Energia

América Latina será decisiva para descarbonizar economia global, diz relatório

Agência Internacional de Energia avalia que região tem potencial para impulsionar transição energética, mas vê nela grandes desafios socioeconômicos e políticos
<p>Usina solar Cerro Dominador, no deserto de Atacama, norte do Chile. A região do Atacama recebe um dos mais alto níveis de radiação solar no mundo e é central na expansão da energia solar no Chile (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2mb7XSz">Tamara Merino</a> / <a href="https://flickr.com/people/imfphoto/">Fundo Monetário Internacional</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/">CC BY-NC-ND</a>)</p>

Usina solar Cerro Dominador, no deserto de Atacama, norte do Chile. A região do Atacama recebe um dos mais alto níveis de radiação solar no mundo e é central na expansão da energia solar no Chile (Imagem: Tamara Merino / Fundo Monetário Internacional, CC BY-NC-ND)

A América Latina pode desempenhar um papel cada vez mais influente na transição global para a energia limpa, diz um novo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês).

O Panorama Energético da América Latina, da IEA, ressalta os sucessos da região na geração de energia renovável e como seus abundantes recursos naturais poderiam acelerar as transições energéticas local e global. 

Atualmente, os combustíveis fósseis respondem por dois terços da matriz energética da América Latina — abaixo da média global de 80% —, e 60% da eletricidade provém de fontes renováveis. Isso coloca a região “na dianteira” para impulsionar a adoção de energias mais limpas no mundo, avalia o diretor-executivo da IEA, Fatih Birol. 

Lar de mais de um terço das reservas mundiais de cobre e lítio, essenciais para a transição energética, e com um potencial “enorme” para o desenvolvimento das energias solar e eólica, a América Latina “pode desempenhar um papel descomunal na nova economia global”, acrescenta Birol.

Por outro lado, o relatório também enfatiza o papel notório dos combustíveis fósseis nas atuais economias latino-americanas. O documento alerta que ainda há lacunas de políticas públicas a serem preenchidas e investimentos necessários para que a região aproveite todo seu potencial de geração de energia limpa e conduza transições justas nos países mais dependentes de combustíveis fósseis.

Casa próxima ao Complexo Eólico Folha Larga Norte, em Campo Formoso, na Bahia
Casa próxima ao Complexo Eólico Folha Larga Norte, em Campo Formoso, na Bahia. O desenvolvimento das energias solar e eólica apresenta grandes oportunidades para a região, mas também pode trazer conflitos com comunidades (Imagem: Camilo Lobo / Diálogo Chino)

Energias renováveis impulsionam a mudança

O relatório da IEA é o primeiro a avaliar em profundidade o contexto do setor energético na América Latina, apresentando também três cenários para o futuro: um que reflete as políticas atuais, com um aumento de 2,4 °C na temperatura média global até 2100 em relação aos níveis pré-industriais; outro que pressupõe o cumprimento das metas climáticas de cada país, como os objetivos do Acordo de Paris e os compromissos de 16 dos 33 países da região para zerar emissões líquidas de carbono; e um último cenário mais ambicioso, no qual as emissões líquidas são zeradas até 2050 e o aumento da temperatura média global se mantém em 1,5 °C até 2100.

A América Latina, diz o relatório, tem um dos setores elétricos mais limpos do mundo: as hidrelétricas compõem a maior parte (45%) da eletricidade gerada na região. Além disso, a participação das fontes renováveis na matriz elétrica deve se expandir nos três cenários, passando dos atuais 60% para 80% até 2050 mesmo com as políticas atuais.

A energia hidrelétrica está na base das redes elétricas de muitos países latino-americanos, mas a IEA defende que sua expansão seja limitada daqui para frente, principalmente em razão dos conflitos socioambientais ligados à construção das barragens — com muitas áreas cobiçadas na vulnerável bacia amazônica. A agência também alerta para os riscos que mudanças nos padrões de chuva em um contexto de crise climática representam para a geração hidrelétrica.

Já o desenvolvimento das energias solar e eólica, tanto em terra firme quanto offshore, apresenta grandes oportunidades para a região, diz a IEA. Nos últimos anos, países como o Brasil e o Chile têm aparecido na vanguarda dessa tendência e, junto a México, Colômbia e Peru, tiveram um aumento na capacidade de energia solar maior do que a África, o Oriente Médio, a Rússia e a Ásia Central juntos. Sozinho, o Brasil tem uma expansão mensal de um gigawatt de capacidade solar desde julho de 2022.

