Depois de quatro anos de um relacionamento cheio de vai e vem, Argentina e a China podem finalmente renovar sua aliança. O motivo é a vitória de Alberto Fernández, de um partido de esquerda, nas eleições presidenciais do último domingo — com Cristina de Fernández Kirchner como vice.
Durante o segundo mandato de Fernández de Kircher (2011-2015), a Argentina assinou 20 tratados de cooperação e concordou com diversos pacotes financeiros para a construção chinesa de projetos de infraestrutura, incluindo um controverso complexo nuclear e duas grandes barragens.
45%
a parcela de votos necessária para candidatos presidenciais na Argentina para evitar um segundo turno
Mauricio Macri, seu sucessor na Casa Rosada, expressou preocupação sobre os acordos, mas no fim acabou não cancelando nenhum deles.
A vitória de Fernández no primeiro turno, com 48% dos votos, pôs fim às esperanças de reeleição de Macri, cuja candidatura foi afetada negativamente pela proximidade da Argentina de uma nova moratória.
O país enfrenta um cenário de crescente endividamento – devendo inclusive ao Fundo Monetário Internacional (FMI) –, o que é profundamente mal visto no país desde a moratória de 2001. Um estreitamento dos laços com a China, uma importante credora, já desponta no horizonte.
“A Argentina provavelmente fortalecerá a sua ligação com a China sob a administração de Fernández”, disse Sergio Cesarin, coordenador do Centro de Estudos sobre a Ásia-Pacífico e a Índia (CEAPI) na Universidade Tres de Febrero. “Os projetos chineses que tinham sido questionados por Macri agora serão reativados”.
Pistas sobre as políticas de Fernández
Embora Fernández tenha dado poucas pistas a respeito das políticas que adotará para as relações diplomáticas, a China foi mencionada com certa frequência. O novo presidente insinuou que Macri não apreciava o papel da China como uma investidora estrangeira confiável e disse ao FMI que iria se apoiar mais na China caso eles não fossem flexíveis quanto às condições de pagamento da dívida.
Fernández teve um encontro com Zou Xiaoli, embaixador da China na Argentina, durante a campanha presidencial dele, e com alguns conselheiros de política externa como Jorge Arguello e Jorge Taiana, que recentemente visitaram a embaixada chinesa em Buenos Aires.
Depois das eleições, Geng Shuang, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, parabenizou Fernández por sua vitória e afirmou que o país valoriza os laços com a Argentina. Eles querem trabalhar por um “progresso firme” no relacionamento.
Fernández tem interesse em um relacionamento maduro com a China e com os EUA, buscando aproveitar o melhor dos dois países
Rafael Gentili, presidente do Laboratório de Políticas Públicas (LPP), um think-tank progressivo, acredita que o relacionamento entre o novo governo e a China será, ao mesmo tempo, “estreito” e “discreto”, com o objetivo de manter o compromisso chinês em diversas áreas-chave.
A Argentina tem uma aliança estratégica e abrangente com a China, um status diplomático que os chineses estendem a pouquíssimos países.
O país também se beneficiou de um swap cambial de 19 bilhões de dólares que ajudou a aumentar as reservas de moeda estrangeira do Banco Central, que haviam sofrido uma queda de 28 bilhões de dólares nos últimos seis meses. A primeira parte do swap foi realizada durante o governo de Kirchner. Macri concordou com uma extensão.
Macri também revisou os projetos de barragens na Patagônia e de usinas de energia nuclear em Buenos Aires, ambos com financiamento chinês. Ele inseriu algumas mudanças e reduziu os projetos, mas os dois ainda aguardam confirmação.
Os especialistas acreditam que os projetos podem ser incentivados na administração de Fernández, apesar de serem questionados por autoridades da área ambiental e de energia. Apesar disso, a China não necessariamente será o principal foco das relações exteriores da Argentina, uma vez que o país espera cultivar boas relações com outros credores internacionais.
“Fernández tem interesse em um relacionamento maduro com a China e com os EUA, buscando aproveitar o melhor dos dois países. Se a China quiser investir e proporcionar financiamentos, então ótimo. A necessidade se sobreporá à ideologia”, disse Marcelo Elizondo, especialista em comércio na consultoria DNI.
Papel do Mercosul
Assim como aconteceu na Argentina, o Uruguai também vai escolher um novo presidente. O segundo turno das suas eleições acontece no mês quem vem. Essas mudanças políticas na região provavelmente terão consequências para o mercado comum do Mercosul, cujos membros permanentes incluem Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, e para o relacionamento do bloco com a China.
Ao longo dos últimos anos, o Uruguai tem lutado por um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a China. Até agora o bloco não considerou a possibilidade. O país sediou uma reunião de diálogo entre o Mercosul e a China no ano passado em Montevidéu e colocou um potencial acordo no topo da agenda de discussão.
O Uruguai também discutiu a possibilidade de assinar um acordo de comércio bilateral com a China, algo que não é permitido sob as regras do Mercosul. A China manifestou interesse e mencionou o desejo de “explorar o potencial do comércio bilateral” com a América Latina num documento oficial publicado em 2016.
Ignacio Bartesaghi, reitor da Faculdade de Estudos Empresariais da Universidade Católica do Uruguai, disse que Fernández provavelmente adotará uma política econômica mais protecionista, o que mudaria a dinâmica do Mercosul e criaria tensão entre a Argentina e os demais membros do bloco.
Essas tensões já são visíveis. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro disse que não cumprimentaria Fernández por sua recente vitória e ameaçou abandonar o Mercosul se a Argentina não adotasse a mesma abordagem de mercado aberto de Macri. A Argentina e o Brasil têm ligações comerciais fortes que movimentaram 12 bilhões de dólares desde o início do ano.
O Brasil sediará a próxima cúpula do bloco no início de dezembro, antes de Fernández tomar posse. A principal questão será a proposta de Bolsonaro de reduzir as tarifas de mais de 10 mil produtos importados por países-membros, uma ideia que provavelmente será questionada por Fernández.
“É provável que Fernández adote uma política mais industrialista, então não fará muito sentido para ele abraçar um acordo de livre comércio com a China, tanto através do Mercosul como bilateralmente”, disse Julieta Zelicovich, especialista em relações internacionais.
“Não vejo um acordo comercial entre o Mercosul e a China no horizonte”.