Energia

A América Latina pode ter uma economia pós-combustíveis fósseis?

Petróleo e carvão ainda dominam geração de setores como energia e transporte. Especialistas explicam os desafios para substituí-los por fontes renováveis
<p>Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na posse da nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, em junho. Seu governo enfrenta polêmicas por seus planos de expandir a produção de petróleo enquanto se apresenta como líder ambiental (Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil)</p>

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na posse da nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, em junho. Seu governo enfrenta polêmicas por seus planos de expandir a produção de petróleo enquanto se apresenta como líder ambiental (Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil)

A América Latina tem dado passos importantes na expansão de fontes de energia renovável, como a solar e a eólica, além de manter uma base firme na geração hidrelétrica. Isso torna o sistema elétrico da região um dos mais limpos do mundo.

No Brasil, nos últimos dois anos, a energia solar teve um boom de crescimento de, em média, um gigawatt por mês. Mais ao sul, o Chile aproveita sua geografia única para instalar novas usinas eólicas e solares. O país também quer acabar com a geração a carvão até 2025 e assumiu a liderança regional em tecnologias emergentes, como hidrogênio verde e armazenamento energético com baterias. O Uruguai, por sua vez, está conseguindo eliminar os combustíveis fósseis de sua matriz elétrica graças ao desenvolvimento das eólicas. As energias renováveis foram responsáveis por quase 90% da geração uruguaia em 2023, chegando a bater 99% em anos recentes.

Porém, ainda há grandes obstáculos para que as nações latino-americanas descarbonizem seu fornecimento de energia, sobretudo em setores como transporte e indústria. A maioria dos países da região ainda é muito dependente de combustíveis fósseis não apenas para sua segurança energética, mas também como uma fonte importante de exportações e empregos. Para essas nações, a transição não é apenas uma questão ambiental — é um problema econômico espinhoso.

Na Colômbia, por exemplo, o presidente Gustavo Petro tem mantido um discurso firme contra a eliminação dos combustíveis fósseis, com ações concretas a nível local. Porém, a economia colombiana ainda é bastante ligada à exploração de petróleo e carvão: em 2022, essas atividades representaram 55% das exportações de bens e cerca de 6% do PIB do país.

O Equador e a Venezuela enfrentam problemas semelhantes: o petróleo bruto representou 27% das exportações equatorianas em 2022; e ainda representa quase 60% do orçamento público venezuelano, apesar da crise e do colapso de sua produção na última década.

Queima de gás em meio a árvores perto de área residencial
Queima de gás perto de área residencial de Enokanki, na província de Orellana, Equador (Imagem: Patricio Terán / Dialogue Earth)

Até mesmo no Brasil, que tem se apresentado como um líder global em meio ambiente e transição verde, o petróleo representou mais de 16% das exportações em 2022 e gerou US$ 56 bilhões em receitas. Os planos brasileiros de continuar expandindo a produção são alvo de fortes críticas de ambientalistas.

Diante de uma estimativa de queda na demanda global por combustíveis fósseis nas próximas décadas, a transição energética e a criação de uma economia pós-combustíveis fósseis representam sérias questões para essas nações. O Dialogue Earth conversou com quatro especialistas em energia e meio ambiente para entender a escala desse desafio, as atividades que podem reformular o atual modelo econômico e o caminho a ser seguido pela região nesse novo contexto.

Carlos Nobre

Climatologista brasileiro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

Vemos discussões sobre a transição energética avançando na América Latina, mas empresas de combustíveis fósseis, como a Petrobras, são muito poderosas e bloqueiam qualquer progresso. A energia solar, por exemplo, já cria mais empregos do que os combustíveis fósseis e é mais barata. A transição energética deveria ser mais rápida. No entanto, as empresas de combustíveis fósseis querem manter seu status quo, agora com a remoção do dióxido de carbono, que ainda é muito cara e continua sendo um ponto de incerteza. O potencial da energia solar, eólica e do hidrogênio verde é tão grande que não há necessidade disso.

O que é o hidrogênio verde?

A demanda por hidrogênio avança, porque não emite gases poluentes quando queimado.

⚪️ Boa parte desse gás, no entanto, é produzido a partir de combustíveis fósseis — e, nesse caso, é conhecido como hidrogênio cinza.

