Com uma receita de US$ 53 bilhões, a multinacional do agronegócio Cofco International concentra 60% de seus ativos de grãos na América do Sul — em parte alavancados por empréstimos de US$ 3 bilhões atrelados a metas de sustentabilidade. Embora siga sua expansão regional apoiada por financiamentos verdes, a trading presta poucas e opacas informações sobre os avanços de seus compromissos ambientais.
Em 2020, a Cofco International havia prometido rastrear, até este ano, todas as fazendas de soja das quais compra diretamente no Brasil, seu principal parceiro na América do Sul. O objetivo era garantir que a empresa não comprasse grãos cultivados em terras desmatadas ilegalmente.
Em vias de acabar o prazo, a empresa informa ter atingido 80% de sua meta, segundo seu último relatório de sustentabilidade, divulgado em junho. Mas essa informação não passa de uma linha em um documento de mais de 80 páginas. Em suas plataformas digitais, há poucos detalhes desse progresso.
Em outro trecho do relatório, Helen Song, diretora financeira da Cofco International, disse que “a cada ano, a proporção de commodities certificadas de forma sustentável em nosso portfólio aumenta”. E na sequência, a companhia garantiu ter atingido “todas as metas socioambientais e de rastreabilidade ligadas aos fornecedores diretos em relação ao nosso empréstimo vinculado à sustentabilidade”. Mas o Diálogo Chino não encontrou no relatório ou em outras plataformas detalhes sobre as metas mencionadas pela empresa, nem a proporção de produtos certificados em seu portfólio.
Em 2021, durante a conferência climática COP26, a Cofco International, junto de outras 11 tradings, assinaram uma declaração se comprometendo com um plano de ação para eliminar o desmatamento de suas cadeias produtivas. Um plano foi então apresentado na cúpula seguinte, a COP27, e previa rastrear a produção de soja no Cerrado, Amazônia e Gran Chaco até 2025. Porém, o documento, embora disponível na internet, não especifica as ações das signatárias.
“As tradings reportam compromissos públicos em ecossistemas vulneráveis, mas a gente precisa ver resultados acontecendo no chão”, diz André Vasconcelos, líder global de engajamento da Trase, plataforma de monitoramento de cadeias de produção. “Elas precisam ser mais transparentes para que a sociedade possa acompanhar seus esforços. Esta é uma deficiência da cadeia inteira”.
Questionada sobre a limitação das informações prestadas, a Cofco International não respondeu aos pedidos de entrevista do Diálogo Chino. A Agrosatélite, parceira da empresa chinesa no monitoramento remoto das fazendas, também não retornou aos pedidos de informações.
Risco de desmatamento
Uma análise divulgada em março pela Trase mostra que a Cofco International esteve exposta ao risco de ter comprado soja de mais de 12 mil hectares, em 2020, de terras então recém-desmatadas, a maior parte no Cerrado.
“Embora grandes empresas comerciantes de commodities, como a Cofco, possuam compromissos de desmatamento zero, esses compromissos são menos claros e, muitas vezes, menos restritivos para formações vegetais não-florestais, como no caso do Cerrado”, diz Vasconcelos. O Cerrado é majoritariamente composto de savanas e tem menos proteções legais — tanto do governo brasileiro como de normas internacionais — do que biomas florestais, como a Amazônia.
E não é apenas um risco: uma investigação de junho da Repórter Brasil mostra que, em 2021, a Cofco comprou, por meio de fornecedores indiretos, soja de áreas desmatadas em Mato Grosso, coberto por Cerrado e Amazônia. Trata-se de operadores intermediários, como cooperativas, armazéns e entrepostos revendedores, situados entre a lavoura e as grandes compradoras — as tradings.
O Soft Commodities Forum (SCF), rede de tradings agrícolas que busca eliminar o desmatamento na cadeia da soja no Cerrado, coleta e divulga dados sobre o avanço das gigantes dos grãos na proteção do bioma. Todos os seis membros do SCF — ADM, Bunge, Cargill, Cofco International, Louis Dreyfus Company (LDC) e Viterra — têm compromissos de eliminar o desmatamento de suas cadeias.
