Negócios

Em vez de produzir, fábrica na Venezuela importa da China

A Venezuela queria construir uma fábrica para abastecer todo o país com eletrodomésticos manufaturados localmente até 2025. Acabou importando tudo da própria financiadora da fábrica: a Haier, da China.
<p>Ilustração: Vanessa Pan / Armando.info</p>

Ilustração: Vanessa Pan / Armando.info

Em 25 de novembro de 2011, o presidente Hugo Chávez dirigiu a cerimônia televisionada do início da construção do complexo industrial de eletrodomésticos da Haier, a gigante chinesa do setor, direto do palácio presidencial de Miraflores.

Sentados no escritório presidencial do palácio com fones de ouvido, um grupo de executivos chineses ouvia atentamente a tradução simultânea do discurso do presidente venezuelano enquanto assistiam à inauguração da obra em telas individuais.

A 77 quilômetros dali, em San Francisco de Yare, uma cidade no estado de Miranda, Yuri Pimentel, então vice-ministro venezuelano de Planejamento, cumpria o papel de mestre de cerimônias. O cenário para a inauguração estava completo: quatro pás fincadas na areia, com auspiciosas fitas vermelhas amarradas em cada uma delas, e uma pedra fundamental ao centro. Ao lado de Pimentel, estava um representante da empresa chinesa de eletrodomésticos.

A promessa era o projeto alcançar, a médio e longo prazo, independência tecnológica para que a Venezuela pudesse fabricar a própria linha branca — o conjunto de eletrodomésticos que inclui máquinas de lavar, fogões e geladeiras – a preços acessíveis às famílias de baixa renda da Venezuela. Ninguém jamais teria que lavar roupas à mão, ou perder alimentos devido à falta de refrigeração. Assim prometeu Chávez na época.

Uma década depois do evento em Yare, foi a promessa que passou em branco.

No fim das contas, a China pagou e levou em dobro: os empréstimos de Beijing destinados ao financiamento da construção da fábrica foram usados para comprar os produtos já prontos diretamente do país asiático.

fábrica haier
Em 2012, a fábrica de eletrodomésticos foi inaugurada, mas nunca produziu o que o falecido Presidente Hugo Chávez prometeu. (Imagem: Grupo Henan Tianfon)

Um acordo com algumas surpresas

O acordo que permitiu o início das obras havia sido assinado três anos antes. Oficializado em 23 de setembro de 2008, o documento previa o estabelecimento de uma joint venture sino-venezuelana entre a República Bolivariana da Venezuela e a Haier Electrical Corp Ltd. A Haier, cuja sede se localiza na cidade de Qingdao, é uma joint venture — com capital chinês e alemão — mas que na prática opera de maneira semelhante a centenas de empresas estatais chinesas e recebe o tratamento preferencial reservado a elas.

O acordo entre a Haier e Caracas incluía a transferência de tecnologia e contratos de fornecimento para “alcançar a independência do país”; a médio prazo, o objetivo era produzir e desenvolver eletrodomésticos em solo venezuelano.
Mas já no início de 2009, começaram a aparecer os primeiros sinais de que o contrato já era letra morta.

Um relatório de 11 de fevereiro de 2009 emitido pelo Ministério das Indústrias Leves e Comércio e pela Corporação Venezuelana de Indústrias Intermediárias (Corpivensa) advertiu que os representantes da Haier “expressaram reservas em fornecer as informações necessárias para formular o projeto”.

O material faz parte do vazamento de documentos do governo Hugo Chávez do período de 2009 a 2012 a que o Armando.info teve acesso e que foram analisados em conjunto com a equipe de dados do Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (Clip) com colaboração do Diálogo Chino. A investigação deu origem à série “Venezuela e China, uma valsa sem ritmo”, que analisa uma série de projetos acordados entre Caracas e Beijing naquela época.

Esse relatório levantou a primeira dúvida do lado venezuelano sobre o progresso de um plano que, como sempre, havia começado com muito otimismo.

O acordo tinha como objetivo fornecer eletrodomésticos que tanto faltavam nas casas dos venezuelanos de baixa renda. O rascunho inicial do projeto elaborado em 2009 e apresentado ao presidente Chávez trazia um diagnóstico, baseado em dados do Instituto Nacional de Estatísticas da Venezuela (INE), mostrando que 16,8% da população não tinham um refrigerador, 81,5% não tinham ar-condicionado e 45,7% não tinham máquina de lavar roupa.

A meta era reduzir esses números de maneira significativa até 2021. De 16,8% para 4% dos lares sem refrigeradores, de 81,5% para 19% sem ar-condicionado, e de 45,7% para 11% sem máquinas de lavar. Ou seja, reduzir todas as estatísticas em 75%.

