Justiça

Rucalhue: Comunidades no Chile lutam contra barragem apoiada pelo governo

Novo empreendimento hidrelétrico na bacia do rio Biobío ameaça vegetação protegida e é alvo de críticas por falhas na consulta prévia à população
<p>Vegetação nativa às margens do rio Biobío, Chile. Os planos para construir a quinta usina hidrelétrica no rio enfrenta a resistência de comunidades e ativistas ambientais (Imagem: Rainer Lesniewski / Alamy)</p>

Vegetação nativa às margens do rio Biobío, Chile. Os planos para construir a quinta usina hidrelétrica no rio enfrenta a resistência de comunidades e ativistas ambientais (Imagem: Rainer Lesniewski / Alamy)

Fernanda Purrán foi criada às margens do rio Biobío, na região central do Chile. Para sua comunidade indígena Mapuche-Pehuenche, o rio fazia “parte da família”. Porém, na década de 1990, a chegada de uma barragem hidrelétrica à região destruiu essa conexão. Os níveis da água passaram a subir a qualquer momento pela abertura das comportas da usina, sem nenhum aviso prévio. “Foram anos de incerteza, dor e muita angústia”, contou. “Tivemos que nos separar do rio, porque ele se tornou perigoso”. 

Agora, outra usina hidrelétrica tenta se instalar na região de Biobío. O projeto Rucalhue está localizado a menos de um quilômetro de uma comunidade com o mesmo nome e a dez quilômetros das comunas de Santa Bárbara e Quilaco. O projeto envolve a construção de um reservatório com mais de sete milhões de metros cúbicos, criado a partir da inundação de 139 hectares de terra. 

O projeto de 90 megawatts (MW) de capacidade se tornaria a quinta usina hidrelétrica no rio Biobío, um dos principais do país e no qual já operam as usinas de Ralco (689MW), Pangue (466 MW), Angostura (323 MW) e Palmucho (34 MW).

Imagem de satélite do rio Biobío mostra a barragem e o reservatório da hidrelétrica de Pangue em 2025
Imagem de satélite do rio Biobío mostra a barragem e o reservatório da hidrelétrica de Pangue em 2025 (Imagem: Airbus / Maxar Technologies / CNES via Google Earth)

Embora a usina de Rucalhue tenha obtido uma avaliação de impacto ambiental favorável em 2016, só recentemente recebeu a autorização para iniciar a construção. A demora se deve ao fato de duas espécies de plantas nativas protegidas — o guindo santo (Eucryphia glutinosa) e a congonha-verdadeira (Citronella mucronata) habitarem a área. 

Em outubro de 2023, a Corporação Nacional de Florestas (Conaf) classificou a nova usina hidrelétrica como objeto de “interesse nacional”. Um ano depois, a Conaf aprovou os planos de preservação do projeto, última etapa antes de dar início às obras. 

A construção da estrutura, avaliada em US$ 240 milhões, está sendo comandada pela Rucalhue Energía, empresa chilena de propriedade da China International Water and Electric Corporation — por sua vez, uma subsidiária da China Three Gorges Corporation que atua pela primeira vez no Chile.

A usina foi incorporada ao Plano de Fortalecimento Industrial do Biobío do governo chileno, lançado em resposta ao fechamento da maior siderúrgica do país, a usina de Huachipato, em setembro de 2024. A fábrica transformou a cidade litorânea de Talcahuano em um dos principais centros industriais da região do Biobío.

Atualmente, 13 usinas hidrelétricas operam na bacia do Biobío, sendo que a maioria foi construída na década de 1990. A bacia se estende por cerca de 380 quilômetros, gerando cerca de 38% da energia hidrelétrica do Chile.

Há muito tempo, essas usinas enfrentam a resistência de moradores da zona: entre eles, estão povos indígenas que denunciam a destruição dos ecossistemas locais e a ruptura da estrutura social das comunidades. Os moradores da comuna de Alto Biobío, por exemplo, foram expulsos pela construção da barragem de Ralco no início dos anos 2000. “As pessoas realocadas de Ralco agora vivem nas partes baixas do rio e não têm mais comunicação com àqueles que vivem em Alto Biobío”, afirmou Castro.

De acordo com Juan Pablo Boisier, pesquisador do Centro de Pesquisa sobre Clima e Resiliência da Universidade do Chile, essas hidrelétricas não são importantes apenas para a geração de eletricidade renovável, mas também para o abastecimento de água. Ele reconhece, no entanto, os impactos socioambientais associados às modificações na geografia local.

