<p>Thiago Karai Djekupe, líder indígena Guarani, protesta contra o marco temporal, proposta legal que ameaça seu território, Jaraguá, em São Paulo (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)</p>
Justiça

Indígenas lutam por suas terras contra marco temporal

Diante de ameaças e propostas controversas de prazo para reivindicações de terras ancestrais, comunidades de São Paulo resistem

A presença de policiais militares cercando a casa de reza refletia a tensão que indígenas Guarani enfrentam em seu território Jaraguá, a 20 quilômetros do centro urbano de São Paulo. Em um dia nublado no início de junho, eles rezavam, cantavam e dançavam em protesto contra ameaças a suas terras. 

No ritual que começou no fim da tarde na aldeia Tekoá Pyau, estava a líder indígena Txai Suruí, de 26 anos. Originária de um território Paiter Suruí em Rondônia, na Amazônia, a ativista, internacionalmente conhecida pelo seu forte discurso na COP26, em 2021, em Glasgow, protestava ao lado de seu companheiro de amor e luta, Thiago Karai Djekupe, de 29, um dos líderes locais. Eles são contrários a duas ações — uma tramitando no Congresso e outra no Supremo Tribunal Federal (STF) — que teriam resultados semelhantes: impedir a reivindicação de indígenas a seus territórios ancestrais, a chamada tese do marco temporal. No dia 30 de maio, o projeto de lei 490 foi aprovado na Câmara dos Deputados e segue para votação no Senado. E no dia 7 de junho, o STF retomou o julgamento do processo, depois de um hiato de dois anos, que limita temporalmente a demarcação de territórios.

Thiago Karai Djekupe (centro) e sua companheira Txai Suruí (à direita) durante o protesto no território Jaraguá
Thiago Karai Djekupe (centro) e sua companheira Txai Suruí (à direita) durante o protesto no território Jaraguá. Djekupe chora enquanto a polícia cerca os indígenas (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)
Jovens indígenas de 21 etnias saem às ruas contra o marco temporal
Indígenas de 21 etnias saem às ruas contra o marco temporal, proposta legal que está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal e no Senado (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)
Policiais monitoram comunidade em cerimônia com orações, cantos e danças
Após retirar os manifestantes da rodovia Bandeirantes, policiais monitoram comunidade em cerimônia com orações, cantos e danças (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)

Segundo Suruí, se aprovadas, elas representariam “a morte não só de povos indígenas, mas do planeta, diante do maior desafio da humanidade, contra as mudanças climáticas”.

A iminência das votações tem provocado uma série de protestos em todo o país, convocados pela Articulação dos Povos Indígenas. No próprio dia 30, quando o Congresso aprovou o projeto de lei, mais de cem manifestantes de 21 etnias ocuparam a Rodovia dos Bandeirantes, uma das principais da capital paulista, e foram alvo de bombas de gás e balas de borracha atiradas por policiais.

Somos a nação Guarani, que vive aqui desde muito antes de qualquer colonizador ter pensado em pisar nesta terra
Thiago Karai Djekupe, líder Guarani

Djekupe conta que, na ocasião, os policiais os retiraram à força da rodovia, além de sobrevoar o território “fazendo rasantes de helicóptero”, para, segundo ele, “os cercarem e seguirem até as aldeias”. “Não precisava, não somos um povo da violência”, afirmou. “Somos a nação Guarani, que vive aqui desde muito antes de qualquer colonizador ter pensado em pisar nesta terra”. 

No dia 3, impedidos por uma decisão judicial de voltar à rodovia, o grupo conduziu a cerimônia religiosa na própria aldeia como ato de protesto.

Resistência às pressões territoriais

O jovem casal indígena tem na família vidas já marcadas por conflitos rurais e urbanos. Suruí é filha dos ativistas Ivaneide Bandeira Cardozo e Almir Suruí, que há décadas lutam pela preservação de terras indígenas na Amazônia. Djekupe, nascido e criado no Jaraguá, é neto de Jandira Augusta Venício (1934–2012), que liderou e lutou pelo desenvolvimento da aldeia. 

Foi pela influência da avó que ele aprendeu a resistir às pressões contra seu território. Hoje, quase 600 indígenas Guarani ocupam apenas 1,7 hectare, menor terra demarcada do país. Mas eles reivindicam uma área de mais de 500 hectares na região. O território se sobrepõe a um parque estadual que abriga o Pico do Jaraguá, o ponto mais alto da capital. Do alto de seus 1.135 metros, é possível ver o horizonte completamente tomado pelos prédios da maior metrópole da América Latina em forte contraste com o trecho de Mata Atlântica preservada da montanha. 

A região, rodeada por amplas rodovias e condomínios de luxo, é pressionada por interesses imobiliários.

Vista aérea da aldeia Tekoá Pyau, no Jaraguá
Vista aérea da aldeia Tekoá Pyau, no Jaraguá, território indígena cercado por rodovias e casas de luxo, com constante pressão do setor imobiliário (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)
Jovem indígena olha o centro de São Paulo
Jovem indígena olha o centro de São Paulo, a 20 quilômetros do território do Jaraguá (Imagem: Dan Agostini)

“Sabemos que, para os jurua [como os Guarani se referem aos brancos], a terra onde vivemos tem um alto valor por metro quadrado, mas nossa vida, não”, diz Djekupe.

