Em 10 de agosto, circulou um vídeo de cinco caminhões enfileirados, cada um transportando uma espécie de enorme módulo circular em direção ao porto de Xangai, na China. As cenas ganharam as manchetes na imprensa argentina porque se tratavam de peças das turbinas que estão sendo instaladas na hidrelétrica Jorge Cepernic, no extremo sul da Patagônia.
As imagens reviveram o debate sobre um antigo projeto, que tem demorado a sair do papel. Junto à usina Néstor Kirchner, a Cepernic será uma das obras de engenharia mais ambiciosas das últimas décadas na Argentina, mas também uma das mais polêmicas: sua construção afetará o rio Santa Cruz — único rio glacial argentino que, até agora, fluía rumo ao Atlântico sem qualquer barragem.
Concebidos na década de 1950, os projetos das duas hidrelétricas foram lançados oficialmente só em 2008. As obras desse complicado empreendimento começaram em 2015, com uma série de obstáculos que travaram sua construção nos anos seguintes.
A hidrelétrica Néstor Kirchner, também conhecida como Condor Cliff, foi projetada para alcançar 73 metros de altura, cruzando o rio a 180 quilômetros a oeste da cidade de Puerto Santa Cruz. Já a usina Jorge Cepernic, de 41 metros, chamada inicialmente de La Barrancosa, ficará 65 quilômetros rio abaixo em relação à usina Kirchner. A água retida pelas duas barragens cobrirá 47 mil hectares de uma planície fria, com vento forte e pouca chuva, mas ainda rica em vida silvestre.
As empresas responsáveis pelo projeto — a construtora chinesa Gezhouba Group, que detém 70% de participação dele, e as argentinas Eling e Hidrocuyo, com 20% e 10%, respectivamente — afirmam que as hidrelétricas levarão diversos benefícios ao país, incluindo a redução das importações de combustíveis fósseis, o aumento de 15% na geração de energia hidrelétrica argentina e a criação de empregos.
Apesar disso, o projeto enfrenta resistência há um bom tempo, principalmente pelas dúvidas sobre os reais benefícios das obras e seus possíveis impactos ambientais. Também há disputas legais que ainda não foram totalmente resolvidas.
Iniciado entre 2007 e 2008, quando os governos de Néstor e Cristina Kirchner trabalharam para lançar a primeira licitação internacional de financiamento e execução das obras, o projeto agora é discutido pela Suprema Corte do país. Os magistrados devem decidir sobre uma série de ações judiciais que buscam paralisar as obras, apesar de mais de um quarto delas já ter sido concluído.
Santa Cruz: um ecossistema delicado
A bacia do Rio Santa Cruz cobre 25 mil quilômetros quadrados (km²) da província homônima, encontrando sua nascente em dois grandes lagos alimentados por geleiras: o Argentino e o Viedma. Essas geleiras ocupam 40% da superfície da bacia e fazem parte do Campo de Gelo Patagônico Sul, terceira maior reserva de gelo do planeta — atrás apenas da Antártida e da Groenlândia.
Especialistas sugerem que as mudanças na dinâmica desse sistema gelado colocam em dúvida a segurança e a capacidade das usinas Kirchner e Cepernic, considerando o possível aumento do volume d’água que flui em direção às hidrelétricas.
Um estudo recente notou que a geleira de Perito Moreno — a mais famosa e visitada dessas áreas geladas, a 170 quilômetros a oeste da usina Kirchner — sofreu um recuo devido aos deslizamentos de terra sobre o lago Argentino. Essa é uma inversão na tendência natural da geleira, que anteriormente registrava avanços.
Cientistas estimam que a perda de gelo entre 2020 e 2022 seja de aproximadamente 300 metros, embora outros a estendam a até 700 metros. Isso “pode indicar que ela está vulnerável”, diz Gabriela Lenzano, pesquisadora do Instituto Argentino de Nivologia, Glaciologia e Ciências Ambientais.
O problema vai além da Perito Moreno, acrescenta Lenzano: “A perda de gelo em 28 geleiras na bacia de Santa Cruz foi [em média] de 1,44 metro por ano entre 1978 e 2018. Desde 2015, o recuo da geleira Viedma tem sido alarmante, com velocidades médias de 3,5 metros diários e uma perda de gelo frontal de 2,5 km² nos últimos sete anos, equivalente ao que foi perdido nos 50 anos anteriores”.
O geógrafo, glaciologista e cartógrafo Guillermo Tamburini, que estudou a área onde as usinas estão sendo construídas, critica não ter havido uma análise aprofundada dos efeitos do derretimento das geleiras sobre o fluxo do rio — fenômeno impulsionado pelo aumento das temperaturas médias globais.
Consequentemente, diz Tamburini, não foi calculado o impacto disso no desempenho das hidrelétricas: “Não está claro qual será a dinâmica da água nesse processo de aquecimento global e derretimento acelerado. Também não está claro quais eventos catastróficos podem ocorrer”.