A organização prioriza o monitoramento em localidades que considera de alto risco de desmate. Ocorre, porém, que o desmatamento avança sobre uma área muito maior: enquanto a organização rastreia apenas 61 municípios produtores no Cerrado, há lavouras em pelo menos 1.122 municípios cobertos pelo bioma, segundo a associação do setor Abiove.
Mais de 10 mil km2
de Cerrado foram desmatados entre agosto de 2021 e julho de 2022. A expansão agrícola é a principal responsável.
“Na safra atual plantamos [o setor de soja] 21,4 milhões de hectares no Cerrado, o que equivale à metade da área plantada no Brasil”, afirma Bernardo Pires, diretor de sustentabilidade da associação, em entrevista ao Diálogo Chino. “Praticamente o Cerrado inteiro tem condições favoráveis ao cultivo e, de fato, é uma expansão que deve ser controlada”. A Abiove não se pronunciou especificamente sobre a Cofco International.
O relatório mais recente da SCF, de dezembro de 2022, diz que a trading mapeia 100% dos fornecedores indiretos até o primeiro ponto de agregação (onde os grãos de diferentes fazendas se misturam, por exemplo, nos silos de uma cooperativa) desses 61 municípios, mas o documento não menciona como isso foi feito, nem como chegou aos resultados apresentados.
O bioma já perdeu metade da vegetação nativa e continua sofrendo recordes de desmatamento. Conforme o Prodes, sistema de monitoramento do governo brasileiro, a perda da savana no último ano foi a maior desde 2015. No monitoramento anual, entre agosto de 2021 e julho de 2022, o bioma perdeu mais de 10 mil quilômetros quadrados, área duas vezes o tamanho do Distrito Federal.
No momento, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima elabora o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado, que irá à consulta pública no próximo mês.
Trading se consolida no Mato Grosso
Subsidiária da estatal chinesa Cofco Corporation, a Cofco International chegou ao Brasil em 2014, por meio da aquisição das tradings Nidera Sementes e Noble Agri, que já operavam no país. Sua ambição é se tornar líder global no fornecimento de grãos e sementes, quebrando o domínio do grupo ABCD (ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company) na América do Sul.
No Brasil, a Cofco ficou entre as cinco maiores exportadoras de soja em 2020 e é uma das que mais exporta soja para a China. Ela compra soja direta e indiretamente de produtores rurais e intermediários, como cooperativas. Parte dessa soja é processada nas próprias fábricas da trading no país, que depois envia farelo e óleo de soja para diferentes portos da China por meio de suas subsidiárias.
No entanto, não é possível determinar o volume de soja produzido ou exportado pela Cofco International. Além do grande número de subsidiárias envolvidas, nenhuma delas tem operações em bolsas ou divulga voluntariamente essas informações.
A Cofco International diz ter negociado 127 milhões de toneladas de commodities em 2022. Mas ela não oferece dados sobre a divisão deste comércio. Nos relatórios do Round Table On Responsible Soy, organização suíça que monitora o comércio global do grão e da qual a Cofco participa, a chinesa classificou essas informações como “sensíveis”.
Cruzando diferentes bases de dados, a Trase estimou que, em 2020, a Cofco International exportou mais de cinco milhões de toneladas de soja do Brasil, sendo pouco mais de três milhões para a China, e o restante para vários países, incluindo Indonésia e Singapura.
A companhia atua por quase todos os 15 estados e o Distrito Federal permeados por Cerrado — detém duas usinas de processamento e 18 silos em Mato Grosso. Além disso, possui escritórios e prospectores de agricultores, os chamados “originadores”, atuando em epicentros altamente produtivos como Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, Sorriso, em Mato Grosso, e Balsas, no Maranhão.
O coração das operações da chinesa está em Mato Grosso, estado de maior produção agrícola, que tem 40% do seu território coberto pelo Cerrado. Conforme levantamento da reportagem com várias fontes, a multinacional possui, no estado, uma rede de silos, com capacidade de armazenar 1,1 milhão de toneladas de grãos.
