Energia

Linha de transmissão no Nordeste mira em renováveis, mas pode impulsionar térmicas

Estatal chinesa State Grid arrematou leilão para garantir infraestrutura de energia em região que vive boom de usinas solares e eólicas
<p>State Grid planeja construir linha de transmissão de 1.513 quilômetros no Nordeste, região que vive um boom de geração de energia eólica e solar (Imagem: Jose Luis Stephens / Alamy)</p>

State Grid planeja construir linha de transmissão de 1.513 quilômetros no Nordeste, região que vive um boom de geração de energia eólica e solar (Imagem: Jose Luis Stephens / Alamy)

O mais recente capítulo da presença da China no setor elétrico brasileiro foi escrito em dezembro, com a vitória da estatal chinesa State Grid no maior leilão de transmissão de energia já realizado no Brasil. 

A empresa de eletricidade assegurou o maior dos três lotes do certame e planeja investir R$ 18 bilhões para construir 1.513 quilômetros de linha de transmissão e duas subestações entre o Maranhão e Goiás. 

O objetivo central do projeto é garantir o escoamento da produção de energia renovável do Nordeste, que vive um boom de usinas eólicas e solares. 

O prazo de conclusão do empreendimento é de seis anos, afirmou o vice-presidente da State Grid Brasil, Ramón Haddad, à Agência Estado. Mas, segundo ele, a empresa quer adiantá-lo para tornar o negócio mais lucrativo e atender mais rapidamente ao setor elétrico brasileiro. 

A assinatura do contrato de concessão está prevista para o dia 3 de abril, data em que o prazo começa a valer.

Impulso do investimento chinês

O leilão desse único lote representa pelo menos cinco vezes mais do que a China anunciou aportar em todo o setor em 2022, segundo dados do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), garantindo um novo impulso do investimento chinês no país já no primeiro ano da nova gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Embora o número de projetos de empresas chinesas em todas as áreas no Brasil tenha crescido 14% em 2022 em relação ao ano anterior, o valor dos investimentos foi 78% menor, segundo o CEBC, após um período marcado pela pandemia da Covid-19, dificuldades econômicas da China e uma retórica anti-China do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

O leilão de dezembro foi celebrado pelo mercado e pelo governo federal, mas também lançou um desafio a Lula: o de definir sua política energética em meio à urgência de combater as mudanças climáticas.

O Brasil registrou um crescimento expressivo em energias renováveis, e o presidente tem regularmente apresentado seu governo como um defensor das causas ambientais, mas também enfrentou críticas por seus sinais confusos sobre a expansão da produção de petróleo do país.

Especialistas ouvidos pelo Diálogo Chino reconhecem que os novos investimentos em linhas de transmissão podem ajudar a eliminar gargalos na infraestrutura de energia e, ao mesmo tempo, fomentar a transição energética do país. Porém, eles também afirmam haver riscos que não devem ser desprezados, como a possibilidade de o certame acabar impulsionando outras fontes de energia poluentes.

Linha de transmissão da State Grid no Brasil
(Fonte de dados: ANEEL, Global Energy Monitor; Mapa: Diálogo Chino)

Os dois lados do leilão

Ao festejar o resultado do leilão, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defendeu que o certame vai “reforçar os investimentos em energias limpas e renováveis, como eólica, biomassa e solar, fazendo com que o Brasil se consolide ainda mais como grande protagonista da transição energética no mundo”.

Mas, na prática, a realidade pode ser outra. O consultor do programa de energia do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Anton Schwyter, sustenta que as novas linhas de transmissão podem trazer um efeito colateral, como permitir a construção de usinas térmicas no Nordeste.

Schwyter lembra que, em 2022, na lei que permitiu a privatização da estatal de energia Eletrobrás, o Congresso Nacional impôs a contratação de termelétricas a gás natural. O argumento era o de garantir a segurança energética do sistema nacional na fase de transição da privatização da estatal. 

Mas, naquele mesmo ano, o leilão para contratar as usinas térmicas não atraiu interessados no Nordeste, em parte pela deficiente infraestrutura de energia da região. Mas agora, com a construção de linhas de transmissão, segundo o especialista, esses projetos podem sair do papel.

Operários no Complexo Termelétrico de Parnaíba, no Maranhão
Operários no Complexo Termelétrico de Parnaíba, no Maranhão. Analistas alertam que nova linha de transmissão pode atrair investimentos em usinas fósseis no Nordeste (Imagem: Saulo Cruz / Ministério de Minas e Energia)

“Por trás das linhas de transmissão, há uma ideia de construir mais usinas térmicas, principalmente no Nordeste”, afirmou Schwyter ao Diálogo Chino. “Essa orientação é um contrassenso. Um passo importante seria parar de construir usinas fósseis”.

Há também dúvidas sobre a viabilidade das linhas de transmissão no longo prazo em meio ao avanço da geração distribuída — a produção descentralizada, que normalmente utiliza fontes renováveis e visa apoiar o consumo local ou doméstico.

“Cada vez mais, você pode ter energia que você mesmo produz. Com o passar do tempo, isso vai crescer muito”, explicou Schwyter. “Me pergunto se faz sentido construir linha de transmissão para lá e para cá quando o caminho é cada um ter o seu [sistema elétrico]. As linhas são para ficar 40 ou 50 anos, mas podem ficar inúteis e obsoletas em pouco tempo, mesmo que usem tecnologia de ponta”.

O Idec é uma das organizações da sociedade civil engajadas na Coalizão Energia Limpa, que defende a progressiva eliminação de fontes de energia fósseis. “A transição energética e a reforma do setor elétrico são fundamentais”, disse Priscila Morgon Arruda, coordenadora do programa de energia do Idec.

