Em 2024, a jurista Elisa Morgera, professora de direito ambiental internacional na Universidade de Strathclyde, na Escócia, foi nomeada relatora especial das Nações Unidas para a promoção e proteção dos direitos humanos frente às mudanças climáticas, tornando-se a segunda ocupante do cargo desde sua criação em 2021.
Relatores especiais da ONU são especialistas independentes em direitos humanos responsáveis por monitorar e orientar sobre questões relacionadas ao tema.
Desde que assumiu o cargo, Morgera elaborou três relatórios, incluindo um sobre a necessidade de “descarbonizar” nossas economias. Um quarto relatório sobre minerais críticos está em produção. Após visita recente a Vanuatu, pequena nação insular no Pacífico, ela descreveu como o clima extremo afeta os direitos humanos no país.
Em entrevista ao Dialogue Earth, Morgera destaca a necessidade de eliminar os combustíveis fósseis e avançar com a transição para as energias renováveis, mas sem perpetuar violações aos direitos humanos. Ela também menciona o impacto da extração de minerais críticos em comunidades próximas às zonas de exploração e a necessidade de melhorar a governança climática.
Dialogue Earth: Como você define seu papel e que impacto espera ter?
Elisa Morgera: O objetivo do meu mandato é encontrar formas de melhorar a proteção dos direitos humanos no contexto das mudanças climáticas, analisando os impactos desiguais da crise climática e esclarecendo quais são as obrigações de Estados e empresas em relação à proteção dos direitos humanos. Após minha nomeação, preparei dois relatórios para analisar esse cenário, sintetizando o trabalho de outros relatores da ONU sobre mudanças climáticas e direitos humanos, além de ter um olhar sobre o acesso à informação. Em seguida, iniciei um processo de diálogo com representantes de Estados, populações vulneráveis, ativistas, crianças e organizações de todas as regiões do planeta.
Disso, surgiu a necessidade de priorizar soluções climáticas mais eficazes para a proteção dos direitos humanos, com base na melhor ciência disponível. Atualmente, os governos não priorizam soluções desse tipo com base na legislação climática. Este ano, meu primeiro relatório focou na eliminação dos combustíveis fósseis como uma questão de direito internacional dos direitos humanos — o documento foi respaldado por evidências científicas a respeito dos impactos humanitários dos combustíveis fósseis em todo seu ciclo de vida.
Quais são as questões mais urgentes nessa conexão dos direitos humanos com as mudanças climáticas atualmente?
Mesmo que tenhamos ultrapassado o limiar de 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais na temperatura média do planeta no ano passado, isso não significa que essa barreira tenha sido totalmente derrubada. Não devemos desistir da urgência de ter ações climáticas para manter o aquecimento global abaixo desse 1,5 °C. É importante adotar medidas eficazes visando à eliminação dos combustíveis fósseis e transição para as energias renováveis – desde que isso seja eficaz para mitigar a crise climática e não viole os direitos humanos, sobretudo daqueles mais afetados por eventos climáticos.
Meu segundo relatório deste ano será baseado nos direitos humanos para as energias renováveis, incluindo os minerais críticos. A transição energética não trata apenas de energia, mas também de como protegemos a natureza, a água e os alimentos. Estou muito feliz que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu recente parecer consultivo sobre a emergência climática, tenha enfatizado a necessidade de proteger o clima como parte dos sistemas de suporte à vida neste planeta.
Ficou satisfeita com o parecer final?
Apoio totalmente as conclusões da Corte Interamericana. Ela se baseou no trabalho de mais de 20 relatores especiais da ONU, aproveitando o que aprendemos com as populações que tiveram seus direitos humanos violados e esclarecendo as obrigações jurídicas internacionais no âmbito do sistema da ONU. O parecer consultivo é tão abrangente quanto esperávamos, fornecendo orientações detalhadas sobre direitos humanos e mudanças climáticas. Um aspecto notável do parecer é que o tribunal reforçou que suas conclusões não se baseiam apenas no sistema jurídico interamericano, mas também, em grande medida, no direito internacional geral, relevante para todos os Estados.
A América Latina assiste a um crescente ‘extrativismo verde’ na busca por minerais para a transição energética. Como os governos e as empresas devem conduzir essa transição de modo a respeitar os direitos humanos?
O Triângulo do Lítio [região que compreende Argentina, Bolívia e Chile] é alvo de extração há mais de dez anos, mas vemos que a busca por minerais críticos para a transição energética ocorre em todas as regiões do mundo. Desde que assumi este cargo, ouvi muitos relatos de comunidades sobre a violação de seus direitos humanos no contexto de exploração desses minerais.