🔵 O hidrogênio azul também é produzido a partir de combustíveis fósseis, mas o processo usa tecnologia de captura e armazenamento de carbono, impedindo que as emissões de gases de efeito estufa resultantes cheguem à atmosfera.

🟢 O gás só pode ser classificado como hidrogênio verde se for produzido inteiramente a partir de fontes renováveis.

Também estamos discutindo com frequência uma nova economia para o Brasil e outros países amazônicos. Os sistemas agroflorestais, por exemplo, geram mais lucros e contratam mais trabalhadores por hectare do que as indústrias de gado ou soja. Em geral, é muito melhor para a economia. É possível melhorar a subsistência de milhões de pessoas. O grande desafio é como criar mercados globais para esses produtos florestais. Apenas uma pequena porcentagem do PIB do Brasil vem da biodiversidade. Melhorar os mercados para esses produtos baseados na biodiversidade poderia gerar mais lucros, contratar mais pessoas e manter a floresta em pé. Já usamos mais de sete mil produtos da biodiversidade global em nossa história como seres humanos, mas agora temos uma dieta concentrada em apenas alguns produtos de origem animal e grãos. Esses setores são economicamente potentes, e não lhes convêm desenvolver uma bioeconomia com centenas de produtos.

Isabel Cavelier

Cofundadora da Mundo Común, organização ambiental com sede na Colômbia

Para fazer a transição para uma economia descarbonizada na América Latina, a primeira coisa a entender é que a economia precisa de uma melhor distribuição. Hoje, a riqueza está concentrada, e isso significa que estamos presos à ficção de que sempre precisamos de mais crescimento e demanda de energia e, portanto, de emissões. Embora a ideia de decrescimento seja possível para alguns países da América Latina, o principal é entender que precisamos redistribuir melhor os recursos e a energia que usamos. 

A transição exigirá, naturalmente, a substituição do uso de energia de fontes fósseis — e não apenas nos sistemas de eletricidade — para outras fontes menos prejudiciais. Quanto mais demorarmos, mais caro será o processo, e isso exigirá decisões impopulares. Acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis, por exemplo, tem um impacto direto no bolso das pessoas. Isso exigirá muita vontade política dos líderes, que deverão estar dispostos a perder capital político em troca de decisões necessárias para a transição.

Técnicos instalam sistema elétrico alimentado por painéis solares em Cantel, Guatemala
Técnicos instalam sistema elétrico alimentado por painéis solares em Cantel, Guatemala. A capacitação profissional e as vagas de trabalho em novos setores são fundamentais para uma transição energética justa (Imagem: Jake Lyell / Alamy)

Precisaremos investir os recursos disponíveis não apenas em nosso bem-estar socioeconômico de curto prazo — que geralmente fazemos devido às várias necessidades em nossa região —, mas também em outros setores que proporcionem uma renda não vinculada aos combustíveis fósseis. Embora isso soe bem no discurso, na prática é complexo, porque não há setores da economia que consigam cumprir o mesmo papel. É por isso que essas decisões são controversas e impopulares.

Por fim, o mais importante será a vontade dos cidadãos. Temos que redefinir o que é bem-estar, que não é necessariamente consumir cada vez mais recursos e mais energia. Temos que encontrar outras maneiras de alcançar o bem-estar pessoal ou coletivo sem que isso represente mais e mais energia. A transição não funcionará se não mudarmos a forma de entender nosso bem-estar.

Juan José Guzmán

Economista e consultor em finanças e políticas de adaptação no Atlantic Council

Há três níveis nessa discussão: o primeiro é mais filosófico sobre o papel da economia, o segundo é sobre a definição do problema e o terceiro é o “como”.

Primeiro, não vivemos em um sistema capitalista. A ideia que muitas pessoas replicam é que vivemos em um mercado liberal desde a década de 1980. Mas se olharmos com calma, veremos que ele é liberal para alguns e não para outros. Os Estados Unidos e a União Europeia recomendam, por meio de seu papel no Fundo Monetário Internacional, cortes fiscais, e isso se traduz em austeridade em nossos países [do Sul Global]. Mas quando você olha para as economias desenvolvidas, elas não seguem essa receita. Isso não é capitalismo: é uma intervenção para beneficiar poucos.