Entre as mudanças necessárias, Arruda menciona a necessidade de políticas públicas que combatam o desperdício de energia no sistema nacional, como forma de reduzir a necessidade de investimentos em novas usinas de grande porte e de baratear a conta de luz brasileira — a mais cara entre 34 países listados pela OCDE. 

Ela defende ainda que os projetos mirem a eliminação da pobreza energética, termo que se refere à falta de acesso à energia elétrica e é realidade em boa parte das comunidades remotas da Amazônia.

Riscos socioambientais

Uma das questões sérias que precisa ser observada neste tipo de empreendimento são os possíveis impactos socioambientais por onde as linhas de transmissão vão passar, alerta Lívio Ribeiro, pesquisador associado da Fundação Getulio Vargas (FGV) e sócio da BRCG, empresa que presta consultoria econômica sobre a China. 

O pesquisador ressalta ser necessário “evitar o que aconteceu em outros projetos no país” nos quais comunidades locais não foram consultadas. “Isso gera conflitos pela necessidade de entrada na terra indígena. O diálogo deve ser feito com as pessoas que lá habitam, com a mediação do Ibama [órgão de proteção ambiental] e da Funai [agência de proteção aos povos indígenas]”, diz.

Vista aérea da Fazenda Quina, na Bahia
Vista aérea da Fazenda Quina, na Bahia, cujos moradores questionam a falta de transparência e diálogo de empresas que construíram turbinas eólicas perto de suas casas (Imagem: Camilo Lobo / Diálogo Chino)

O edital de licitação do leilão estipula que a empresa vencedora é responsável por “cumprir o disposto na legislação ambiental aplicável, tomar todas as providências necessárias junto ao órgão licenciador, por sua conta e risco, e cumprir todos os seus requisitos”. Para participar da licitação, a State Grid apresentou um plano ambiental e incluiu no orçamento os custos para o cumprimento da legislação ambiental.

Ao Diálogo Chino, o Ministério de Minas e Energia informou que as terras indígenas Kreny e Ava-Canoeiro são as mais próximas do projeto e que se encontram a cerca de 40 quilômetros das estações previstas. O órgão ressaltou que a documentação do impacto ambiental entregue pela State Grid seguiu as diretrizes da Empresa de Pesquisa Energética.

A StateGrid também confirmou ao Diálogo Chino que o projeto não interfere em terras indígenas ou territórios quilombolas formalmente instituídos e reforçou o compromisso com a sustentabilidade do projeto. A empresa acrescentou que a implantação e a operação das linhas de transmissão “são realizadas  com as melhores práticas ambientais visando à preservação do meio ambiente, no âmbito do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, já em andamento”.

O Brasil está preparado, tem um arcabouço regulatório socioambiental. Certamente, os chineses vão seguir as regras do país
Luiz Augusto Figueira, pesquisador da FGV

Porém, há casos anteriores de impactos socioambientais ligados a empresas chinesas e investimentos estrangeiros de instituições financeiras. No ano passado, organizações latino-americanas levantaram acusações de violações cometidas por empresas chinesas a um órgão de direitos humanos da ONU e cobraram um maior diálogo com as organizações chinesas.

Ribeiro pondera que, ainda que existam riscos, o investimento chinês está cada vez mais consciente: “Há dez anos, o chinês investia sem saber que poderia impactar uma comunidade quilombola. O que percebo que acontece com o tempo, em vários vetores de investimento, é que ele foi entendendo a dinâmica de outros países, como os da América Latina”. 

Luiz Augusto Figueira, pesquisador da FGV e ex-executivo da Eletrobras, acrescenta que, no Brasil, os órgãos governamentais estão cada vez mais criteriosos para liberar empreendimentos: “Tudo vai depender do respeito às regras e da fiscalização. O Brasil está preparado, tem um arcabouço regulatório socioambiental. Certamente, os chineses vão seguir as regras do país”.

Por que chineses investem na energia brasileira?

A State Grid, vencedora do leilão de dezembro, aportou no Brasil em 2010, e hoje detém 19 concessionárias e outras cinco concessões por meio de consórcios. “A vinda da State Grid marcou fortemente o interesse chinês na transmissão de energia”, disse Figueira. 

Para Figueira, a estatal chinesa enxergou “uma grande oportunidade” de expandir as operações em um país que tem uma infraestrutura de transmissão semelhante à que desenvolve em seu país: a tecnologia de rede contínua, como a das linhas leiloadas em dezembro, reduz perdas e custos em longas distâncias. Outro fator, segundo o pesquisador, é o acesso da estatal a financiamento a custo baixo e a fornecedores chineses da cadeia de produção do setor.

O interesse chinês em setores como o de energia na América Latina e do Caribe tem se mantido estável nos últimos anos, mesmo com flutuações internacionais e de mercado, mas há mudanças de padrões nos novos acordos e projetos, segundo um relatório recente da Inter-American Dialogue: “de uma preferência em participar de ativos de petróleo para um foco crescente na negociação de energias renováveis”.

No contexto brasileiro, o foco chinês no petróleo continua forte, e Ribeiro lembra que a China, segunda maior consumidora de petróleo do mundo atrás dos Estados Unidos, fez grandes aportes junto à Petrobras para explorar óleo nas camadas pré-sal da Bacia de Santos, no Sudeste.  

Mas a vitória da State Grid segue a tendência de investimentos das empresas chinesas que migram para as indústrias de energia verde e automotiva elétrica. “O que a China faz no Brasil não é muito diferente do que faz no mundo”, disse Ribeiro, da FGV.