Participação cidadã e consulta prévia

As principais críticas da comunidade Mapuche-Pehuenche ao projeto Rucalhue foram a falta de participação cidadã e a ausência de uma consulta prévia abrangente com os povos indígenas. De acordo com Javier Arroyo, advogado e membro do Observatório Latino-Americano de Conflitos Ambientais, isso constitui uma violação dos compromissos internacionais assinados pelo Chile, incluindo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho — ou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas — bem como o Acordo de Escazú, tratado ambiental latino-americano que consagra os direitos à informação e à justiça ambiental.

A consulta indígena do projeto foi concluída em 2016, com acusações de que teria sido manipulada para favorecer a usina. Para garantir a lisura do processo, organizações socioambientais reivindicaram uma nova consulta. Além disso, no ano passado, o status de proteção do guindo santo e da congonha-verdadeira foi reforçado, exigindo uma autorização especial para a derrubada dessas espécies de árvores.

O Ministério do Desenvolvimento Social foi chamado a se pronunciar sobre a necessidade de uma nova consulta, mas, por razões desconhecidas, isso não ocorreu. Por fim, a Conaf decidiu autorizar o projeto. 

“Nesse processo, houve duas negligências”, observou Arroyo. “A primeira é que a Conaf emitiu a declaração de interesse nacional sem nem ter recebido um relatório do Ministério do Desenvolvimento Social sobre a necessidade de uma nova consulta indígena. A segunda é o profundo atraso por parte do Ministério do Desenvolvimento Social em se pronunciar sobre a consulta, algo que não aconteceu até agora”.

O Dialogue Earth conversou com Bernardo Reyes, presidente da Forest Ethics Foundation, sobre esses problemas. “A falta de transparência e de participação dos cidadãos na tomada de decisão sobre o projeto é inaceitável”, avaliou o ativista.

Plano de preservação florestal

Representantes da Conaf disseram ao Dialogue Earth que o plano de preservação florestal aprovado para a barragem “cumpriu todos os requisitos técnicos e legais”. Eles destacam suas medidas compensatórias, como a reabilitação de pastagens com espécies nativas (incluindo a congonha-verdadeira e o guindo santo), bem como a restauração de ecossistemas degradados. 

Nossa reportagem entrou em contato com a Rucalhue Energía, mas não obteve resposta. Em seu site, a empresa diz que vai “intervir” — ou seja, desmatar — 392 congonha-verdadeiras e 139 guindos santos, mas também se compromete a plantar outras 1.334 e 545 árvores de cada espécie, respectivamente. Ela também afirma que outras 43.268 espécies também serão plantadas.

Qualquer coisa pode ser entendida como sendo de interesse nacional. Não temos um problema de geração de energia que justifique essa declaração
Pamela Poo, diretora de políticas públicas da Fundação Ecosur

A cientista política Pamela Poo, diretora de políticas públicas da Fundação Ecosur, tem uma visão negativa sobre essas propostas. Ela criticou a atuação da Conaf e sua influência nas políticas do presidente chileno Gabriel Boric: “É um exemplo claro de como o governo está disposto a sacrificar o meio ambiente para obter ganhos econômicos, sem considerar as consequências de longo prazo para as comunidades e o ecossistema”.

Poo também questionou o enquadramento do projeto como sendo de “interesse nacional”, já que isso poderia abrir um precedente perigoso: “Qualquer coisa pode ser entendida como sendo de interesse nacional. Não temos um problema de geração de energia que justifique essa declaração”, observou ela. “Estamos hipotecando o futuro dos ecossistemas e das gerações futuras”.

Resiliência da comunidade

Alguns moradores tentaram barrar o projeto, obstruindo e até mesmo povoando as margens dos rios próximos para impedir a extração de madeira e a passagem de maquinário pesado. Eles alegam o uso de violência e ausência de esforços por parte da empresa para criar espaços de diálogo.

“Um grupo [de moradores] passou cinco meses no local onde a empresa está trabalhando agora, impedindo-os de iniciar as obras”, contou Fernanda Purrán. “A resposta [da polícia] foi expulsá-los violentamente… A mesma coisa aconteceu depois, com companheiros feridos”. 

As ações da empresa geram impactos que vão além da construção da barragem, analisou Reyes: “Não estamos falando apenas de impacto econômico ou ambiental. As diversas culturas da região também estão sendo afetadas”. De acordo com ele, “há um profundo conflito com o projeto em razão da falta de transparência, do corte de espécies nativas, da falta de participação cidadã e da divisão das comunidades”. 

A expectativa da empresa é que a construção da usina de Rucalhue seja concluída em três anos. Enquanto isso, as comunidades afetadas, agora mais cansadas e menos unidas, convivem com mais um projeto hidrelétrico no rio Biobío.

Para Purrán, muitas pessoas afetadas não têm mais força para seguir lutando. “Elas apenas dizem ’por favor, me deixem em paz e façam o que quiserem, só não nos incomodem’. Há também outras pessoas que seguem resistindo, mas são minoria”.