A Argentina decidirá nas urnas esta semana seu próximo presidente, em uma das disputas eleitorais mais acirradas das últimas décadas, com os eleitores enfrentando duas visões completamente diferentes para o futuro do país em casa e no exterior.
O segundo turno de domingo colocará Sergio Massa, atual ministro da Economia e da coalizão governista de centro-esquerda, contra o radical de extrema direita Javier Milei, que surpreendeu os analistas ao sair na liderança das primárias de agosto no país — e cujas posições e propostas extremas foram manchetes em todo o mundo.
A maioria das pesquisas vem indicando uma disputa apertada desde o primeiro turno, em 22 de outubro, quando Massa teve quase 37% dos votos e Milei, 30%. Terceira colocada, a conservadora Patricia Bullrich desde então endossa a campanha de Milei e de seu partido, La Libertad Avanza.
A eleição ocorre em meio a uma Argentina afogada em dificuldades econômicas e em uma crise cada vez mais profunda, que parece ter deixado a população revoltada com o establishment político, o que muitos apontam como combustível para a ascensão de Milei. A dívida externa de bilhões de dólares afunda as finanças do governo; 40% dos 46 milhões de habitantes do país vivem na pobreza; e a inflação anual está próxima de 140% — um aumento que ocorreu sob o comando de Massa.
O resultado da eleição de domingo poderá mudar não apenas a política interna da Argentina, mas também sua perspectiva externa, como sugerem as promessas de campanha de ambos os candidatos. Milei disse que não manterá laços políticos com a China ou qualquer outro país “comunista”, limitando as relações ao setor privado, enquanto Massa vê a China como um parceiro importante.
A Argentina vem aprofundando as relações com a China desde o governo da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner (2007–2015). O atual governo de Alberto Fernández tem mantido essa proximidade desde que assumiu o cargo em 2019, encontrando na China um aliado durante a pandemia da Covid-19 e a crise econômica do país. O presidente também levou a Argentina a aderir à Iniciativa Cinturão e Rota, principal programa chinês de desenvolvimento da infraestrutura global.
A China também é o segundo maior parceiro comercial da Argentina, depois do Brasil. O agronegócio da Argentina tem um papel de liderança nessa relação, com 92% das exportações de soja do país e 57% de suas remessas de carne enviadas para a China em 2022. A China também fez investimentos vultosos no setor de energia da Argentina e em sua crescente indústria de lítio.
Massa e Milei divergem sobre política externa
Durante sua campanha, Massa sinalizou que manterá a China próxima do governo. “É um de nossos parceiros comerciais mais importantes, o segundo [maior]. Pretendemos consolidar esse fluxo de comércio”, disse o ministro da Economia após o primeiro turno das eleições. Em termos gerais, Gustavo Martínez Pandiani, conselheiro de Massa, disse que seu governo teria uma política externa “pragmática”.
Atualmente, a Argentina tem um acordo de swap cambial de US$ 18 bilhões com a China, que foi usado durante o mandato de Massa como ministro da Economia para pagar parte de sua dívida com o Fundo Monetário Internacional. Em agosto, a Argentina foi convidada a se juntar a Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como membro dos Brics, grupo de economias emergentes, em parte graças ao apoio da China.
No período que antecedeu a eleição, Sabino Vaca Narvaja, embaixador da Argentina na China, disse que romper os laços com o país asiático levaria à perda de “milhões de empregos” e a uma “implosão produtiva, social e financeira”. Ele destacou os muitos projetos de infraestrutura financiados por bancos chineses na Argentina, como duas hidrelétricas na Patagônia, e disse que essas iniciativas poderiam ser suspensas se houvesse o rompimento dos laços entre os países.
☢ Nuclear
Em 2022, as estatais Nucleoeléctrica Argentina e China National Nuclear Corporation assinaram um contrato para a construção de uma quarta usina nuclear na Argentina, Atucha III, cujo financiamento será majoritariamente de bancos chineses.
☀️ Solar e eólica
Outra estatal, a chinesa PowerChina, é a maior empreiteira de energia renovável da Argentina e participou do desenvolvimento de 11 projetos de energia eólica, solar e de infraestrutura. Os que estão em operação incluem a segunda maior usina solar da América Latina, Caucharí, na província de Jujuy, no norte do país, e os parques eólicos de Loma Blanca, em Chubut, no sul.
⛏ Lítio
A China também é um ator importante no nascente setor de lítio da Argentina: a mineradora chinesa Zijin está investindo US$ 380 milhões na construção de uma fábrica de carbonato de lítio na província de Catamarca; a Ganfeng Lithium está desenvolvendo o projeto de produção de lítio Mariana no Salar de Llullaillaco, na província de Salta, que já está em sua primeira fase operacional; a Ganfeng também detém 51% do projeto Caucharí-Olaroz na província de Jujuy, já em operação.