Lenzano ressalta que “para analisar uma mudança no fluxo de um curso d’água causada pelo clima, é preciso ter um conjunto de dados de cerca de duas décadas”. Já Tamburini está alarmado com a possibilidade de uma “trágica combinação de fatores” que poderia, em último caso, representar riscos para as estruturas da usina, para as pessoas e para o meio ambiente.
Impactos ambientais no glacial argentino
As últimas descobertas sobre as mudanças na dinâmica das geleiras trouxeram à tona os eventos de 2016, quando a Suprema Corte da Argentina suspendeu as obras apenas um ano após o início da construção devido às falhas detectadas no estudo de impacto ambiental apresentado em 2014. “Esse estudo inicial incluía considerações amadoras, considerando a magnitude da obra”, avalia Hernán Casañas, diretor-executivo da Aves Argentinas, organização dedicada à conservação e proteção de aves.
Na época, a Suprema Corte solicitou a diferentes órgãos federais que preparassem relatórios com detalhes sobre o tipo de solo no qual as barragens estavam sendo construídas, o nível de atividade sísmica na área e os possíveis efeitos dos projetos sobre lagos e geleiras. O tribunal também pediu um novo estudo de impacto ambiental do projeto.
Não havia estudos suficientes para iniciar o projeto ou colocá-lo em operaçãoSofía Nemenmann, da Associação Argentina de Advogados Ambientais
Sofía Nemenmann, jurista da Associação Argentina de Advogados Ambientais, lembra que o Instituto Nacional de Prevenção Sísmica foi “conciso” em seu parecer: “O órgão entendeu que não havia estudos suficientes para iniciar o projeto ou colocá-lo em operação”.
Em 2018, um deslizamento de terra forçou a paralisação das obras da barragem Kirchner. “Ela está localizada em uma área onde as rochas são muito macias para suportar a ancoragem das paredes da usina”, explica Tamburini. “Se elas ficarem saturadas de água, o solo se dissolve e [a estrutura] pode romper”. O acidente resultou na reformulação do projeto, com a redução de sua altura máxima, do número de turbinas e da quantidade de energia gerada.
Os temores em relação aos efeitos da atividade sísmica se intensificaram em outubro de 2021, quando um terremoto de magnitude 5,5 atingiu a área de El Calafate, cidade mais próxima da geleira Perito Moreno e a 130 quilômetros de distância da usina Néstor Kirchner. Não foram registrados impactos nas obras da barragem, mas isso alertou para o risco de se construir uma hidrelétrica uma região de abalos sísmicos.
Organizações ambientais dizem ainda que as barragens já causaram uma longa lista de danos à biodiversidade e aos ecossistemas nessa região da Patagônia. María Marta Di Paola, economista e consultora ambiental, enumera alguns deles: “Degradação e desaparecimento de sistemas aquáticos e adjacentes, aumento da erosão fluvial, efeitos sobre a qualidade e a saúde da água, decomposição de biomassa e solos inundados, aumento das emissões de metano [dos reservatórios] e efeitos sobre os estoques de carbono”.
Manuel Jaramillo, diretor-geral da Fundación Vida Silvestre, acrescenta um ponto relevante: “As barragens afetarão 192 quilômetros de um rio cujas margens serão inundadas, deixando debaixo d’água uma área equivalente ao dobro do tamanho da cidade de Buenos Aires. Imagine a quantidade de vida animal e vegetal que será perdida somente com esse procedimento”.
Especialistas consultados pelo Diálogo Chino também alertaram para as ameaças das usinas e de uma linha de transmissão de 170 quilômetros, que servirá para conectá-las à rede elétrica nacional. Essas obras, dizem, podem levar espécies ameaçadas à extinção, como o mergulhão-de-capuz (Podiceps gallardoi), endêmico dos rios de Santa Cruz, e o mergulhão-de-capuz (Podiceps gallardoi), que figura em um relatório de espécies ameaçadas divulgado pela Administração de Parques Nacionais — documento solicitado pela Suprema Corte na ocasião da suspensão das obras. As colisões com cabos de alta tensão podem causar a morte dessas aves.
As comunidades indígenas que moram na região, principalmente mapuches, estão preocupadas com as áreas que serão inundadas pelos reservatórios: há cerca de 170 sítios arqueológicos, dos quais apenas 30 poderiam ser salvos da destruição. “Ao contrário dos movimentos sociais que inicialmente se opunham à construção das usinas, mas que se diluíram com o passar dos anos, os povos indígenas continuam a questionar o impacto sociocultural das barragens”, diz Kini Roesler, bióloga e coordenadora do programa Patagônia da organização Aves Argentinas.
