Justiça

Opinião: Futuro energético da América Latina requer justiça social

Povos indígenas e movimentos sociais da região oferecem caminhos para construir um futuro energético justo e democrático, escreve pesquisador
<p>Motociclista dirige em estrada no deserto da Guajira, norte da Colômbia. Essa região extremamente pobre tem sido alvo de projetos de energia renovável, criando divisões entre as comunidades indígenas (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2oKP6sY">Iván Otero</a> / <a href="https://flickr.com/people/197399771@N06">Presidência da República da Colômbia</a>, <a href="https://creativecommons.org/publicdomain/mark/1.0/deed.pt-br">PDM</a>)</p>

Motociclista dirige em estrada no deserto da Guajira, norte da Colômbia. Essa região extremamente pobre tem sido alvo de projetos de energia renovável, criando divisões entre as comunidades indígenas (Imagem: Iván Otero / Presidência da República da Colômbia, PDM)

Quando falamos em “energia”, geralmente nos referimos aos aspectos econômicos dos sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia. Porém, esse conceito vai muito além de obras de engenharia e das cadeias produtivas: a energia moldou a própria evolução da vida na Terra, desde a fotossíntese dos organismos primitivos até o domínio do fogo pelos antigos hominídeos. Além disso, ela tem uma dimensão social ligada ao poder, à justiça e à desigualdade.

Com mais de 130 países comprometidos em triplicar sua capacidade de energia renovável para combater as mudanças climáticas, algumas questões viraram centrais nessa discussão: quais vozes moldarão nosso futuro, quais serão silenciadas, quem se beneficiará e quem será negligenciado? 

A transição para uma economia de baixo carbono, entendida como um imperativo global, pode desencadear mudanças profundas nas economias e nas sociedades. Embora isso anuncie um futuro mais limpo, também pode reproduzir ou reforçar o legado de injustiças da era dos combustíveis fósseis — caso as desigualdades presentes nos sistemas energéticos não sejam devidamente identificadas e combatidas. 

É aqui que entra a justiça energética. Esse crescente campo de estudo analisa criticamente os sistemas energéticos para compreender e questionar como seus benefícios e prejuízos são distribuídos e quais vozes são ouvidas na tomada de decisão. Ele também contribui para desenvolver mecanismos que diminuam as injustiças nos sistemas energéticos.

Embora frequentemente ignorada, a América Latina é crucial para essas pesquisas. A região oferece diversidade empírica — abrangendo extração de combustíveis fósseis, megaprojetos hidrelétricos e resistência de movimentos indígenas —, além de ricas alternativas epistemológicas aos paradigmas ocidentais. 

Nosso grupo de pesquisa analisou os impactos dos projetos energéticos na América Latina, reunindo nossos achados no livro Energy Justice in Latin America: Reflections, Lessons, and Critiques (Justiça energética na América Latina: reflexões, lições e críticas, em tradução livre). 

A publicação reuniu 30 pesquisadores de 12 países latino-americanos, abordando uma ampla gama de tecnologias energéticas e temas correlatos, desde a dependência dos combustíveis fósseis até o descarte das pás de turbinas eólicas. Ao longo de 16 capítulos, os autores exploram a crítica social sobre as tecnologias de baixo carbono, as novas formas de extrativismo, os debates em torno da autonomia e identidade e os legados do colonialismo. Suas contribuições oferecem uma reflexão sobre o complexo panorama energético da região e contribuem para uma compreensão mais embasada de como essas injustiças sociais são sentidas em toda a região.

Parque eólico Ventika, no estado de Nuevo León, norte do México
Parque eólico Ventika, no estado de Nuevo León, norte do México. Embora a energia eólica seja amplamente descrita como uma fonte “limpa”, o descarte incorreto de suas peças pode criar um problema de poluição (Imagem: Presidência da República Mexicana / Flickr, CC BY)

Ao abordar a justiça energética, devemos pensar além de dicotomias simplistas como combustíveis fósseis vs. energia renovável, Norte Global vs. Sul Global, técnicas modernas vs. modelos tradicionais de desenvolvimento. As economias dos países que dependem das receitas de petróleo e gás para financiar serviços básicos não são fáceis de modificar, nem são totalmente injustos em sua concepção. Mas, à medida que as transições se desenrolam, a mudança para alternativas “mais limpas” pode perpetuar as mesmas injustiças — expropriação de terras, degradação ambiental e exclusão social — que há muito tempo assolam os sistemas energéticos latino-americanos.

No Chile e no Peru, a ligação da mineração de cobre e de grandes projetos hidrelétricos com conflitos socioambientais é um lembrete de que os minerais críticos para as transições energéticas muitas vezes têm um alto custo social e ecológico, contribuindo para a degradação do meio ambientes e o fortalecimento de conflitos intracomunitários. A justiça energética na Costa Rica e no Panamá revela um padrão semelhante, onde as comunidades indígenas são frequentemente marginalizadas no planejamento de projetos, apesar das políticas nacionais que promovem a sustentabilidade e a inclusão. Seja pela violação dos direitos indígenas, como se observa na fronteira do lítio na Bolívia, ou pela negligência com os resíduos das turbinas eólicas no interior do México, a história se repete: transições de baixo carbono sem apoio ou cogestão das comunidades impactadas tendem a perpetuar os danos e desencadear conflitos locais.

