Ligar o ventilador para aplacar o calor, beber um copo de água gelada e acessar a internet em casa só se tornaram possíveis para os 80 moradores da Vila Limeira, na Reserva Extrativista (Resex) Médio Purus, há menos de um ano, com a instalação de um sistema de energia solar.
A comunidade ribeirinha foi fundada na década de 1950, mas até recentemente usufruía de apenas três horas de energia elétrica por dia. Ela era fornecida por um gerador a diesel, que consumia 300 litros de combustível e custava R$ 2 mil por mês.
Em junho de 2021, o projeto Vila Limeira 100% Solar conectou 35 unidades, entre casas, centro comunitário, igreja e escola a uma pequena usina de geração de energia solar, transformando a comunidade na primeira do sul do Amazonas a ter energia renovável 24 horas por dia.
“Era um isolamento que a gente vivia. E a maioria das comunidades ao nosso redor ainda vive isolada, porque até para termos comunicação, a gente precisa de energia,” afirmou Napoleão Oliveira, presidente da associação de moradores local.
Vila Limeira está localizada em Lábrea, uma das 251 localidades do país não conectadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN) e que, por isso, requerem uma geração independente de energia. Com exceção de Fernando de Noronha, em Pernambuco, todas estão na Amazônia Legal, região que compreende nove estados da bacia amazônica.
A energia das grandes hidrelétricas construídas em rios amazônicos na última década, portanto, não serviu para suprir a região, e sim para ser distribuída pelo país. Áreas extensas do Amazonas, Pará, Acre, Rondônia e Roraima carecem de infraestrutura para serem conectadas ao sistema nacional. Nesses locais, mais de 90% da energia gerada vem do diesel.
99%
das um milhão de pessoas sem nenhum acesso à energia elétrica vivem na Amaônia Legal
“Essa energia é mais cara e poluente”, diz Alessandra Mathyas, analista de conservação da WWF-Brasil, organização responsável pelo projeto na comunidade ribeirinha.
Além disso, o Brasil ainda tem cerca de um milhão de pessoas sem nenhum acesso à energia elétrica — e 990 mil estão na Amazônia Legal, segundo estimativas do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). Lançado há quase 20 anos, o Programa Luz Para Todos conseguiu levar eletricidade para 14 milhões de pessoas de todo o país, mas as comunidades remotas da região ficaram desassistidas, de acordo com o instituto.
Por isso, a fase mais recente do programa está focada na Amazônia. Como parte dele, o governo federal contratou uma concessionária regional para instalar painéis solares em áreas remotas do entorno da capital de Manaus e de seis municípios às margens do rio Purus, como em Lábrea, por onde avança a nova fronteira do desmatamento da região.
Assim fica cada vez mais claro o potencial de geração de energia solar na Amazônia, embora a expansão de sua infraestrutura ocorra a passos bastante lentos. “A política é boa, a implementação é outra coisa. Os números ainda são quase insignificantes”, disse Ciro Campos, consultor do Instituto Socioambiental (ISA). “O programa não está decolando como deveria”.
Energia solar é alternativa sustentável para Amazônia
Mathyas explica que para a Amazônia, “o melhor e mais barato” seria investir na geração distribuída de energia solar — aquela produzida pelos próprios consumidores. Esse sistema não apenas evita emissões de gases do efeito estufa como também reduz os riscos de desmatamento. Isso porque, explica a analista, a energia é gerada perto do local de consumo e requer uma infraestrutura de menor impacto. Um complemento à energia solar, principalmente para comunidades remotas, seria a da biomassa, segundo ela, gerada a partir de resíduos do extrativismo, como o caroço de açaí.
No Plano Decenal de Expansão de Energia, lançado no início de abril, o governo prevê um crescimento de 363% da geração distribuída até 2031. Em março, o país ultrapassou a marca de 10 gigawatts (GW) de potência instalada de geração distribuída, dez vezes mais do que há apenas três anos, sendo 99% de energia solar. Dessa marca, no entanto, apenas 634 mil kilowatts — ou seja 6% — estão na região Norte, que compreende a maioria dos estados da Amazônia Legal, segundo dados oficiais até 6 abril.
Investir na redução da conta de luz virou um bom investimento, e isso é fundamental para a democratização da energia solar
Mas esse boom recente do setor no Brasil pode estar relacionado à aprovação do marco legal da geração distribuída. Embora o texto final ainda precise ser apreciado pelo Congresso, a previsão é que os subsídios para a área sofram cortes a partir de 2023.
“Isso também está provocando uma corrida, é o ano do ‘juízo final’ [da microgeração solar]”, disse o coordenador do Fórum de Energias Renováveis de Roraima, Alexandre Henklain.
Por outro lado, a aprovação do marco legal trouxe mais segurança jurídica ao setor, segundo Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Iema. Isso, aliado a novas linhas de financiamento, incentivos fiscais e à seca profunda que encareceu a geração elétrica do Brasil até recentemente, ajudam a explicar o bom momento para a geração fotovoltaica individual.
“Investir na redução da conta de luz virou um bom investimento, e isso é fundamental para a democratização da energia solar”, afirmou Baitelo.
Um dos principais incentivos fiscais mira no mercado externo, uma vez que hoje o Brasil depende da importação de equipamentos de geração de energia solar, principalmente da China. A partir de maio, será cortado pela metade o imposto de importação de painéis solares.