💧 Hidrelétrica
Entre os grandes projetos apoiados pela China na Argentina, estão duas hidrelétricas controversas na Patagônia: Jorge Cepernic e Néstor Kirchner. Sua construção começou em 2015 e espera-se que entrem em operação em 2027 ou 2028, após anos de obstáculos.
Milei indicou que, se eleito, romperia as relações com a China por que o país é governado pelo Partido Comunista, rotulando-a de “assassina” e afirmando que seus cidadãos não são “livres”. Ele também prometeu retirar a Argentina do Mercosul, bloco comercial das nações sul-americanas, e descreveu o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva como um “socialista com vocação totalitária”. Nesta terça-feira, Lula disse que, para manter as relações comerciais entre Brasil e Argentina, é preciso um presidente que “goste de democracia”, “respeite as instituições” e “goste do Mercosul” — sem citar nominalmente nenhum dos dois candidatos.
Diana Mondino, provável ministra das Relações Exteriores de Milei, disse que as declarações do candidato foram descontextualizadas e que seu possível governo buscaria relações abertas e transparentes com todos os países. Milei apenas interromperia acordos “secretos”, disse Mondino, referindo-se ao swap cambial da Argentina com a China. “Não sabemos a taxa de juros que teremos de pagar”, disse.
Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, respondeu às declarações de Milei convidando-o a visitar o país. “Acredito que se o sr. Milei puder vir à China conhecer o país pessoalmente, ele encontrará uma resposta totalmente diferente para a questão se o povo chinês é ou não livre e se a China é segura”, disse Wang em uma coletiva de imprensa em agosto.
No último debate presidencial, realizado em 12 de novembro, Massa lembrou Milei da importância da China para a economia nacional, já que o país asiático é responsável por grande parte das exportações de muitas províncias argentinas. Milei respondeu afirmando que a Argentina poderia simplesmente encontrar outros parceiros comerciais e rejeitou as declarações de Massa de que os empregos seriam afetados por mudanças no relacionamento com a China.
Rompimento improvável
Especialistas em política externa disseram ao Diálogo Chino que, embora o relacionamento com a China possa mudar se Milei for eleito, é improvável que os laços sejam totalmente rompidos. Vários lembraram que o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) também questionou o relacionamento com a China, mas que os dois países continuaram a se relacionar durante seu governo.
“A China se envolverá com a Argentina de todas as formas possíveis, independentemente do resultado da eleição presidencial”, disse Margaret Myers, diretora do programa para a Ásia e América Latina do think tank americano Inter-American Dialogue. “Dito isso, uma vitória de Milei sem dúvida o levaria a repensar as relações com a China e, possivelmente, a uma revisão dos projetos existentes”.
Myers apontou para as duas hidrelétricas na Patagônia, atualmente em construção e sujeitas a cláusulas de inadimplência cruzada, o que significa que seu cancelamento levaria à interrupção de outros projetos financiados pela China. A Argentina também negocia a construção de uma usina nuclear com a China, que poderá ser suspensa se Milei for eleito.
Jorge Malena, diretor do comitê de assuntos asiáticos do Conselho Argentino de Relações Internacionais, disse que, enquanto Massa aprofundaria a relação argentina com a China devido à sua “dependência financeira e política”, Milei teria que moderar sua posição devido ao papel que a China tem como importante parceiro comercial e investidor na Argentina.
Ignacio Villagran, diretor do Centro de Estudos Argentina-China da Universidade de Buenos Aires, concorda: “Para a China, não faz diferença quem está no poder, desde que os projetos de investimento continuem. Embora haja um ponto de interrogação sobre Milei, ele não terá voz sobre o que as províncias acordam com a China”.
Na estrutura federativa da Argentina, as províncias podem se relacionar com a China independentemente do governo nacional. Esse tem sido o caso da província de Jujuy, que abriga Cauchari, uma usina solar de 300 megawatts financiada por bancos chineses e uma usina de extração de lítio parcialmente pertencente à mineradora chinesa Ganfeng Lithium.
Para a China, não faz diferença quem está no poder, desde que os projetos de investimento continuemIgnacio Villagran, diretor do Centro de Estudos Argentina-China da Universidade de Buenos Aires
“Apesar das declarações de Milei, é improvável que a relação entre a Argentina e a China piore de forma significativa ou permanente, já que ela se baseia em uma relação econômica crescente em termos de comércio, investimento e, mais recentemente, na extensão do swap [cambial]”, disse Pepe Zhang, membro do Atlantic Council.
Guo Cunhai, coordenador do Centro de Estudos sobre a China e a América Latina da Academia Chinesa de Ciências Sociais, disse que a relação entre a China e a Argentina já resistiu a situações difíceis no passado e provavelmente continuará assim. “A base do relacionamento é a necessidade mútua. A cooperação beneficiará os dois lados, e a divisão prejudicará ambos”, acrescentou.
O candidato que vencer o segundo turno deste domingo assumirá a presidência em 10 de dezembro, dois dias antes do final da COP28, próxima conferência climática da ONU.
Marina Bello contribuiu com esta reportagem.