladora. No começo de 2023, uma operação de combate à mineração ilegal jogou luz sobre a crise humanitária na terra indígena Yanomami, na divisa entre o Brasil e a Venezuela. A nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva reduziu pela metade as taxas de desmatamento em relação ao ano anterior, mas não conseguiu medir forças com o fenômeno El Niño: uma seca histórica na bacia do rio Amazonas deixou populações ilhadas e sem acesso à água potável na região próxima a Manaus.
O El Niño deve persistir pelos primeiros meses de 2024, para depois começar um período de relativa estabilização climática. Mas a lista de ameaças continua: o bioma enfrenta a presença crescente de grupos armados transnacionais, como guerrilhas e paramilitares colombianos, além de facções brasileiras. Nas regiões dominadas pelo crime organizado, as comunidades tradicionais são pressionadas pelo avanço do garimpo ilegal de ouro e do tráfico de drogas e armas. Colômbia e Brasil, aliás, lideraram o ranking da organização Global Witness de assassinatos de ativistas ambientais em 2022. A próxima edição com os dados de 2023 deve dar um panorama atualizado sobre os esforços de ambos os países para combater essa forma de violência.
No Equador, o novo governo de Daniel Noboa tem a missão de encerrar a exploração petrolífera no Parque Nacional Yasuní, um dos locais mais biodiversos da Amazônia, conforme decidido em referendo nacional em 2023. Porém, com um mandato de apenas um ano e meio pela frente, Noboa deverá correr contra o tempo para concretizar o desejo das urnas. Além disso, o mandatário de 36 anos tem outras crises para lidar, como os constantes apagões causados pela escassez hídrica que afeta a operação das hidrelétricas, responsável por cerca de 80% da eletricidade no país. Entre suas primeiras medidas, Noboa anunciou uma nova reforma de geração elétrica.
A região amazônica avança para mais um ano decisivo em um contexto de contradições. Por um lado, há planos ambiciosos para apoiar a bioeconomia e manter a floresta em pé; mas, por outro, a busca por projetos petrolíferos continua, mesmo diante dos impactos mais devastadores da crise climática.
China e América Latina em 2024
Passadas as turbulências da pandemia de Covid-19, o último ano foi mais estável para as relações entre a China e a América Latina. O retorno do presidente Lula estabeleceu um tom mais harmonioso e favorável à cooperação com a potência asiática. Pouco deve mudar nesse sentido ao longo deste ano, com exceção da chegada do novo presidente da Argentina, Javier Milei. Embora tenha abrandado a retórica anti-China que marcou sua campanha, Milei confirmou que a Argentina recusou o convite para se unir ao bloco de economias em desenvolvimento, os Brics. Beijing, por sua vez, suspendeu temporariamente o swap cambial de US$ 6,5 bilhões que facilitava o pagamento da dívida externa argentina.
Agricultura, mineração e energia continuam sendo fundamentais para as relações comerciais entre a China e a América Latina, mas também há a possibilidade de abertura de novos canais para a cooperação em torno da conservação ambiental.
Diante da estagnação da economia da China, seguiremos atentos aos impactos disso nos programas de investimento no exterior, como a Iniciativa Cinturão e Rota. Enquanto isso, os setores de produção de células solares, baterias de lítio e veículos elétricos têm se mostrado resistentes às oscilações econômicas, tendo impulsionado as exportações chinesas em 2023.
Essas três áreas serão cruciais para a cooperação com a América Latina, principalmente pelos investimentos no setor do lítio. Dada a importância do metal para as transições globais de energia, é provável que a China e outros investidores internacionais foquem na exploração de lítio na Argentina, na Bolívia e no Chile. Além disso, a nova onda de investimentos de montadoras chinesas no Brasil e no México deve impulsionar a produção de veículos elétricos e híbridos.
Na COP28, realizada em Dubai entre novembro e dezembro passados, 19 países da América Latina e do Caribe assinaram o acordo para triplicar a capacidade global de energia renovável até 2030. Agora veremos como esses compromissos se transformam — ou não — em ações concretas ao longo do ano. Embora analistas considerem a meta “conservadora”, a China não aderiu. Mesmo assim, o país é um importante fornecedor de tecnologias de energia renovável, incluindo 80% da produção global de painéis solares, e será um parceiro essencial nos esforços da América Latina para acelerar — e possivelmente financiar — sua transição energética.