Incentivo que deve estimular um mercado já aquecido. Em uma década, o valor importado de painéis solares saltou de US$ 5,5 milhões para US$ 2,3 bilhões, quase tudo em vendas da China. Embora com um volume bem mais baixo, a mesma tendência ocorreu na Amazônia Legal, cujo valor importado foi de US$ 31 mil para US$ 13 milhões entre 2012 e 2021.
Energia solar: importância social
Entre as novas linhas de financiamento, está uma oferta de crédito do BNDES, banco de desenvolvimento nacional, para que consumidores da região Norte instalem painéis solares. O programa-piloto Amazônia Social espera financiar 1.600 instalações nos próximos anos.
O financiamento pode impulsionar projetos de áreas remotas que já se espalham pela região amazônica. O CEAPS, uma ONG socioambiental, levou energia solar para mais de cem domicílios, além de escolas, pousadas comunitárias e postos de saúde da Resex Tapajós, no oeste do Pará. Já o ISA instalou sistemas fotovoltaicos em 80 aldeias do Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso.
A Fundação Amazônia Sustentável (FAS) coordena a instalação de sistemas fotovoltaicos em comunidades ribeirinhas do Amazonas, os quais contribuem para fomentar o turismo, a pesca e suprir pequenas usinas de beneficiamento de óleos vegetais.
O sistema mais recente foi instalado há dez meses na comunidade Santa Helena do Inglês, na reserva do Rio Negro, próxima a Manaus. Lá, a energia fotovoltaica garante a iluminação de ruas, centro comunitário, igreja, campo de futebol, além das casas de seus 96 moradores.
“A meta é reduzir em 50% o uso de combustíveis fósseis de geradores a diesel [na comunidade]”, explica Gabriela Sampaio, que coordena o programa pela FAS.
Hoje, embora as iniciativas de energia solar em áreas remotas não sejam representativas nas estatísticas nacionais, elas têm uma importância que não pode ser desprezada, defende o doutor em planejamento de sistemas energéticos pela Unicamp, André Frazão Teixeira.
“Do ponto de vista social, esses projetos são muito importantes”, diz Teixeira, uma vez que “aliam o desenvolvimento econômico com o sustentável”.
Usinas solares ganham o Amazonas
A geração centralizada de energia, essa sim conectada ao sistema nacional, também tem avançado com a construção de novas usinas solares. De 2017 até fevereiro deste ano, a potência instalada quase quintuplicou e atingiu os 4,7 GW, segundo a Absolar, associação do setor. O rápido avanço, no entanto, não ocorreu nos estados da Amazônia Legal.
O Amazonas é o que mais carece de infraestrutura para o desenvolvimento energético: quase 40% das localidades sem conexão com o sistema elétrico nacional estão no estado. Mas a aprovação recente de incentivos fiscais e o lançamento do maior projeto de energia solar do estado podem começar a mudar essa realidade.
Temos um problema de segurança energética, um problema político e também um problema econômico para o avanço da energia solar fotovoltaica na Amazônia
A Cooperativa de Energia Renovável do Amazonas (CooperSol) inaugurou duas das três usinas solares propostas para Manaus. A primeira começou a operar em 2021 e gera energia para 92 pessoas, enquanto que a segunda, lançada em fevereiro, beneficiou 50 pessoas.
“Nosso foco são pessoas que moram em apartamentos, queriam aderir à energia solar, mas não tinham alternativa”, disse o engenheiro Jamil Chaar, sócio da Coopersol e diretor da Expertise Energia, associada da cooperativa e construtora das usinas.
Segundo ele, as usinas são financiadas pelos próprios associados, assim como a instalação dos painéis solares. Depois, a energia gerada é destinada à rede da concessionária regional, que converte a produção em créditos e os transfere aos associados. Eles podem reduzir em até 75% a conta de luz e recuperar seus investimentos em até cinco anos, segundo Chaar. A expectativa é que a demanda de associados aumente 200% este ano.
“Para a terceira usina [em construção], estamos mirando em empresários que têm consumo de R$ 5 mil a R$ 8 mil e não têm como produzir energia”, ele explicou.
Desafios da energia solar
Mesmo que os sistemas solares sejam mais democráticos e flexíveis, eles enfrentam grandes obstáculos, segundo Davi Gabriel Lopes, pesquisador do laboratório de energia solar fotovoltaica Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele cita a dificuldade de manutenção dos equipamentos, o alto custo de armazenamento da energia e o lobby do setor de combustíveis fósseis, o que fica claro nos leilões nacionais, que priorizam termelétricas frente às usinas de fontes renováveis.
Campos, do ISA, pondera que o papel das hidrelétricas e termelétricas continua relevante para o país — e para a Amazônia. Afinal, hoje, a energia solar representa apenas 2,5% da matriz elétrica. “Elas seriam a garantia de reserva e oferta de energia, coisa que a energia solar e a eólica ainda não têm, por conta de seu alto custo de armazenamento. Se não tiver sol ou vento, não tem produção de energia”, explica Campos.
Mas ele concorda que o redirecionamento de incentivos públicos deve ocorrer o quanto antes. Hoje, o lobby do carvão continua atraindo apoio político para manter as termelétricas funcionando. “As energias fósseis só deveriam entrar nos leilões quando não houvesse alternativa renovável”, diz Campos. “O espaço dos fósseis tem que ser limitado e precisa começar a ser descontinuado até o fim desta década. O tempo está acabando”.