Esse potencial de energia renovável na América Latina também pode alavancar a produção de hidrogênio de baixa emissão a um custo menor do que em outras partes do mundo, projeta a IEA. Esse combustível, muitas vezes obtido como subproduto de outros processos de geração de energia, pode ajudar a descarbonizar setores como a indústria e o transporte.

Alguns países da região — como Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Panamá, Uruguai e Brasil — já se movimentam rumo ao novo mercado de hidrogênio verde. Porém, a história de outras formas de geração de energia se repete: comunidades e ambientalistas temem que esses projetos façam uso desmedido da água em áreas propensas ao estresse hídrico.

Combustíveis fósseis seguem no comando

Apesar do progresso e do potencial da América Latina em relação às energias renováveis, os combustíveis fósseis ainda são a principal fonte energética na região, e o petróleo segue como o combustível dominante em muitos países, principalmente no transporte e na indústria.

O relatório da IEA diz que a região detém 15% das reservas globais de petróleo e gás natural e menos de 1% das de carvão. Entre esses recursos, há campos de gás de xisto, como os da Argentina, país que já mira na exportação do gás.

O Brasil, a Venezuela e a Colômbia estão entre os principais exportadores de petróleo da América Latina. Já o Chile, a República Dominicana e o Panamá estão entre os mais dependentes das importações de petróleo e gás para suprir a demanda interna. A IEA observa que a produção de petróleo e gás na região aumentou 5% em 2022, e estima-se um novo crescimento este ano; até 2030, a produção de petróleo da região deve superar o crescimento da demanda interna, com um excedente voltado para a exportação.

Embora a demanda energética na América Latina aumente em todos os cenários apresentados pela IEA, a forma de supri-la varia muito. Com base nas políticas atuais, a agência projeta que os combustíveis fósseis seguiriam atendendo à demanda de energia da região, embora com uma leve queda na participação da matriz energética, passando de 67% em 2022 para 63% em 2030. 

Agora, se as metas climáticas forem cumpridas, o consumo de combustíveis fósseis deve chegar ao seu auge em meados da década, com uma subsequente redução, atingindo 57% de participação da matriz energética. Já no cenário mais ambicioso, com zero emissões líquidas, a adoção mais rápida de energias renováveis e uma maior eficiência energética colocariam a participação dos combustíveis fósseis em 50% até 2030.

Comunidade de Puerto Chuvica, às margens do Salar de Uyuni, na Bolívia
Comunidade de Puerto Chuvica, às margens do Salar de Uyuni, na Bolívia. Os planos para impulsionar a extração de lítio na área geraram preocupações sobre os impactos no abastecimento de água (Imagem: Ernst Udo Drawert / Diálogo Chino)

Minérios latino-americanos: a nova fronteira

As projeções da IEA ressaltam o papel revelante que a América Latina pode desempenhar na transição energética por meio da produção de componentes essenciais para tecnologias de energia limpa, como baterias elétricas — a região tem metade das reservas globais de lítio e mais de um terço das reservas de cobre e prata.

A agência também vê um potencial na região para produzir um volume significativo de grafite, níquel, manganês e outros elementos conhecidos como terras raras, essenciais para a transição energética. O Brasil detém um quinto das reservas globais de cada um desses recursos, embora sua produção atual seja relativamente pequena. O país também possui grandes reservas de bauxita, usadas na produção de alumínio, componente usado nas linhas de transmissão de energia.

A IEA pede ainda que os governos fiscalizem o cumprimento dos padrões socioambientais das empresas, reconhecendo o surgimento de um movimento “antimineração” após os desastres ambientais vistos na última década — entre eles, o rompimento das barragens de rejeitos em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. O relatório ainda cobrou mais diálogo entre as partes envolvidas, de investidores a comunidades.

A região também deve aumentar os esforços para ir além da extração mineral e garantir o refino de matérias-primas, um movimento importante para aumentar o valor agregado da indústria extrativista e garantir mais empregos. Alguns países já exploram esse caminho na industrialização do lítio, aumentando o financiamento para a pesquisa e construindo instalações para produção local, como a nova fábrica de baterias de lítio perto de Buenos Aires, na Argentina.

Stephanie Bouckaert, principal autora do panorama da IEA, disse no lançamento do relatório, em 8 de novembro, que concentrar as cadeias de produção extrativistas na América Latina traz “uma oportunidade para o mundo”, já que o processamento e o refino em uma região com eletricidade de baixa emissão de carbono significa que “os minerais essenciais serão mais verdes”.