Em 2017, a comunidade Lof Fem Mapu, dos povos Mapuche e Tehuelche, que vivem no estuário do rio Santa Cruz, entrou com uma ação judicial contra os governos provincial e nacional pelos “danos ao patrimônio cultural, arqueológico, paisagístico e histórico” que, segundo os indígenas, serão causados pela construção das barragens. A comunidade também pediu para ser consultada sobre a continuação das obras. O caso ainda não foi resolvido na Justiça.
Os responsáveis pelos projetos tentaram abordar essas preocupações, mas a desconfiança não cessou. O consórcio de empresas por trás das obras afirma que todas as suas atividades estão sendo realizadas “com respeito ao meio ambiente, à biodiversidade e à proteção dos recursos naturais”. O estudo de impacto ambiental atualizado foi publicado em 2017, mas também recebeu críticas de pesquisadores por não considerar suficientemente o impacto sobre as geleiras.
Em março de 2018, Diego Moreno, então secretário nacional de Política Ambiental, Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Sustentável da Argentina, disse que o projeto “prevê medidas de compensação abrangentes, com base na área e nos habitats que seriam perdidos e na avaliação do valor ecossistêmico desses locais”. No entanto, o plano de compensação ambiental para os impactos não mitigáveis do projeto foi, novamente, fortemente criticado por ambientalistas.
Projetos de grande escala
Espera-se que as duas usinas do complexo no rio Santa Cruz tenham uma capacidade instalada conjunta de 1.310 megawatts — volume que excede as necessidades dos 330 mil habitantes da província de Santa Cruz, onde também há três parques eólicos que produzem 12% da energia eólica da Argentina.
O geógrafo Guillermo Tamburini questiona a real necessidade dos projetos, apontando para outros investimentos potencialmente prioritários. “A Argentina perde quase 14% de sua eletricidade devido a problemas em sua rede de distribuição, enquanto a taxa deveria ser inferior a 10%”, diz ele. “Anunciaram que as usinas produziriam 5% da energia do país. Se esse é o caso, por que não se investiu, muito menos, no conserto de uma rede deficiente em vez de construir novas usinas?”
O Diálogo Chino entrou pediu um posicionamento das empresas envolvidas no projeto, mas não tivemos retorno até o fechamento da reportagem.
“Nunca foi um projeto energético urgente, não é uma prioridade nacional”, diz a jurista Sofía Namenmann. Um estudo realizado em 2006 pelo Instituto General Mosconi avaliou 30 projetos hidrelétricos no país, considerando aspectos econômicos, técnicos e ambientais. As usinas Néstor Kirchner e Jorge Cepernic foram classificadas, respectivamente, em 11º e 19º lugar no ranking, lançando dúvidas sobre sua importância e viabilidade técnica.
Com exceção de algumas paralisações — provocadas pela descoberta de rachaduras nas paredes da barragem Kirchner em 2018 e pela pausa no financiamento chinês —, os projetos nunca foram totalmente abandonados. “Nessa questão, não há divergência política”, diz Cristian Fernández, advogado e coordenador do departamento de assuntos jurídicos da Fundação do Meio Ambiente e Recursos Naturais. “Seja quem for o próximo presidente, minha sensação é de que o trabalho continuará”.
Disputando o segundo turno das eleições presidenciais em novembro, o candidato de extrema-direita, Javier Milei marcou sua campanha dizendo que não faria negócio com países que ele considera “comunistas”, como a China ou a Rússia.
Apesar disso, representantes das organizações que mais lutaram contra as barragens veem poucas chances de impedir sua construção. “Somente a inviabilidade técnica e econômica pode impedi-las”, diz Manuel Jaramillo, da Fundación Vida Silvestre.
“Tem sido uma luta entre Davi e Golias e a sensação, infelizmente, é de que a batalha foi perdida”, diz Hernán Casañas, da organização Aves Argentinas.
A previsão inicial era de que as usinas entrassem em operação entre 2021 e 2023, mas agora estima-se que a conclusão das obras, incluindo o enchimento dos reservatórios, ocorra só em 2027 ou 2028.
Um estudo de 2014 da Universidade de Oxford analisou a construção de 245 grandes hidrelétricas ao redor do mundo ao longo de 70 anos e mostrou que a implementação delas, em média, levou 44% mais tempo do que o prazo estimado originalmente. No caso de Santa Cruz, o atraso já é o dobro disso.
A Energía Argentina, empresa pública que monitora o andamento das obras, informa que cerca de 25% dos trabalhos na barragem Néstor Kirchner estão concluídos; já na barragem Jorge Cepernic, são quase 40% prontos.
Os projetos hidrelétricos mais controversos e conflituosos já realizados na Argentina continuam avançando contra os ventos do sul da Patagônia e as marés de protestos. Enquanto isso, as turbinas enviadas em agosto desde Xangai continuam sua jornada pelo mar em direção às águas calmas do sinuoso Rio Santa Cruz.