Em segundo lugar, questiona-se o fato de o capitalismo ter nos levado até onde estamos. Em parte isso é verdade, mas em parte não, porque nós [na América Latina] não vivemos sob o capitalismo. A transição econômica começa com a criação de um capitalismo real, que não seja um capitalismo selvagem, mas um capitalismo que use o mercado para atingir objetivos sociais. Isso inclui começar a entender que são necessárias muitas transições, como a estatal, a privada e a política. Temos um modelo de desenvolvimento na América Latina em que exportamos carvão e carbono, e isso exige uma transição de exportação. Somos viciados no que já temos: é fácil produzir petróleo, soja e carne em grande escala e a baixo custo. Mas já há alternativas para deixar essas atividades, especialmente o carvão.

Fronteira entre uma plantação de soja e a vegetação nativa no território indígena Wawi
Fronteira entre uma plantação de soja e a vegetação nativa no território indígena Wawi, no estado de Mato Grosso (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

Por fim, há a questão de “como” fazer a transição. É muito difícil porque você está dizendo a setores inteiros que existem há décadas que, de repente, eles não podem mais estar lá ou que precisam continuar com condições menos atraentes. Parte da resposta está em não subsidiar o risco. Quando ocorre um desastre em nossos países, o Estado entra em cena para pagar pelos danos. Isso dá às pessoas um salvo-conduto para que elas não se sintam motivadas a fazer a transição. As discussões sobre o tema não acontecem em um nível amplo e, quando ocorrem, são feitas de forma emergencial. Quando os sindicatos do carvão fazem exigências porque as minas estão fechando, por exemplo, o governo se torna mais reativo. Não há um gerenciamento de prevenção de riscos.

Paola Yanguas Parra

Consultora de políticas sobre energia no Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (IISD)

A significativa capacidade hidrelétrica da América do Sul e o rápido crescimento da geração eólica e solar tornam a região líder em eletricidade limpa. No entanto, muitos países dependem da venda de carvão, petróleo e gás para financiar os gastos públicos e para subsidiar fortemente esses combustíveis internamente. Essa receita é cada vez mais arriscada desde que os governos do mundo concordaram, nas negociações climáticas da COP28, em fazer a transição para longe dos combustíveis fósseis nos sistemas de energia.

A ciência mostra que não há espaço para novos projetos de petróleo e gás em um limite de aquecimento global de 1,5 °C. Os investimentos em projetos de fronteira, como o petróleo da Guiana e o depósito de gás de Vaca Muerta, na Argentina, correm o risco de ficarem perdidos à medida que a transição global para a energia limpa se acelera. No entanto, os incentivos de curto prazo para lucrar são tentadores para os políticos que buscam financiar promessas eleitorais. É necessária uma visão alternativa de desenvolvimento.

Green-yellow grassy field in front of a row of oil drills, Vaca Muerta Argentina
Poços de petróleo não convencional nas reservas de Vaca Muerta, na cidade de Añelo, província argentina de Neuquén. Apesar da urgência da transição energética, o país apostou na produção petrolífera em nome da recuperação econômica (Imagem: Emiliano Ortiz, CC BY-NC)

Para criar uma economia pós-combustível fóssil na América do Sul, os governos podem aproveitar sua vantagem comparativa em energias renováveis. A energia eólica e solar podem eletrificar setores como o transporte e criar indústrias alternativas de exportação. Brasil, Argentina, Colômbia e Chile têm alguns dos custos de produção mais baixos do mundo para hidrogênio verde e amônia, cada vez mais procurados para descarbonizar indústrias pesadas em todo o mundo.

Também pode haver oportunidades na produção de minerais essenciais necessários para a transição, como cobre, níquel, lítio e terras-raras. É necessário muito cuidado para evitar danos socioambientais comumente associados aos setores extrativistas na região. Os governos devem cooperar para estabelecer padrões regulatórios firmes e evitar uma corrida para o fundo do poço, além de aprender uns com os outros em áreas como a diversificação econômica.

Por fim, a região precisará de um grande financiamento público e privado para essa transformação. A maioria dos países da região é considerada de alto risco para os investidores, com altos níveis de endividamento e baixas pontuações de crédito. A comunidade internacional deve encontrar maneiras de apoiar, e não penalizar, o afastamento da dependência de combustíveis fósseis e a transição econômica que isso implica.