A operação não acontece sem incentivos governamentais altos: a reportagem apurou que a Cofco International beneficia-se de mais de dez protocolos de renúncia fiscal com isenções que chegam a 85% em Mato Grosso. Sua infraestrutura continua em expansão no estado, inclusive sobrepondo-se ao Cerrado ou suas zonas de transição com outros ecossistemas.
Rastreamento difícil com mais sojicultores
Vanda Alves mora na comunidade quilombola de Jejum, no município Poconé, ao sul do Mato Grosso, onde planta milho, abóbora, mandioca e banana. Ao redor do vilarejo, vastas plantações de soja, alternadas com culturas de milheto, dominam a paisagem.
“Aqui já está tudo descampado, não tem mais o que desmatar”, conta Alves, cujo vilarejo fica a 80 quilômetros de um armazém da Cofco International. ”É algo absurdo porque, sem a mata, a chuva diminuiu, os córregos secaram, e os poços caseiros não têm mais água [para consumo próprio]”.
Poconé estava entre os dez municípios com mais alertas de desmatamento do Mato Grosso no período de janeiro a agosto deste ano. Uma pesquisa feita pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) detectou agrotóxicos de alta toxicidade nos poços da comunidade do Jejum.
No estado, o desmatamento predomina em áreas privadas, com cadastro ambiental rural (CAR), um dos documentos solicitados pela trading a seus fornecedores diretos de grãos. Embora obrigatório, o CAR é autodeclaratório, e o governo brasileiro demora para verificar se as informações declaradas pelos fazendeiros — como a área de vegetação nativa da propriedade — são verdadeiras. No Mato Grosso, a maior parte do desmatamento vem ocorrendo em fazendas com o CAR, mas sem a autorização do poder público para a supressão vegetal, ou seja, é ilegal.
Com as cotações atrativas da soja nas bolsas agrícolas, o sojicultor Cassimiro Pinheiro é um dos que decidiu investir na cultura em Buritis, município do Cerrado em Minas Gerais. Antes, ele arrendava terras para plantar eucalipto, mas os retornos não foram satisfatórios. Há seis anos, planta somente soja.
“Aqui virou febre e, se você procurar terra para comprar, não vai achar. Todo mundo quer plantar soja”, avisa Pinheiro, revelando que burlar as normas ambientais é prática corriqueira na região. “Eu me preocupo com a derrubada porque isso afeta as águas, mas todo mundo acaba se excedendo um pouco e desmatando até em áreas de preservação permanente”, afirma.
Eles não têm muito incentivo para parar, diz Pinheiro, porque “quando são multados, recorrem algumas vezes para, no final das contas, pagarem bem baratinho”.
O agricultor fornece soja à cooperativa Coagril, que a revende para diversas companhias. Mas ele não sabe se a entidade abastece a Cofco International. Perguntada, a associação não forneceu a informação.
O pesquisador americano Donald Sawyer vive no Brasil há cerca de cinco décadas e, em 1990, ajudou a fundar o Instituto Sociedade, População e Natureza, que apoia projetos conservacionistas. Ele explica que o desmatamento do Cerrado vem trazendo sérios problemas.
“Essa devastação está alterando os ciclos de chuva”, afirma Sawyer. “Os extremos de excesso e falta [de chuva] devem se agudizar, com falta de água em bacias importantes da região Sudeste e no Cone Sul”.
O pesquisador não acredita que o rastreamento dos enormes volumes do grão transportado pelo país seja possível. Maior produtor de soja do mundo, o Brasil finalizou a colheita da safra 2022/2023 e quebrou mais um recorde, com 154,6 milhões de toneladas produzidas. “Como é que vamos saber de onde veio cada saca? O desmate tem de ser combatido onde ele acontece, na ponta da cadeia produtiva, que é a fazenda, e não ao longo do caminho”.
“Acho que, se as promessas de desmatamento zero [das tradings] não se cumprirem, alguns atores serão desmoralizados. Certos segmentos têm que tomar cuidado com gestos simbólicos, que podem sair pela culatra”, finaliza.