Para atingir essa meta em apenas 11 anos, o governo Chávez calculou que seria necessário produzir 488.555 refrigeradores, 396.609 aparelhos de ar-condicionado e 489.555 máquinas de lavar roupa na nova fábrica. Caso seguisse esse ritmo por mais tempo, até 2025 não haveria nenhuma casa venezuelana sem eletrodomésticos da linha branca.

documento do governo venezuela
Desde o início, o Ministério das Indústrias Leves e Comércio declarou que a Haier não deu detalhes sobre o que contribuiria para a criação do empreendimento conjunto para os produtos brancos.

Mas da mesma forma que o documento foi claro e ambicioso na descrição de suas metas para o projeto binacional, ele foi vago quanto ao que se esperava da contraparte chinesa.

Em 2009, o projeto mal cumpria com as expectativas sobre a fábrica e reconhecia, de maneira tímida, que não estava claro como os chineses contribuiriam: “é importante notar que, até o momento, os representantes da Haier não forneceram informações sobre as características e propriedades físicas das matérias-primas e insumos a serem utilizados. Desse modo, será necessário mais um estudo para determinar novos fornecedores locais”, diz o documento.

Conforme os autores do relatório, a empresa chinesa ficou a cargo de fornecer refrigeradores, motores de baixa potência, sensores, termostatos, compressores e condensadores. Essas seriam algumas das “partes e peças fornecidas principalmente pela empresa chinesa Haier, que é acionista da joint-venture e com quem serão feitos os acordos de transferência de tecnologia, conhecimento e fornecimento de partes e peças que atualmente a Venezuela não é capaz de fabricar”. Entretanto, o documento também observa que “ainda não há informações necessárias para determinar quais peças serão fornecidas”.

Apesar destas dúvidas, em 18 de fevereiro de 2009, oito dias após a apresentação do relatório preliminar, a Corpivensa deu prosseguimento à assinatura do acordo com a Haier em nome da República Bolivariana da Venezuela.

O contêiner que esmagou a fábrica

Embora o documento fosse notavelmente ambíguo sobre a transferência de tecnologia que a Haier realmente faria para a Venezuela, a empresa chinesa conseguiu vender mais de 750 milhões de dólares em eletrodomésticos ao governo de Hugo Chávez.

O projeto com a Haier foi o argumento vencedor na campanha do comandante Hugo Chávez e seu partido político, o Partido Socialista Unido da Venezuela (Psuv), para ganhar votos nas eleições parlamentares e regionais de 2010.

O então vice-presidente, Elías Jaua Milano, propôs a importação de 19.672 contêineres com 3.000.007 unidades de aparelhos domésticos, incluindo aquecedores a gás, televisores, aparelhos de DVD, fogões a gás, ar-condicionado, secadores, máquinas de lavar e refrigeradores. No total, essa compra custou à Venezuela 757.631.682 milhões de dólares, segundo o contrato assinado por Giuseppe Yoffreda — então presidente da Venezolana de Exportaciones e Importaciones C.A. (Veximca) — com a Haier Electrical Appliances Corp. Ltd. em 30 de dezembro de 2010, ao qual Armando.info teve acesso.

documento do governo venezuela haier
A Haier acabou investindo na Venezuela para o projeto de fabricação apenas 6,7% da receita que obteve com a venda de aparelhos importados.

O montante seria financiado com recursos do Fundo de Grande Volume e Longo Prazo (FGVLP) – um fundo criado em 2010 que, junto com o Fundo Misto Venezuelano-Chinesa, ativo desde 2007, canalizou os empréstimos da China. O FGVLP serviu para financiar o plano Mi Casa Bien Equipada. Como parte deste projeto social, os equipamentos deveriam ser vendidos nas redes de pequenos mercados estatais Mercal e Pdval, criadas pelo governo de Chávez para vender alimentos a baixo custo. Assim, os aparelhos seriam oferecidos a preços entre 40% e 80% inferiores aos encontrados em estabelecimentos comerciais privados.

Em 2011, o preço de uma máquina de lavar roupa de marcas concorrentes como LG, Samsung ou Whirlpool era de cerca de 3 mil bolívares (697 dólares à taxa de câmbio da época), enquanto uma da marca Haier poderia ser comprada por 1.472 bolívares (342 dólares). Além de poder pagar a crédito às vezes sem juros, o consumidor economizava 51%. Da mesma forma, enquanto um refrigerador de uma marca concorrente custava cerca de 5 mil bolívares (1.162 dólares), um semelhante da empresa chinesa custava apenas 2.628 bolívares (611 dólares).

Além disso, o governo Chávez oferecia empréstimos a funcionários do governo por meio de bancos públicos para financiar a compra desses aparelhos. Instituições estatais especializadas, como o Banco Popular ou o Banco da Mulher, ofereceriam empréstimos a aposentados ou a famílias pobres, respectivamente.

caixas de itens Haier
A entrega de eletrodomésticos e créditos para equipar casas foi parte das estratégias de campanha de Hugo Chávez. (Imagem: Geraldo Caso / AFP)

Enquanto os produtos da Haier que vinham da China estavam sendo vendidos a baixo custo, a construção da fábrica da mesma marca começava em Yare.

