Países latino-americanos começam a dar seus primeiros passos na crescente indústria global de hidrogênio verde, procurando aproveitar seu alto potencial em energias renováveis e direcionar esforços para a neutralidade de carbono até meados do século.
O gás hidrogênio, utilizado como combustível para o transporte, geração de energia e atividades industriais, não libera emissões de gases de efeito estufa quando é queimado, mas tem sido frequentemente obtido como subproduto de processos poluentes. Sua recente reviravolta “verde”, no entanto, tem sido tema de muito debate da indústria e da imprensa e se refere ao gás hidrogênio produzido a partir de fontes de energia renovável com zero emissões de poluentes.
O setor energético responde por 43% de todas as emissões na América Latina e no Caribe, segundo dados do Banco Mundial. A transformação da matriz energética é, portanto, uma realidade inevitável se os países da região quiserem cumprir suas obrigações do Acordo de Paris para limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
“Estamos longe de atingir essa meta, se continuarmos a fazer apenas pequenos movimentos”, alerta Noelia Medina, assessora da Diretoria Nacional de Energia do Uruguai e membro de um grupo interinstitucional para o desenvolvimento do hidrogênio verde. “É necessário algo realmente drástico e revolucionário, como o hidrogênio verde, que afeta todas as cadeias de valor, para atingir essa meta climática”.
Regulação do hidrogênio verde
Para alguns países, o hidrogênio verde apresenta uma oportunidade promissora para exportar o combustível. Para outros, o foco está em utilizá-lo na produção local de subprodutos, seja para o desenvolvimento de combustíveis sintéticos, fertilizantes limpos, eletromobilidade e uma série de outros usos industriais e domésticos.
María Paz de la Cruz, diretora-executiva da H2 Chile, a associação chilena de hidrogênio, diz que o hidrogênio verde vai liderar a contribuição do Chile para as medidas de mitigação do aquecimento global. De acordo com ela, o combustível poderia contribuir com 24% das reduções totais de dióxido de carbono do país até meados do século.
“O hidrogênio verde é nossa melhor opção para acelerar a transição energética”, acrescenta de la Cruz. Apesar de o Chile derivar atualmente 68% de sua energia de combustíveis fósseis, a nação já lidera o caminho do hidrogênio verde na América Latina: ele lançou uma estratégia nacional em 2020, que estabeleceu metas específicas, como ser o país com o hidrogênio verde mais barato do planeta, e custará menos de US$ 1,5 por quilo até 2030.
Junto com o Chile, a Colômbia é outro país que avança no desenvolvimento desse combustível. Além de publicar um plano para o setor em 2021, o país estabeleceu incentivos fiscais para projetos de hidrogênio verde e “azul” (gerado a partir de combustíveis fósseis, mas com captura de emissões), na busca de novos investimentos.
A Colômbia espera reduzir suas emissões em 51% até 2030 e o desenvolvimento do hidrogênio verde é “central para essa discussão”, defende Katharina Grosso, que até outubro deste ano foi diretora-executiva do Fundo de Energias Não Convencionais e Gestão Eficiente de Energia, uma agência do governo colombiano.
No ano passado, o país aprovou sua Lei de Transição Energética, na qual destaca o hidrogênio. O novo presidente, Gustavo Petro, também prometeu impulsionar a descarbonização da economia, o que pode dar ainda mais força às iniciativas verdes.
O Uruguai, por sua vez, apresentou o hidrogênio verde em sua Estratégia Climática de Longo Prazo e lançou uma convocatória para projetos-piloto – ainda em andamento. Embora essas iniciativas estejam focadas em aplicações domésticas, autoridades esperam que elas sirvam como uma “curva de aprendizado” para ajudar a formar técnicos no mundo do hidrogênio, diz o ministro da Indústria, Minas e Energia do Uruguai, Omar Paganini.
Adrián Peña, ministro do Meio Ambiente uruguaio, corrobora essa posição. Ele aponta que a intenção é transformar o hidrogênio verde em “uma energia limpa e transitória que não tenha efeito colateral para o meio ambiente”. Portanto, acrescenta Peña, “preparar nossa população para este desenvolvimento é fundamental”.
O objetivo do Uruguai é começar a produzir hidrogênio verde em 2025, de acordo com seu próprio plano. Paganini diz que o país tem “vantagens comparativas” que lhe permitirão posicionar-se como um “fornecedor de combustíveis alternativos verdes” para novos mercados, como seu já desenvolvido setor de energia renovável. O Uruguai gera mais de 98% de sua eletricidade a partir de fontes renováveis.
Enquanto isso, na Argentina, Juan Carlos Villalonga, ex-deputado federal e especialista em questões energéticas, descreve a situação do país como um pouco mais “precária”. Embora o país tenha aprovado a Lei Nacional de Promoção do Hidrogênio em 2006, a regulamentação nunca foi concluída, e é por isso que a plataforma H2 Argentina, da qual Villalonga é membro, cobra avanços em um marco regulatório para promover investimentos de hidrogênio a longo prazo.
“A Argentina tem todo o século 20 nas costas, e o setor de combustíveis fósseis – que fornece quase 80% de sua matriz energética – não está disposto a perder privilégios”, acrescenta o ex-parlamentar.