Em relação à agenda ambiental, a Colômbia foi recentemente anunciada como sede da próxima cúpula de biodiversidade da ONU, a COP16, marcada para outubro. A China presidiu a COP15 em 2022 e saudou a escolha da Colômbia como anfitriã. Até lá, as nações devem avançar na implementação do Marco Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal, criado na COP15, enquanto a América Latina busca novas formas de impulsionar suas iniciativas de conservação.
Argentina: o que será do meio ambiente?
A vitória do economista de ultradireita Javier Milei nas últimas eleições presidenciais da Argentina, em novembro, criou um cenário de incertezas no setor ambiental do país. Ao longo da campanha, Milei assumiu uma postura de negação das mudanças climáticas, chamada por ele de “farsa socialista”. Entre suas propostas polêmicas, ele sugeriu permitir que as empresas poluíssem livremente os rios do país.
Ao assumir o cargo em dezembro, Milei surpreendeu muitos ao enviar um representante à COP28: Marcia Levaggi, nova secretária de política externa da Argentina. Levaggi garantiu que a Argentina continuará a cumprir seus compromissos climáticos sob o Acordo de Paris, afirmando à agência Reuters que “Milei é um libertário que acredita nas forças do mercado” e que “o mercado exige medidas para lidar com as mudanças climáticas”.
Milei, no entanto, colocou em prática seus prometidos cortes radicais na estrutura do Estado assim que tomou posse: derrubou pela metade o número de ministérios, transformando o do Meio Ambiente em uma Subsecretaria ligada ao Ministério do Interior. Até então, a pasta atuava como a principal autoridade na aplicação das leis ambientais e garantia a participação pública no processo de licenciamento de grandes projetos.
A Fundação do Meio Ambiente e Recursos Naturais da Argentina afirma que essa mudança “limitará significativamente as possibilidades de estabelecer diálogos e políticas que envolvam diferentes áreas do governo”. No entanto, a organização também enfatizou que haverá uma forte resistência de ativistas para defender o direito a um meio ambiente saudável para as gerações futuras.
Enquanto isso, o Ministério da Segurança da Argentina voltou sua atenção para as ruas, anunciando novas medidas contra as manifestações populares. Uma das propostas é restringir que mais de três pessoas se reúnam sem autorização, o que, evidentemente, afetaria também os ativistas ambientais.
A transição energética será justa?
Em um contexto histórico para conferências climáticas da ONU, a COP28 foi concluída com um acordo a favor de uma transição energética “justa, ordenada e equitativa”. O texto pede que as partes tripliquem a capacidade global de energia renovável e dobrem a taxa anual de eficiência energética até 2030 — embora a menção em prol dos “combustíveis de transição”, em referência ao gás natural, tenha sido bastante criticada.
Os líderes indígenas presentes no evento cobraram mais atenção para as comunidades tradicionais enquanto o mundo tenta atingir as metas climáticas. Não são raros os conflitos socioambientais em torno de projetos de energia renovável e, por isso, os povos originários tentam romper esse ciclo — uma herança do setor de combustíveis fósseis.
Um exemplo disso foi visto recentemente no norte da Colômbia: na Guajira, região escolhida pelo governo de Gustavo Petro para se tornar o epicentro da transição energética do país, a chegada de parques eólicos provocou conflitos com indígenas Wayúu, aumentando a violência na área. Enquanto isso, no Equador, comunidades ribeirinhas enfrentaram inundações e secas severas atribuídas a usinas hidrelétricas que desviaram o curso de rios. E, na Bolívia, comunidades andinas questionam os impactos do boom do lítio nas regiões próximas às salinas de Uyuni e Pastos Grandes.
“Essa transição justa deve reconhecer a Mãe-Natureza como sujeito de direitos, assim como as vidas que habitam nossos territórios. Quando falamos de energia renovável, acreditamos que nossos povos devem ser consultados e nossa decisão deve ser respeitada”, disse Ketty Marcelo Lopez, presidente da Organização Nacional de Mulheres Indígenas Andinas e Amazônicas do Peru, na COP28.
Em 2024, a terceira conferência das partes do Acordo de Escazú, a COP3, deve dar uma dimensão dos avanços regionais na representatividade e na proteção dos ativistas do meio ambiente. A transição energética justa deve ser uma das máximas prioridades para os delegados que se reunirão em abril, em Santiago do Chile.