Nos últimos anos, vários estudos científicos alertaram para o fato de que a Amazônia está próxima de um “ponto sem retorno” (ou o tipping point), devido aos altos índices de desmatamento e degradação. Agora, outro relatório alerta que, em menos de três anos, a maior floresta tropical do mundo pode atingir esse patamar irreversível, levando à crescente liberação de emissões de carbono, que vai desestabilizar o clima do planeta e seus esforços para mitigar o aquecimento global.
26%
da superfície da Amazônia foi desmatada ou degradada, de acordo com um novo relatório da Rede Amazônica de Informações Socioambientais Georreferenciadas (RAISG).
Na Quinta Cúpula Amazônica dos Povos Indígenas, realizada em Lima no início de setembro, foi divulgado o relatório Amazônia Contra o Relógio, que traz uma avaliação sobre a proteção da Amazônia até 2025. Os resultados são pouco otimistas.
A Rede Amazônica de Informações Socioambientais Georreferenciadas (RAISG), autora do documento, revelou que o desmatamento e a degradação já atingiram 26% de toda a região amazônica, de acordo com dados de 1985 a 2020. Desse percentual, 20% — uma área três vezes maior que a da França — já foi transformada irreversivelmente, principalmente em campos agrícolas ou pastagens.
Alguns observadores, como Ernesto Ráez Luna, ecologista e diretor-executivo do Instituto del Bien Común no Peru, sentem que o prazo para evitar esse ponto de virada já pode ter passado. “2025 não é um prazo final, e sim um reflexo da urgência de medidas relevantes”, disse ao Diálogo Chino. “O ponto de não retorno implica uma liberação gigantesca de emissões que fará descarrilar qualquer esforço para deter uma mudança climática catastrófica”.
Precisamos de outro modelo econômico que respeite e permita a vida. Se não o fizermos, estaremos nos condenando à extinção
De fato, algumas áreas da Amazônia, particularmente no Brasil, já emitem mais carbono do que sequestram, de acordo com um estudo publicado na Nature no ano passado.
Neste contexto, a proteção da Amazônia é mais urgente do que nunca, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), que representa 511 grupos indígenas dos nove países amazônicos. O órgão tem liderado as campanhas para proteger 80% da floresta e evitar esse ponto de inflexão. A meta também foi ecoada no congresso da União Internacional para a Conservação da Natureza, ano passado, do qual surgiu a coalizão Amazônia pela Vida, para proteger 80% do bioma até 2025.
“Queremos avançar porque os governos não vão cumprir a meta de 2030 [Agenda 2030], vão passá-la para 2060, mas aí não haverá mais tempo”, disse José Gregorio Díaz Mirabal, coordenador da COICA, ao Diálogo Chino, referindo-se ao ritmo lento das negociações climáticas. “Queremos proteger 80% da Amazônia e, para isso, precisamos de outro modelo econômico que respeite e permita a vida. Se não o fizermos, estaremos nos condenando à extinção”.
A agonia da Amazônia
Só o Brasil e a Bolívia são responsáveis por 90% do desmatamento e da degradação da Amazônia, de acordo com o relatório. Em ambos os países, houve um processo de savanização — a transformação das florestas tropicais em ambientes de savana —, com 34% da Amazônia brasileira e 24% do lado boliviano transformados.
Além disso, neste mês de agosto, o Brasil registrou um novo recorde de incêndios florestais, com o maior número de queimadas registradas para o mês em 12 anos, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
“Embora os povos indígenas não tenham orçamentos nacionais, sua subsistência e a forma como olham para a Amazônia tiveram um impacto muito positivo em sua conservação”, disse Quintanilla, da Fundação Amigos da Natureza.
Entretanto, essas áreas não estão isentas de ameaças. A expansão da fronteira agrícola — uma das principais causas do desmatamento — cresceu 160% dentro de áreas protegidas e 220% em territórios indígenas entre 2001 e 2018, revela o relatório.
A subsistência dos povos indígenas e a forma como olham para a Amazônia tiveram um impacto muito positivo em sua conservação
Além dos danos destas incursões, a Amazônia peruana e brasileira são as áreas do bioma com maior risco de assassinatos de líderes indígenas e ativistas ambientais, de acordo com a Global Witness. Em 2020, três de cada quatro crimes contra ativistas ambientais ocorreram na região amazônica dos dois países, que ainda não ratificaram o Acordo de Escazú.
“A bacia amazônica tem sido alvo de muitos governos que a usam como moeda de troca, como no Brasil”, disse Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, na apresentação do relatório. “A falta de conscientização dos povos indígenas e o intercâmbio de nossos territórios também causou a morte daqueles que defendem a Amazônia, um massacre que não podemos permitir”.
Os comentários de Kaxuyana vieram após o assassinato de dois defensores Guajajara no estado do Maranhão, na primeira semana de setembro.