Projetos de hidrogênio na América Latina
O Banco Mundial destacou o potencial de produção de hidrogênio verde na América Latina – a região deve virar uma das mais competitivas no setor até 2030. No último relatório regional da H2LAC, iniciativa da entidade, é destacado que, embora estejam em diferentes níveis, já há 13 projetos operacionais na região e mais de 70 em desenvolvimento.
O Chile, por exemplo, tem quase 30 iniciativas que vão desde a aplicação do hidrogênio no transporte público e de carga até a produção de metanol ou amônia “verde” para a indústria de explosivos.
Esses são alguns dos principais projetos em desenvolvimento no país: o H2 Magallanes, promovido pela empresa parisiense Total Eren, que incluirá uma instalação portuária para exportação no sul chileno; o projeto-piloto Haru Oni, apoiado pela empresa chilena HIF, a italiana Enel Green Power e a multinacional alemã Siemens Energy, se concentrará na criação de combustíveis baseados em energias renováveis também na região de Magallanes; e o projeto HyEx, liderado pela empresa de energia francesa Engie e a chilena Enaex, na província de Antofagasta.
A Colômbia tem mais de dez projetos em estudo. As áreas de aplicação vão desde a construção de um hub verde de hidrogênio para abastecer a indústria siderúrgica até a produção de combustível a partir de excedentes de energia renovável para mobilidade e uso industrial. Por exemplo, uma iniciativa de hidrogênio verde já está em operação na refinaria de petróleo de Cartagena da Ecopetrol, alimentada por painéis solares. O fornecedor de gás natural Promigas também tem um projeto ativo no país.
O Uruguai, por sua vez, trabalha no piloto H2U, uma estratégia que pode ser aplicada tanto no transporte pesado quanto na produção de amônia e fertilizantes verdes. No setor privado, a empresa alemã Enertrag, em cooperação com a uruguaia SEG Ingeniería, projeta o Tambor Green Hydrogen Hub, uma usina para a produção de hidrogênio verde e derivados como o metanol, no departamento de Tacuarembó.
Na Argentina, já existe uma unidade de produção de hidrogênio limpo em Comodoro Rivadavia, na província patagônica de Chubut – as instalações são administradas pela empresa local Hychico. Autoridades também anunciaram o início do projeto Pampas na província de Río Negro, uma iniciativa bilionária focada na produção de hidrogênio verde em escala industrial, liderada pela empresa australiana Fortescue Future Industries.
Futuro do hidrogênio verde
Em meio à excitação de entrar em um mercado potencialmente de bilhões de dólares e às dificuldades para lançar novas tecnologias, a corrida para ser o líder regional em hidrogênio verde já começou. E a América Latina está preparando seus próximos passos.
Mas há algumas questões sobre a sustentabilidade do hidrogênio verde, particularmente em relação ao consumo de água necessário para sua produção, em uma região que tem visto frequentemente períodos de seca intensa, do Chile à Argentina e ao Brasil. Para obter uma tonelada de hidrogênio verde podem ser necessárias até nove toneladas de água, o que poderia ser um obstáculo em alguns dos climas mais secos da região. Mas, no Uruguai, por exemplo, tais volumes não são considerados problemáticos quando comparados ao uso de água em outros setores produtivos.
Para Monica Gasca, diretora-executiva da Hidrógeno Colombia, a associação colombiana de hidrogênio, o maior desafio para a indústria será incentivar a demanda local por hidrogênio verde, bem como estabelecer novos instrumentos financeiros para alavancar projetos. Gasca também expressou cautela sobre o desenvolvimento do hidrogênio verde, dizendo que o combustível “não é a solução para tudo”.
“Não é um canivete suíço, nem uma bala de prata”, aponta Gasca. “O hidrogênio tem certos nichos que precisam ser explorados, mas primeiro temos que resolver questões de eficiência energética e eletrificação”.
Outros desafios serão a criação de políticas públicas que incentivem os avanços tecnológicos e garantam que as iniciativas sejam implementadas de forma a não trazer conflitos ou distúrbios às comunidades urbanas e indígenas, de acordo com os especialistas consultados.
Ivan Zimmermann, engenheiro elétrico que atuou como chefe de gabinete no Ministério de Energia do Chile até setembro, diz que será essencial “gerar uma sinergia” entre a ação pública e privada, o que permitirá o desenvolvimento sustentável da indústria a longo prazo.
“Se não for tratado como uma política estatal, isto vai gerar conflitos socioambientais nos territórios que podem prejudicar o amadurecimento saudável da tecnologia”, explicou Zimmermann.
Villalonga, da H2 Argentina, também mencionou os entraves e oportunidades decorrentes do atual contexto geopolítico, principalmente pelos efeitos da guerra na Ucrânia. Como os países europeus encontram dificuldades em abrir mão de um de seus principais fornecedores de energia, a segurança energética “torna-se um valor em si” e abre as portas para novas oportunidades de mercado para a América Latina, diz o especialista.
É por isso que o desenvolvimento da indústria precisará ser pensado “estrategicamente”, observa a assessora uruguaia Medina. Enquanto as regulamentações do setor são aperfeiçoadas, os preços competitivos da energia para o hidrogênio verde são alcançados e as questões logísticas em larga escala são resolvidas.
Além disso, com muitos países caminhando na mesma direção, diz o ministro uruguaio Paganini, tanto a concorrência entre mercados emergentes quanto a “incerteza” sobre a viabilidade das iniciativas de hidrogênio verde serão desafios para o setor na América Latina.