Se a busca por minerais críticos seguir a mesma lógica econômica da indústria de combustíveis fósseis, não enfrentaremos a crise climática de forma eficaz
Precisamos questionar nossa demanda por energia. Se a busca por minerais críticos seguir a mesma lógica econômica da indústria de combustíveis fósseis — modelo em descompasso com os direitos humanos e os limites do planeta —, então não enfrentaremos a crise climática de forma eficaz. A busca por minerais críticos não se justifica sem uma abordagem integrada de sustentabilidade ambiental e dos direitos humanos. Se as atividades que visam mitigar as mudanças climáticas emitem grandes quantidades de gases de efeito estufa e atrapalham o papel da natureza na regulação do clima, seguiremos prejudicando o clima, e não podemos permitir que isso aconteça.
Como os Estados devem garantir a participação efetiva de povos indígenas, jovens e outros grupos marginalizados na tomada de decisões sobre o clima?
O Acordo de Escazú e a Convenção de Aarhus são fundamentais para isso, pois focam na participação pública para a tomada de decisões relacionadas ao meio ambiente e aos direitos humanos. Outros tratados globais de direitos humanos estabelecem obrigações de acesso à informação, garantindo que os cidadãos tenham informações acessíveis para exercer o direito de participar na tomada de decisão e no acesso à justiça. Os Estados precisam abrir seus processos de tomada de decisão, permitindo que ativistas contribuam. As decisões devem ser baseadas nessas contribuições, fornecendo garantias de acesso à justiça caso os direitos humanos sejam violados no contexto das mudanças climáticas.
Qual é a responsabilidade de empresas privadas — sobretudo as de combustíveis fósseis e outras indústrias extrativas — na defesa dos direitos humanos frente à crise climática?
Precisamos de legislações nacionais muito mais claras sobre as responsabilidades das empresas na eliminação dos combustíveis fósseis. Seguindo o conceito de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” dos países que contribuem para o agravamento da crise climática, a eliminação desse setor não será igual em todos os lugares. Ainda assim, as leis nacionais precisam deixar claro que os combustíveis fósseis já não são mais um setor viável para o futuro.
Também precisamos de uma legislação que explique como as empresas devem proteger os direitos humanos no contexto das mudanças climáticas. Vemos isso em alguns países, mas precisamos avançar. As empresas precisam avaliar de antemão se alguma de suas atividades ou cadeias de valor pode ter impactos negativos sobre os direitos humanos e tomar medidas preventivas, compartilhando essas informações com a população, criando espaços para o diálogo e aceitando reclamações caso essas medidas não pareçam adequadas para proteger os direitos humanos das comunidades potencialmente afetadas.
Há lacunas estruturais na governança climática global que prejudicam a proteção dos direitos humanos?
Não estamos incluindo suficientemente a biodiversidade, os oceanos, a saúde e a experiência das pessoas afetadas pelas mudanças climáticas como parte da governança climática. Isso nos ajudaria a evitar os mesmos erros do passado — comprometendo a água, os alimentos, a natureza e os direitos das pessoas. Outro desafio é enfrentar o lobby e o poder de certas indústrias nos espaços de política climática, já que eles desviam a atenção de questões prioritárias para assuntos secundários ou sem comprovação na mitigação das mudanças climáticas. Precisamos abordar os conflitos de interesse em qualquer espaço de governança climática e ser mais claros sobre quais soluções climáticas devem ser priorizadas.
Quais são suas expectativas para a conferência climática COP30 no Brasil em novembro deste ano?
Precisamos de mais inclusão no processo de tomada de decisão, garantindo que os ativistas do meio ambiente e as populações vulneráveis possam contribuir para as negociações da COP30. Ao mesmo tempo, devemos enfrentar os conflitos de interesse e o número crescente de lobistas do setor de combustíveis fósseis que integram as delegações nacionais. Também é necessário um processo mais claro para monitorar o avanço na eliminação dos combustíveis fósseis. Caso contrário, a cúpula climática continuará perdendo credibilidade. Além disso, precisamos garantir que as NDCs [planos de ação climática dos países, conhecidos como contribuições nacionalmente determinadas] estejam alinhadas com a meta de limitar o aquecimento global a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, mas não há clareza sobre quem vai cobrar os Estados que não apresentaram NDCs suficientemente ambiciosas. Se todas essas expectativas não se concretizarem na COP30, haverá dúvidas se as COPs são realmente espaços para ações climáticas significativas.