Mulher e criança do povo Wayuu andam de moto nas salinas de Manaure e Mayapo
Mulher e criança do povo Wayuu andam de moto nas salinas de Manaure e Mayapo, Colômbia. Na região da Guajira, uma das mais pobres do país, as comunidades sofrem com a falta de acesso à eletricidade e à água potável (Imagem: Andrea Puentes / Presidência da Colômbia, CC0)

Desafios para a transição

Apesar do potencial enorme, a IEA observa que a América Latina ainda enfrenta enormes desafios em sua transição energética, principalmente devido à falta de investimentos. A agência informa que a região apresentou um dos níveis mais baixos de investimento em energia proporcionais ao PIB, abaixo de 3% entre 2014 e 2022, inferiores aos da Rússia e da Ásia Central (5%) e da África Subsaariana (4%) no mesmo período.

Para cumprir as metas climáticas, o financiamento de energias renováveis na América Latina precisaria dobrar para chegar a US$ 150 bilhões ao ano até 2030 e quintuplicar até 2050, calcula a IEA. O relatório faz menção especial aos bancos de desenvolvimento chineses como uma fonte notável de financiamento no setor de energia para alguns governos da região, mas observa o rápido declínio desses empréstimos desde 2016.

A IEA destaca a necessidade de realizar transições energéticas “inclusivas e centradas nas pessoas” que apresentem oportunidades de emprego em uma das regiões mais desiguais do mundo. 

Estima-se que pelo menos 17 milhões de pessoas, 3% da população da região, ainda não tenham acesso à eletricidade. Além disso, 74 milhões não conseguem cozinhar com fontes limpas — fator que agrava a poluição e a saúde dos latino-americanos. “É preciso fazer mais para garantir o acesso universal em ambos os aspectos”, diz o relatório. A IEA considera uma “questão central” o fornecimento de energia acessível e o apoio a populações pobres. 

O documento também se concentra nas implicações da transformação da matriz energética no mercado de trabalho, aspecto vital das chamadas transições justas. A IEA observa que o setor de energia representa 2% da força de trabalho na América Latina e no Caribe, com seis milhões de empregos; caso as promessas se concretizem, esse número poderia aumentar 15% até 2030, com até quatro milhões de pessoas empregadas no mercado de energias limpas.

O setor de energia latino-americano pode, no entanto, se deparar com outros desafios decorrentes dos impactos das mudanças climáticas. Até 2050, segundo a IEA, mais de 70% da capacidade hidrelétrica instalada na região deverá enfrentar climas mais secos, sendo que os países já sofreram graves quedas na produção durante as últimas secas. O aumento das temperaturas também é mencionado como uma preocupação, já que pode prejudicar a própria geração solar e eólica. 

Isso poderia ser parcialmente sanado por uma maior integração regional das redes de energia, atualmente bastante limitada na América Latina, avalia o relatório. “A ligação entre a demanda e o fornecimento de eletricidade de diferentes zonas climáticas proporciona mais resiliência às mudanças do clima”, escreve a agência, observando que isso também poderia ajudar os países a lidar com a intermitência da geração de energia renovável.

O relatório traz uma mensagem cristalina: a América Latina e o Caribe têm uma grande oportunidade ao seu alcance
Fatih Birol, diretor-executivo da Agência Internacional de Energia

O relatório identifica quatro ações principais para reduzir as emissões de CO₂ no setor energético: acelerar a adoção de fontes renováveis; avançar na eletrificação da indústria e do transporte; aumentar a eficiência energética; e impulsionar o acesso a soluções para cozinhar sem poluir. Se as promessas anunciadas pelos países forem cumpridas, a região verá as energias renováveis atenderem a uma nova demanda global nesta década.

A transição energética pode ser uma “solução verde tripla” para a região, avaliou José Manuel Salazar-Xirinachs, da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, no lançamento do relatório: esse processo, diz, pode melhorar o bem-estar da população, construir economias sustentáveis e resilientes e impulsionar a descarbonização para proteger o meio ambiente.

“O relatório traz uma mensagem cristalina: a América Latina e o Caribe têm uma grande oportunidade ao seu alcance”, diz Fatih Biro, diretor-executivo da IEA. “No entanto, a transição para a energia limpa precisa ser planejada. Não é possível passar de economias baseadas em petróleo e gás para economias baseadas em energia limpa de um dia para o outro. Todos os segmentos da população precisam se beneficiar da transição, especialmente os economicamente mais vulneráveis”.