Ameaças latentes contra a Amazônia
Embora a atividade agropecuária — em particular criação de gado — continue sendo o principal motor do desmatamento, 66% da Amazônia está sujeita a outros tipos de pressões, de acordo com o estudo da RAISG. Elas incluem a mineração, a indústria petrolífera, usinas hidrelétricas e a construção de estradas.
Os blocos de petróleo ocupam pouco mais de 9% da Amazônia, uma área de 80 milhões de hectares, quase o dobro do tamanho do Japão. O mais preocupante é o Equador, onde mais da metade de sua floresta amazônica é ocupada, ou destinada a ser ocupada, por blocos de petróleo. Na sequência, o Peru tem campos de petróleo cobrindo 31% de sua área amazônica, a Bolívia com 29% e a Colômbia com 28%.
A Amazônia equatoriana, que abrange apenas 2% do bioma, concentra 18% das hidrelétricas, uma porcentagem superada apenas pelo Brasil, que abriga metade das usinas no bioma. “As hidrelétricas exercem uma pressão muito grande porque mudam completamente a dinâmica natural da água, e a ela se soma a crescente rede de estradas, que vem fragmentando ainda mais os ecossistemas”, disse Quintanilla.
Titulação de terras em disputa na Amazônia
Para evitar chegar a um ponto sem retorno, o relatório da RAISG propõe soluções como a garantia dos direitos dos povos indígenas e o reconhecimento e titulação de cem milhões de hectares de territórios disputados, declarados ou ainda em processo de identificação.
48%
da Amazônia é de áreas protegidas ou territórios indígenas. Entretanto, 86% do desmatamento ocorre fora dessas áreas, destacando a necessidade de ampliar a proteção
Áreas protegidas e territórios indígenas cobrem atualmente — e salvaguardam — metade da Amazônia. Entretanto, a outra metade não tem qualquer destinação e corre o risco de desaparecer. De acordo com o relatório, as áreas não destinadas registram os mais altos níveis de transformação e degradação, com taxas até oito vezes maiores do que as dos territórios indígenas.
Para Díaz Mirabal, coordenador da COICA e líder da etnia Wakuenai Kurripaco na Venezuela, a titulação é uma obrigação moral e ambiental para a humanidade. “O Painel Científico da Amazônia e outros estudos dizem que 80% dos ecossistemas mais bem conservados do planeta estão em nossos territórios. Então, o que mais os países estão esperando para começar a titulá-los?”, questiona Díaz ao Diálogo Chino.
“Existe uma relação direta entre a destruição de nossa casa e os assassinatos de líderes, portanto o reconhecimento de nossos direitos é uma solução urgente”, acrescentou.
Embora a titulação da terra seja imperativa, segundo Ráez Luna só isso não seria suficiente. “É necessário reparar os danos já causados à Amazônia”, disse ele. O relatório da RAISG apela para a restauração de 6% das terras altamente degradadas, tidas como vitais para deter essa tendência de destruição.
“Muitos territórios indígenas são titulados, mas estão ecologicamente degradados e não oferecem meios de subsistência para as comunidades, então devem ser restaurados”, disse.
‘Troca de dívida’ estrangeira
Outra solução apresentada pela coalizão diz respeito à dívida externa de alguns países que compõem a Amazônia. A proposta é cancelar as dívidas em troca de um compromisso de proteção de 80% das florestas — um swap ou troca de dívida por natureza.
Para Tuntiak Katán, coordenador adjunto da COICA, a dívida externa leva às atividades extrativistas e à destruição da região. “Propomos o cancelamento da dívida como medida de proteção imediata para aliviar os desafios econômicos que nossos países estão enfrentando”, disse ele. “Os países industrializados e as instituições financeiras internacionais assumiriam a responsabilidade de proteger o planeta, mitigar as mudanças climáticas e aliviar a pressão sobre a Amazônia”.
Na Colômbia, por exemplo, uma nação que abriga 6% da Amazônia, a troca da dívida externa por proteção e restauração já está na agenda do governo Gustavo Petro. Para líderes indígenas, isto é um sinal de esperança. “Em nossos países temos muitos recursos naturais, mas nossos filhos que ainda nem nasceram já têm dívida externa. O cancelamento da dívida é uma aspiração antiga da América Latina”, disse Díaz Mirabal.
Da mesma forma, especialistas no Equador veem a medida como viável, acrescentando que “seus níveis de endividamento o deixam fortemente limitado em sua capacidade de conservar esses recursos ou desenvolver usos sustentáveis para eles”.
Eles também destacam a possibilidade de credores como a China, com seu discurso em prol da “civilização ecológica“, de desempenhar um papel nessas trocas: ” Se o Equador e a China concordarem em reorientar as finanças públicas para a resiliência de longo prazo da Amazônia equatoriana, eles poderão começar a construir um futuro pós-petróleo para o país, baseado no desenvolvimento sustentável de seus vastos recursos naturais”.