A construção do parque industrial foi realizada por outra empresa chinesa: a China Railway 9th Group Co, uma subsidiária da gigante estatal China Railway Engineering Corporation (CREC), a mesma encarregada por outro projeto no país, o Tinaco-Anaco Railway. Outra empresa chinesa também participou do projeto: Henan Tianfon Group, da província de Henan e especializada em estruturas de aço.

Prova de que o governo chinês deu importância ao projeto é que a inauguração da fábrica em setembro de 2012 foi destacada no site da Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (Sasac), um importante órgão do governo chinês responsável pela administração de empresas estatais.

O projeto coincidia com um objetivo que a China havia estabelecido para suas relações com a América Latina anos antes. No “livro branco” de 2008, que expõe sua política externa para a região, Beijing enfatizou que “fortalecer o intercâmbio industrial com os países da América Latina e do Caribe era uma questão estratégica de Estado, bem como “compartilhar as melhores práticas no processo de industrialização uns dos outros, e promover e aprofundar a cooperação prática”. A fábrica da Haier parecia uma boa oportunidade para cumprir a promessa.

No fim, a Haier só acabou investindo 6,7% da receita obtida com a venda de aparelhos importados, de acordo com documentos oficiais. Os negócios com Chávez teriam trazido à empresa chinesa algo como 3,6% de suas vendas em 2010, já que a Haier anunciou uma receita global de 20,7 bilhões de dólares para aquele ano.

Documento do projeto Haier
Os chineses contribuíram com apenas 15% dos recursos necessários para tornar realidade o sonho Chavista de independência na fabricação.

Esta conjuntura sugere que a empresa chinesa exportou com entusiasmo para a Venezuela. Para a construção da fábrica de eletrodomésticos, porém, a Haier se mostrava relutante.

O investimento inicial para o projeto foi estimado em pouco mais de 727 milhões de bolívares, equivalente a cerca de 287 milhões de dólares à taxa de câmbio oficial da época. Deste valor, a Haier contribuiria com apenas 50 milhões de dólares. O resto veio às custas do Estado venezuelano.

A ausência do Dragão

O negócio simultâneo da construção da fábrica e a compra de eletrodomésticos acabados — que teve o apoio de ambos os governos — favoreceu à Haier e esvaziou o sonho chavista de transformar a Venezuela em uma potência manufatureira.

Também não trouxe empregos para os habitantes de San Francisco de Yare, uma cidade dormitório de trabalho para Caracas. A fábrica deveria gerar 1.146 empregos diretos e outros 3.438 indiretos na região, mas, no fim, criou muito menos.

O presidente venezuelano Hugo Chávez com o embaixador chinês na Venezuela, Zhau Rongxian
O presidente venezuelano Hugo Chávez com o embaixador chinês na Venezuela, Zhau Rongxian, durante uma cerimônia com representantes do Haier em maio de 2010. (Imagem: Juan Barreto/ AFP)

Embora a fábrica tenha conseguido entrar em funcionamento em 2012, em novembro de 2019 — sete anos após a sua inauguração — ela havia empregado apenas 237 pessoas e mal tinha produzido 5 mil refrigeradores. Nesse mesmo mês, sua produção, já escassa, parou por falta de gases e refrigeradores, precisamente dois dos materiais que o parceiro chinês deveria fornecer, conforme explicaram funcionários da fábrica ao Armando.info. Desde então, a fábrica não foi reativada.

O que não tinha sido afetado pela ineficiência foi devastado pela catástrofe econômica do país e pela pulverização do bolívar. Do projeto da fábrica de produtos Haier, apenas as promessas grandiloquentes e 160 mil hectares de área construída, hoje em desuso, permaneceram.

Talvez a cerimônia de 2011 contivesse um presságio. O plano, na época, era que o evento incluísse uma dança dos dragões, típicas de festividades da China, ao redor da placa que marcava o início das obras. A performance era muito esperada na cidade conhecida pelas apresentações dos demônios dançantes, uma tradição dos povos de ascendência africana durante o feriado de Corpus Christi

Chávez anunciou a mistura na televisão nacional: “os dragões chineses se uniram aos demônios de Yare. Dragões com demônios, o que sairá disso?”

Mas a performance não aconteceu. Nem sequer um dragão estava presente na cerimônia. Talvez fosse um sinal de que a fortuna chinesa nunca chegaria à Venezuela.

*Esta investigação é baseada em um conjunto de documentos obtidos por Armando.info (Venezuela), que foram processados e analisados em parceria com o Centro Latino-americano de Jornalismo Investigativo (CLIP) e com reportagens adicionais de Diálogo Chino.