Evidentemente, é preciso adotar novos marcos jurídicos. Devemos ir além das concepções dominantes de justiça enraizadas nas tradições filosóficas ocidentais. Em nosso livro, um capítulo combina ideias da bioética, o conceito de justiça do filósofo John Rawls e a realidade da pobreza na América Latina para mostrar por que confiar apenas em soluções técnicas ou econômicas não é suficiente para resolver problemas sociais complexos. Questões como desigualdade e exclusão devem ser abordadas com abordagens éticas e socialmente justas, argumenta o livro, porque simplesmente melhorar a tecnologia ou impulsionar a economia não necessariamente ajuda aqueles que mais precisam. 

Seguindo uma linha crítica semelhante, outra visão prevê uma justiça energética feminista que desafia o poder patriarcal e colonial incorporado nos sistemas energéticos. A justiça energética feminista exige uma abordagem transformadora dos sistemas energéticos que vá além do simples aumento da participação ou representação das mulheres. O apelo é para desafiar ativamente e remodelar as estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais que determinam o modelo de produção, distribuição e consumo de energia. Tais abordagens facilitam a identificação e o enfrentamento das estruturas de poder que marginalizam as necessidades e as vozes de grupos vulneráveis. Essas pesquisas também destacam a imposição das necessidades do mercado energético nacional ou global sobre o bem-estar das comunidades locais, muitas vezes indígenas. Essas abordagens não são simples abstrações teóricas; são lentes necessárias para compreender as experiências de milhões de pessoas na região.

Mulheres indígenas mostram lâmpadas portáteis construídas em workshop
Mulheres maias constroem lâmpadas solares na Guatemala para levar luz às suas comunidades. A justiça energética feminista apela para que se desafiem e reformulem as dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais que sustentam o modelo de produção, distribuição e consumo de energia (Imagem: Edwin Solares / Dialogue Earth)
Gauchos uruguaios em frente a um painel solar em Tacuarembó, norte do Uruguai
Gauchos uruguaios em frente a um painel solar em Tacuarembó, norte do Uruguai. Abordar as estruturas de poder patriarcais nos sistemas energéticos é fundamental para atender às necessidades de grupos vulneráveis (Imagem: Presidência da República Oriental do Uruguai / Flickr, CC BY NC ND)

Na América Latina, a relação entre justiça energética, participação das comunidades e resistência popular é evidente. 

Na Argentina, os esforços populares de “energização territorial” demonstram como soluções energéticas projetadas localmente podem enfrentar a desigualdade e, ao mesmo tempo, construir poder coletivo. É o caso da usina solar Arribeños, que busca responder às demandas sociais por segurança e estabilidade no fornecimento de eletricidade. 

No Equador, os princípios constitucionais da Bem Viver e da Pacha Mama tornaram o país o primeiro do mundo a reconhecer os direitos da natureza e a incorporar os valores indígenas na política energética formal, oferecendo caminhos para a justiça intergeracional. 

No México, está sendo defendida uma abordagem decolonial da justiça energética. Ela é composta por sistemas de valores que vão além de métricas quantitativas, como intensidade de carbono e emissões, e levam em consideração o valor do projeto de energia renovável para a comunidade local. Isso abre as portas para futuros radicalmente diferentes, em que a energia não é apenas uma mercadoria ou serviço, mas está enraizada em fortes relações socioculturais. Ela busca atender às necessidades locais ou impulsionar atividades econômicas tradicionais, em vez de seguir os padrões da modernidade capitalista ou as metas globais.

Os sistemas energéticos e as transições de baixo carbono não são conjuntos neutros de finanças, fios e turbinas; são expressões de escolhas políticas, valores culturais e trajetórias históricas

Os discursos atuais sobre energia muitas vezes assumem que ampliar a escala de painéis solares ou implantar hidrogênio verde resolverá nossos problemas. Essas são visões simplistas que devem ser questionadas. Da mesma forma, os sistemas energéticos e as transições de baixo carbono não são conjuntos neutros de finanças, fios e turbinas; são expressões de escolhas políticas, valores culturais e trajetórias históricas. Saber mais sobre o que as comunidades latino-americanas enfrentaram nos permite compreender como as tecnologias “limpas” não são inerentemente justas e, muitas vezes, perpetuam a expropriação de terras, reforçam a exclusão social e ignoram as vozes dos mais afetados. 

Essa percepção é urgente e necessária, pois enfrentamos uma transição global que afetará todas as comunidades da Terra. Se o objetivo não é apenas descarbonizar, mas construir um futuro energético igualitário, democrático e culturalmente expressivo, então a justiça energética deve ser construída a partir da base – abraçando múltiplas formas de conhecimento e de meios de vida, como projetos energéticos liderados por comunidades. A América Latina pode ser um teste para repensar a própria justiça energética global. Suas cosmologias indígenas e movimentos sociais, bem como as críticas acadêmicas, oferecem recursos indispensáveis para imaginar e criar um futuro energético mais inclusivo e plural.

Numa década decisiva para as ações climáticas, fizemos melhorias importantes e ganhamos mais experiência enquanto comunidade global na construção de sistemas energéticos mais limpos e com baixa emissão de carbono. No entanto, a exploração da justiça energética na América Latina levanta uma questão igualmente crucial: podemos também construir sistemas mais justos? Quero acreditar que a resposta é um “sim” categórico. 

Mas chegar lá requer um profundo acerto de contas com o histórico de exploração e colonialismo da região. É necessário um compromisso atual com a inclusão e a colaboração que abracem genuinamente vozes e conhecimentos diversos em todos os territórios, além de um esforço coletivo. Somente por meio desse processo poderemos começar a remodelar as estruturas que sustentam os sistemas energéticos atuais e projetar alternativas para conciliar as necessidades e aspirações locais com as metas globais de descarbonização.

Energy Justice in Latin America: Reflections, Lessons, and Critiques, editado por Adolfo Mejia Montero, foi publicado pela Routledge em fevereiro de 2025.

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