A mineradora Potássio do Brasil, a PDB, que é controlada pela gigante canadense Forbes & Manhattan, firmou um acordo com a construtora chinesa CITIC para erguer um complexo de exploração de potássio em Autazes, a 110 km de Manaus (AM), na Amazônia brasileira. Mas o contrato de US$ 1,94 bilhão foi assinado no apagar das luzes de 2020 sem qualquer consulta às partes envolvidas.
Como parte de uma investigação conjunta, o InfoAmazonia e o Diálogo Chino encontraram o contrato entre uma série de documentos que a PDB enviou à SEC, a agência que controla os mercados financeiros dos Estados Unidos, onde a mineradora pretende captar US$ 50 milhões numa primeira rodada de investimentos.
Os planos da mineradora de explorar potássio em Autazes, no estado do Amazonas, já vinham sendo permeados por conflitos locais. Por isso, uma audiência de conciliação em 2017 levou a empresa a assinar um acordo com o Ministério Público Federal em que ela está impedida de dar qualquer passo “sem prévia autorização judicial”.
A decisão também suspendeu o licenciamento ambiental até que a consulta ao povo Mura, uma população de 14 mil pessoas que ocupam 44 aldeias na região, seja concluída e estabeleceu que a empresa desse suporte financeiro para que os indígenas elaborassem seu protocolo de consulta.
A consulta livre, prévia e informada é um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que tem força de lei constitucional. Esse instrumento está, no entanto, sob ameaça desde o final de abril por um Projeto de Decreto Legislativo que pede que o país se retire do tratado, sob o argumento de que ele pode inviabilizar o crescimento do Brasil.
Impedida de qualquer atividade sem autorização judicial, a PDB omitiu tanto o contrato bilionário com a CITIC quanto a intenção de prospectar investidores nos Estados Unidos. “O Ministério Público Federal (MPF) em nenhum momento foi comunicado”, afirmou, surpreso, o procurador Fernando Merloto Soave, que soube da negociação por meio do contato da reportagem.
O Projeto Potássio Autazes, que prevê investimentos da ordem de US$ 2,3 bilhões, pretende extrair no total 770 milhões de toneladas de potássio, um minério essencial na produção de fertilizantes. O contrato revela que o mega empreendimento inclui uma mina de quase mil metros de profundidade, uma usina para a produção do insumo agrícola e a infraestrutura do entorno, como uma estrada e um porto na bacia do rio Madeira, a oito quilômetros da mina.
Um vídeo da empresa mostra que o local de perfuração do solo também fica a oito quilômetros da Terra Indígena Jauary, reconhecida pela Fundação Nacional do Índio, a Funai, em 2012 e ainda em processo de demarcação.
Mais de um terço da área do complexo se sobrepõe à terra Jauary. Informações que constam dos autos do processo mostram cinco requerimentos minerários para o complexo Potássio Autazes. Quatro deles apresentam trechos sobrepostos à terra Jauary, como mostra o Amazônia Minada, projeto do InfoAmazonia que mapeia pedidos de mineração ao governo brasileiro em áreas protegidas. Os autos na Justiça Federal informam que a empresa chegou a pedir que as áreas sobre o território fossem retiradas do pedido minerário, mas os dados na Agência Nacional de Mineração (ANM) continuam indicando a sobreposição ilegal. Eles abrangem quase 45 mil hectares, uma área maior que Curitiba (PR).
De olho no Agro
O projeto bilionário serviria principalmente ao agronegócio brasileiro, que importa mais de 90% do potássio aplicado nas lavouras. A exploração do complexo de Autazes poderia suprir 25% da demanda brasileira pelo minério.
A construção do complexo na bacia do rio Madeira é estratégica para produtores de soja dos estados de Mato Grosso e Rondônia, na Amazônia Legal. As balsas que hoje seguem carregadas de grãos com destino aos portos da região Norte, de onde são exportados para Europa e China, voltariam aos estados produtores já cheias de fertilizantes.
Mas a expectativa de atrair altos investimentos para o empreendimento deixou a mitigação de prejuízos socioambientais em segundo plano, como mostra um comunicado à ANM, em que a PDB indica a intenção de explorar o subsolo na Terra Indígena Jauary, não descartando interferências no local. Mas ela argumenta que, como a exploração seria subterrânea, o ruído da atividade seria “praticamente nulo” e o impacto hídrico, “pontual”.
Já um estudo realizado em 2018 por pesquisadores do Brasil e Estados Unidos mostra que o complexo de Autazes traz riscos para o solo, a estrutura geológica, a vegetação, os aquíferos e até a drenagem da superfície. O desmatamento, segundo os pesquisadores, também prejudicaria o ciclo hidrológico, o habitat da vida selvagem e a biodiversidade.