Em maio, vereadores começaram a discutir mudanças no plano diretor de São Paulo. Uma de suas principais propostas é ampliar a zona em que os edifícios não têm limite de altura para incluir o entorno do Jaraguá. “Há muitos movimentos de loteamento irregulares promovidos por gente poderosa”, disse a vereadora Luana Alves ao Diálogo Chino.

Poluição e ameaças se intensificam

Enquanto os apartamentos de luxo continuam a se expandir perto do Pico de Jaraguá, as condições dentro do território indígena tornam-se cada vez mais desgastantes. Na aldeia Tekoá Pyau, com chão de terra batida, famílias Tupi-Guarani e Guarani Mbyá compartilham moradias, banheiros e cozinhas. Algumas casas, construídas com apoio de organizações sociais, são de madeira resistente, enquanto outras, mais precárias, com restos de madeira e compensado. 

Uma escola e um centro comunitário são de alvenaria. No tradicional estilo de construção Guarani, com barro e madeira, segue de pé a casa de reza. O campo de futebol é movimentado, disputado por um time feminino.

No fim da tarde, os moradores da aldeia se encontram em torno de pequenas fogueiras para se aquecer do frio da capital, cuja média mínima fica em 13 °C em julho. Todos têm luz. Já o acesso à água é mais difícil, costuma faltar à noite. O esgoto não é tratado.

Jovens indígenas cozinham e fazem artesanato na aldeia Tekoá Pyau
Jovens indígenas cozinham e fazem artesanato na aldeia Tekoá Pyau, no Jaraguá, São Paulo (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)
O centro de convivência cultural na aldeia Tekoá Pyau
O centro de convivência cultural é uma das poucas construções de tijolos na aldeia Tekoá Pyau. Casas, banheiros e cozinhas são compartilhados (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)
Morador da aldeia enche um balde d’água para tomar banho
Morador da aldeia enche um balde d’água para tomar banho. A água geralmente falta à noite, e o esgoto não é tratado (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)

Djekupe tem saudades do tempo em que se banhava naquele que todos conhecem como o “Rio da vó” — o Ribeirão das Lavras, que corta o território, hoje poluído e impróprio ao banho. “Antes de ir até lá, a gente passava na casa da vó [Jandira], que nos ensinava a pedir permissão aos espíritos da água para tomar banho e pegar alimento”, conta.  

Segundo ele, a poluição e as ameaças têm se intensificado em meio à demora na definição do projeto de lei e da ação do STF. “Essa indefinição estimula invasores que acreditam que suas ações serão legalizadas no futuro”, diz Djekupe.

Em maio, Txai Suruí sofreu uma emboscada por um grupo de cerca de 50 homens na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia.

Processos defendem marco temporal

Enquanto o casal une forças para resistir, o projeto de lei passa por comissões do Senado, agora sob o nome de PL 2309, mas ainda sem data para a votação. Já o processo do STF deve ser retomado até setembro. Esse julgamento tem origem em uma disputa territorial entre o governo estadual e o povo Xokleng em Santa Catarina, mas se aprovado pela Corte pode impactar todas as demarcações de terras do país.

“Ao receber esta ação [como relator], o ministro do STF, Edson Fachin, declarou que a decisão terá repercussão geral, ou seja, irá valer para todos os processos Brasil afora que tratem do mesmo tema”, explica a advogada e pesquisadora da Apib, Ana Carolina Alfinito.

Quem defende os processos, como o relator do PL, o deputado federal Arthur Maia, e representantes do agronegócio argumentam que isso garante segurança jurídica a proprietários de terras.

Mulheres indígenas Guarani no território Jaraguá, São Paulo
Mulheres indígenas Guarani no território Jaraguá, São Paulo. Sua comunidade aguarda decisões legais sobre o marco temporal, que exigiria que indígenas provassem que ocupavam as terras que reivindicam em 5 de outubro de 1988, dia da proclamação da Constituição brasileira (Imagem: Dan Agostini / Diálogo Chino)

Tanto o PL quanto o processo do STF discutem a tese do marco temporal, que demanda que os povos originários tenham provas de que viviam nas áreas reivindicadas no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. 

Essa tese, no entanto, desconsidera que os povos indígenas sofreram deslocamentos forçados ao longo da história, em especial no início da colonização europeia a partir do século 16 e durante a ditadura militar (1964–1985). E também ignora a existência de provas sobre a ocupação dos povos no território brasileiro. “Há evidências arqueológicas da presença Guarani na região de São Paulo e Mato Grosso do Sul há pelo menos dois mil anos”, explica o professor e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Eduardo Neves. 

Embora a tese do marco temporal apareça em ambos os processos, o projeto de lei, segundo Alfinito, tem  “muito mais pontos devastadores e claramente inconstitucionais”. A lei permitiria, por exemplo, atividades econômicas que degradariam a vegetação protegida pelas terras indígenas. 

Para Thiago Djekupe e Txai Suruí, é justamente a proteção ambiental que deveria ser a  prioridade — na qual grupos indígenas podem desempenhar um papel fundamental. “Preservamos as árvores, as abelhas em risco de extinção e centenas de nascentes do parque, onde há um lençol freático superimportante”, diz Djekupe. 

Suruí acrescenta que garantir a proteção dessas terras indígenas — e dos ecossistemas dentro delas — terá implicações para muito além de suas fronteiras sempre ameaçadas: “Não estamos falando só da vida dos povos originários, estamos falando da vida de cada um e da vida inclusive daqueles que estão decidindo contra nosso futuro”.