Florestas

Bruno e Dom: barco-consultório segue legado de indigenista morto na Amazônia

Unidade de saúde fluvial que oferece atendimento a indígenas do Vale do Javari foi idealizada por Bruno Pereira, morto com o jornalista Dom Phillips em 2022
<p><span style="font-weight: 400;">Porto de Atalaia do Norte, no Amazonas. A cidade é um importante centro para as comunidades do Vale do Javari, uma das maiores terras indígenas do Brasil (Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil)</span></p>

Porto de Atalaia do Norte, no Amazonas. A cidade é um importante centro para as comunidades do Vale do Javari, uma das maiores terras indígenas do Brasil (Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

Um barco equipado com uma unidade básica de saúde indígena entrou em operação esta semana em uma das comunidades mais remotas da Amazônia brasileira, informou o Ministério da Saúde ao Diálogo Chino. O projeto foi concebido pelo indigenista Bruno Pereira, mas só agora se torna realidade — um ano após ter sido brutalmente assassinado em uma expedição na floresta com o jornalista britânico Dom Phillips.  

A nova unidade fluvial vai oferecer atendimento a grupos indígenas no Vale do Javari, território de 8,5 milhões de hectares no extremo oeste do Amazonas, próximo à fronteira com o Peru, onde Pereira e Phillips trabalhavam antes de morrer. 

Essa região quase intacta de floresta amazônica protege a maior concentração de povos indígenas isolados no mundo, além de outros grupos de recente contato. Essas comunidades enfrentam ameaças de doenças infecciosas e têm alguns dos piores indicadores de saúde do país. Isso levou Pereira a desenvolver o projeto do barco durante a pandemia de Covid-19, que ameaçou dizimar populações indígenas inteiras.

“Bruno queria proteger os Korubo, um povo indígena de recente contacto, para evitar que tivessem que se deslocar por longas distâncias para pedir apoio”, diz Eliésio Marubo, ativista e advogado da Univaja, organização indígena do Vale do Javari com a qual Pereira trabalhava.

Korubo II Santarém PA, the new riverboat that will provide health care for Indigenous groups across the Javari Valley (Image: courtesy by the Observatory of Isolated Indigenous Peoples)
Korubo II, nova unidade fluvial que oferecerá assistência médica a grupos indígenas do Vale do Javari (Imagem: cortesia do Observatório dos Povos Indígenas Isolados)

O governo brasileiro fez o primeiro contato com os Korubo em 1996 e, atualmente, estima-se que o grupo indígena tenha menos de 130 pessoas. Hoje, parte do grupo permanece isolado, enquanto outros mantêm uma interação esporádica com pessoas de fora das aldeias. No recente documentário Vale dos Isolados, o líder indígena Malevo Korubo explicou que muitos têm “medo do homem branco” por causa das mortes e doenças que atingiram seu povo no passado. 

Agora, os Korubo estão novamente ameaçados pelas crescentes invasões de garimpeiros e pescadores ilegais, além de narcotraficantes em seu território, em meio a cortes orçamentários na fiscalização ambiental deixados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Os assassinatos de Pereira e Phillips estão ligados a organizações criminosas locais, segundo a Polícia Federal. Atualmente, três pessoas estão presas e serão julgadas pelo crime.

Além da escalada de violência, a ausência do Estado no Vale do Javari deixa ainda mais precário o sistema de saúde em uma região historicamente atormentada pelos baixos índices de desenvolvimento social. “Temos algumas mazelas muito sérias que estão se sobressaindo”, ressalta Marubo. 

Dados do Ministério da Saúde não apenas mostram a disseminação de doenças infecciosas na região, mas também apontam para um futuro desalentador: a mortalidade infantil indígena no distrito do Vale do Javari atingiu 50 mortes por mil nascidos vivos em 2022 — quatro vezes mais do que a média nacional.

O distrito de saúde do Vale do Javari abrange uma população de mais de seis mil indígenas na cidade de Atalaia do Norte e aldeias próximas. Segundo o Ministério da Saúde, as crianças são as mais vulneráveis a doenças infecciosas e parasitárias, que afetam a maioria das áreas indígenas do Brasil. 

“A saúde indígena tem muitos gargalos, vários desafios a serem superados”, diz Ricardo Weibe Tapeba, secretário de Saúde Indígena, nomeado em janeiro pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. “Estamos realizando um levantamento dos nossos passivos para buscar soluções. Nossa ideia é ampliar o orçamento, mas também buscar novas alternativas de financiamento desses passivos”.

O Vale do Javari também é o segundo distrito indígena com mais risco de infecção por malária no Brasil. Só fica atrás do território Yanomami, que enfrenta uma crise humanitária provocada pelo garimpo ilegal. Estudos sugerem que o desmatamento aumenta a transmissão da malária na Amazônia, principalmente no entorno de garimpos. Nesses locais, a floresta dá lugar a bolsões d’água, de onde o minério é extraído, facilitando a reprodução do mosquito transmissor.

Indigenous communities in the Javari Valley face risks from various infectious diseases, such as malaria, and record high infant mortality rates (Image: Alejandro Zambrana / Sesai, CC BY-NC)
Comunidades indígenas do Vale do Javari enfrentam diversas doenças infecciosas, como a malária, e registram altas taxas de mortalidade infantil (Imagem: Alejandro Zambrana / Sesai, CC BY-NC)

As tentativas de combate à explosão do garimpo ilegal na região desencadearam uma crise que levou Bruno Pereira a deixar seu cargo na Funai, agência indigenista do governo, em 2019. Ele disse a amigos ter sido perseguido por funcionários do governo Bolsonaro, que cooptou e desmontou vários órgãos ambientais do país.

No mesmo ano, Pereira se juntou à Univaja para trabalhar na fiscalização da área empregando seus próprios recursos e pessoal. A missão incluía o barco-consultório. “Bruno negociou a balsa, procurou financiadores — ele fez tudo”, disse Marubo. 

A embarcação foi entregue pela Univaja ao distrito de saúde indígena em fevereiro, mas só agora entrou em operação. Marubo reclamou do atraso, mas o ministério disse que o barco precisava de adaptações para operar como consultório. 

Embora a unidade fluvial seja uma conquista que Pereira tragicamente não viu em vida, pessoas próximas ao indigenista destacaram o impacto e o legado de seus esforços. Uma delas foi a antropóloga Beatriz Matos, sua viúva e recém-nomeada diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. “É a concretização do trabalho de Bruno e outras pessoas”, disse Matos no dia da entrega do barco.