“Eles dizem que vão trazer desenvolvimento, mas sabemos que não é bem assim”, afirma José Claudio Pereira Yuaka, presidente do Conselho Indígena Mura. “Sabemos muito pouco sobre o projeto, mas sabemos que eles podem entrar na terra indígena pelo subsolo. Isso é uma ameaça ao povo Mura, é um ataque, é um risco”.
Na produção do fertilizante, o cloreto de sódio, nosso conhecido sal de cozinha, é descartado. Segundo a empresa, parte desse resíduo seria deixado a céu aberto para ser dissolvido pelas chuvas, mas comunidades locais temem que o processo leve à salinização dos rios.
Por conta dos riscos associados à obra, o acordo judicial definiu que o licenciamento ambiental não ocorra até a conclusão da consulta ao povo Mura. Para realizar todas as rodadas de conversa e votações, a previsão é que a consulta leve um ano. Esse prazo tem relação com a forma como eles decidiram ser ouvidos, como explica o antropólogo Bruno Caporrino, que foi designado pela Justiça Federal para coordenar a elaboração do protocolo de consulta, concluído em 2019.
“A metodologia que eles escolheram foi de três esferas de reuniões: locais, regionais e gerais. Em algumas reuniões, apenas indígenas Mura puderam participar. Assim foi possível garantir que não há interferência externa”, explica Caporrino.
A consulta começaria em 2020, mas foi suspensa por causa da pandemia da Covid-19 . A gravidade da situação brasileira pode adiar o processo, diz Fernando Soave, para 2022. Em fevereiro, a magistrada Jaiza Maria Fraxe, responsável pela ação na Justiça Federal, afirmou que não é “recomendável, plausível e minimamente razoável a promoção de reuniões presenciais neste momento”.
Meias verdades à SEC
Nos documentos encaminhados à SEC, a PDB forneceu informações imprecisas ao órgão regulador, como a previsão de três meses para a conclusão da consulta aos indígenas para garantir o início da obra. Isso pode acarretar em multa à empresa e traz risco aos potenciais investidores. “Eles não têm segurança nenhuma sobre esse projeto”, comentou Soave.
A consulta aos indígenas tem sido um dos pontos mais sensíveis do processo. Em abril do ano passado, a SEC cobrou esclarecimentos da mineradora sobre as possíveis repercussões legais do parecer.
“Forneça informações atualizadas e explique com mais detalhes a maneira em que as consultas estão em curso”, questionaram em ofício endereçado à sede da empresa no Canadá.
O grupo respondeu ter realizado “várias rodadas de consultas”. Essas rodadas, de acordo com os autos na Justiça Federal, são audiências públicas promovidas pela empresa em 2015, fora das aldeias, e que, portanto, não podem ser consideradas como a consulta prévia que os Mura definiram no protocolo em 2019.
A empresa ainda afirma à agência ter suspendido o licenciamento ambiental do projeto “de forma voluntária”. Mas o procurador Fernando Soave lembra que isso ocorreu por conta da audiência de conciliação.
A relevância da consulta também vem sendo progressivamente desconsiderada. Em março de 2020, a mineradora informou à SEC que a “oposição por indígenas pode exigir modificações ou impedir a operação do projeto em Autazes”. Três meses depois, após o pedido de explicações da SEC, uma nova versão do mesmo documento não continha a opção de impedimento do empreendimento (em inglês, “preclude the development or operation“), informando apenas que a oposição dos indígenas “pode, sob certas circunstâncias, exigir modificação no projeto”.
À Justiça Federal do Amazonas, em 2016, a empresa deixou ainda mais explícita a sua intenção de não considerar a consulta ao povo Mura como um impeditivo: “É importante frisar que que a Convenção 169 da OIT em nenhum momento estabeleceu que a consulta às comunidades indígenas envolveria um poder de veto ao licenciamento ambiental”, afirma a Potássio do Brasil.
Fernando Soave defende que a decisão dos indígenas tem poder de veto e pode barrar o empreendimento. “A consulta é uma autonomia do povo Mura. Na audiência na Justiça, a empresa concordou que a decisão é vinculante”, diz o procurador.
O procurador também demonstrou preocupação com as informações dadas pela empresa à SEC e possível descumprimento do acordo. “Essas informações são preocupantes, uma vez que podem representar tanto dados equivocados levados aos potenciais investidores, quanto um potencial descumprimento dos requisitos para a consulta”, afirma Soave.
Histórico de atropelos
A Potássio do Brasil fincou estacas em Autazes em 2009. A mineradora conseguiu permissão para pesquisar o minério mesmo que um grupo da Funai já estivesse fazendo a identificação da Terra Indígena Jauary há quase um ano. “Começaram tudo errado, perfurando poços em terras indígenas [sem autorização]”, afirma o procurador.
Como se trata de uma área indígena em fase de demarcação, a empresa teria que requerer uma licença ambiental no âmbito federal, instância que protege legalmente esses povos no Brasil. Mas o Ipaam, órgão ambiental estadual do Amazonas, concedeu uma licença preliminar.
Em 2016, o Ipaam justificou a licença, garantindo que o empreendimento “não está inserido e tampouco contempla o aproveitamento de recursos naturais em terras indígenas”. Na mesma época, no entanto, a própria PDB admitia a sobreposição.
“Eles se instalaram em 2010, com escritório na cidade de Autazes, e começaram os estudos e perfurações. Não perguntaram nada pra ninguém”, lembra José Claudio Pereira Yuaka. “Por volta de 2015, nós ficamos sabendo pela televisão dos desastres em outros projetos de mineração e procuramos saber mais sobre essa mina”.
Os canadenses vêm desde então perfurando Autazes em busca de potássio, o que já lhes custou R$ 250 milhões, segundo a ação judicial. Hoje, eles sabem onde encontrar o mineral e dizem que a exploração não impacta a região ocupada pelo povo Mura por ocorrer no subsolo.
Eles informam que a perfuração terá de um a três metros e meio de espessura e até 900 metros de profundidade. Porém, não está claro se essa exploração do subsolo se dará em direção ao território indígena, onde a empresa já identificou potássio.
Na época, os indígenas chegaram a ameaçar atear fogo em equipamentos da empresa para desmobilizar as perfurações, e a Funai pediu a paralisação dos estudos “em razão de estarem incidindo na Terra Indígena Jauary”.
Com tantos atropelos, o MPF decidiu intervir e, em poucos meses da abertura de um inquérito em 2016, a empresa aceitou a audiência de conciliação. Além de segurar mais as rédeas do processo, o MPF também conseguiu suspender a licença ambiental prévia.
Mesmo assim, a PDB descumpriu o acordo em pelo menos dois momentos: em 2017 a empresa demorou quatro meses para justificar escavações que preocupavam os indígenas; e em 2019, ela antecipou estudos de identificação da flora local para acelerar o licenciamento.
Em 2017, a agência minerária deu laudo técnico favorável à mineração no subsolo da terra indígena, mas fez ressalvas sobre as questões legais.
Não há previsão legal para a exploração mineral em terras indígenas no Brasil, mas o governo Jair Bolsonaro tem pressionado para legalizá-la. É nessas possíveis mudanças de curso que mineradoras se apoiam quando protocolam pedidos à agência de mineração, a ANM.
Por isso, a Advocacia-Geral da União (AGU) determina que a agência não aceite pedidos de pesquisa mineral em territórios indígenas, mesmo que ainda estejam em fase de demarcação, como é o caso da terra Jauary.
Além disso, a Justiça Federal derrubou em 2019 todos os requerimentos em terras indígenas do Amazonas. Mesmo assim, a mineradora canadense continua com 19 pedidos ativos que se sobrepõem a territórios indígenas no estado, segundo dados do Amazônia Minada.
Além das investidas da empresa, os indígenas precisam resistir à pressão e até a ameaças que vêm da cidade de Autazes.
“Às vezes ouvimos reclamações de pessoas dizendo que a região poderia ser rica, mas os índios não têm o que fazer. Já vi em um banheiro de bar na cidade uma pichação ‘morte ao povo Mura’. Nós só queremos que a lei seja cumprida”, desabafa Herton Mura, assessor da Organização das Lideranças Indígenas Mura do Careiro da Várzea.
Questionada no dia 7 de maio sobre a série de atropelos legais, a PDB não se pronunciou. Também não tivemos resposta da SEC sobre as informações fornecidas pela PDB, e do IPAAM sobre o licenciamento ambiental bloqueado pela Justiça. A CITIC não retornou até o fechamento da reportagem.
Já a ANM negou que haja requerimentos minerários vigentes dentro de Terras Indígenas no Amazonas, mas a nota enviada pela assessoria se contradiz na frase seguinte: “O fato de aparecer no SIGMINE um requerimento em uma área indígena não tem efeito prático nenhum”. A agência reguladora ignorou uma pergunta sobre o descumprimento de um parecer de 2009 da AGU que impede autorizações de pesquisa ou lavra de minério dentro de territórios indígenas já identificados, que é o caso do território Jauary.
Esta reportagem foi feita em parceria com o InfoAmazonia.